sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

Moacyr de Oliveira Lima: À memória dos assassinados

Os caminhos para a construção de um museu-memorial no complexo arquitetônico onde funcionou o DOI-Codi do II Exército, entre as ruas Tutóia, Tomás Carvalhal e Coronel Paulino Carlos, no bairro do Paraíso, em São Paulo, começam a ser debatidos, por acadêmicos, juristas, ex-presos políticos e entidades envolvidas nessa luta, no workshop Memorial antigo DOI-Codi: o museu memorial que queremos.

Essa é uma luta que se arrasta desde janeiro de 2014 quando o complexo arquitetônico foi tombado pelo CONDEPHAAT – Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado, com a recomendação de que ali fosse criado um Memorial, em homenagem às vítimas da tortura.

O pedido para tombamento dos prédios foi feito em 2010 por Ivan Seixas, na época integrante do Conselho de Defesa da Pessoa Humana (Condepe), que foi capturado pelo DOI-Codi, em abril de 1971, junto com seu pai, Joaquim Alencar de Seixas, assassinado na tortura.

Em junho de 2021, o Ministério Público de São Paulo entrou com uma Ação Civil Pública, na 14.a Vara da Fazenda Pública, que pede a transferência desses prédios da Secretaria de Segurança Pública para a Secretaria de Cultura e o início do processo de criação de um Centro de Memória.

O juiz José Eduardo Cordeiro Rocha concedeu uma liminar determinando que a Fazenda Pública do Estado de São Paulo iniciasse de imediato a implementação das medidas necessárias à preservação de todos os elementos estruturais e arquitetônicos dos prédios, nos termos do ato de tombamento, com proibição de novos usos das dependências, inclusive a instalação de outros serviços públicos.

Em 9 de setembro de 2021 foi realizada uma audiência de conciliação dentro do antigo DOI-Codi, quando o governo de São Paulo pediu um prazo de 90 dias para apresentar uma contraproposta. O que, até hoje, não aconteceu.

Antes de iniciar a audiência, o juiz fez questão de conhecer pessoalmente os locais onde ficavam as celas e as salas de tortura e interrogatório, em dois dos quatro prédios que integram aquele complexo arquitetônico, bem como o sobrado onde morou o comandante do DOI-CODI, na época major Carlos Alberto Brilhante Ustra, com sua esposa, Maria Joseíta, e sua filha, Patrícia, então com 3 anos de idade.

Foi uma audiência histórica. Pela primeira vez, a Justiça, na pessoa do juiz José Eduardo Cordeiro Rocha, da 14ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, pisou oficialmente naquele centro de tortura e extermínio.

Os representantes do Governo do Estado de São Paulo recusaram-se a aceitar a transferência daqueles prédios para a Secretaria de Cultura e a sua transformação num Memorial e pediram o adiamento da ação por 90 dias, para que apresentassem uma proposta concreta de acordo, que possa ser aceita, tanto pelo Ministério Público, quanto pelos ex-presos políticos, sobreviventes daquele antro de terror, e familiares dos mortos e desaparecidos.

Até hoje, apesar de várias tentativas, tal proposta de acordo não foi apresentada pelo Governo do Estado de São Paulo e a ação está na fase final de sua tramitação, aguardando a sentença do juiz José Eduardo Cordeiro Rocha.

Entre os dias 2 e 14 de agosto de 2023 foram realizadas escavações arqueológicas no antigo DOI-Codi, com o objetivo de explorar os vestígios do local, como objetos, estruturas arquitetônicas e registros documentais. A escavação resultou na coleta de mais de 800 fragmentos, como material biológico, como vestígios de sangue; inscrições nas paredes; fragmentos de vidros, azulejos, louças e cerâmicas; e um vidro de tintas usado no carimbo das fichas dos presos. O trabalho de investigação foi realizado por pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), coordenado pela historiadora Deborah Neves.

Esse trabalho, no entanto, restringiu-se ao prédio onde funcionou o DOI-Codi no seu início, entre julho de 1969 e julho de 1971, quando as torturas passaram a ser realizadas no prédio da 36ª DP, cujo acesso é mais restrito, uma vez que a área onde ficavam as celas e a sala principal de tortura hoje está parcialmente ocupada por órgãos da Polícia Civil.

Da mesma forma, as visitas mensais guiadas ao antigo DOI-Codi, organizadas pelo Núcleo Memória, importantes para mostrar esse centro de tortura para estudantes e jovens, restringem-se ao prédio velho, que está desocupado, não abrangendo o prédio da 36º DP.

Em junho de 2024, com as atividades desenvolvidas pelo GT Memorial DOI-Codi, coordenado pela historiadora Deborah Neves, da Unifesp, aquele espaço foi reconhecido como Ponto de Memória pelo Instituto Brasileiro de Museus – Ibram.

·        Breve Histórico

Considerado o mais violento e emblemático órgão de repressão da ditadura militar, uma espécie de comando geral do aparato repressivo de todo o país, a Operação Bandeirantes (OBAN) foi criada em 2 de julho de 1969. Em setembro de 1970 passou a se chamar, oficialmente, Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI).

Instalou-se, inicialmente, no quartel do 2º Batalhão de Reconhecimento Mecanizado da Polícia do Exército, na Rua Abílio Soares, e em setembro de 1969 foi transferida para o complexo de prédios, entre as ruas Tutóia, 921, Tomás Carvalhal, 1030 e Coronel Paulino Carlos, no bairro do Paraíso, pertencentes ao Governo do Estado de São Paulo, nos fundos do 36º DP, que funciona ali até hoje.

Segundo dados coletados pela Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva, pela Comissão Nacional da Verdade e pelo jornalista Marcelo Godoy, em seu livro A Casa da Vovó, 78 dos mais de 7 mil brasileiros capturados pelo DOI-CODI – quase todos torturados – foram mortos por ação direta de seus agentes, sob tortura, executados em operações de rua ou em outros centros clandestinos, como o Sítio 31 de Março, a Casa de Itapevi, conhecida como Boate, utilizada a partir de 1974, e a Casa da Morte, em Petrópolis. Sendo que 60 deles foram assassinados no DOI-CODI ou por ação direta de seus agentes, 38 deles na tortura, e 18 em outros centros de tortura. Desses 38 que morreram na tortura, 31 foram assassinados no prédio da Delegacia e 7 no prédio velho.

A grande maioria das 60 mortes no DOI-CODI ocorreram sob o comando do então major Carlos Alberto Brilhante Ustra, entre setembro de 1970 e janeiro de 1974 – 43 mortos (72 %).

Em julho de 1971, as torturas passaram a ser realizadas em salas na metade norte do prédio principal, onde funciona até hoje o 36º DP, inclusive com revestimento acústico da sala principal de tortura, que ficava no térreo, ao lado da carceragem, onde eram montados o pau-de-arara e a cadeira do dragão.

A partir dessa época, a entrada das viaturas que conduziam os presos, as temíveis C-14, passou a ser feita pelo portão de ferro da Rua Tomás Carvalhal, 1030, e não mais pela 36º DP.

Há, ainda, um outro prédio, um sobrado, onde, por um certo período, o comandante Ustra morou com a mulher, Maria Joseíta, e sua filha, Patrícia, então com 3 anos de idade, que, às vezes, passava as tardes brincando na cela das mulheres ou no pátio.

O DOI-CODI funcionou ali até 1982, quando foi transferido, inicialmente, para o 4º Batalhão de Infantaria, conhecido como Quartel de Quitaúna, em Osasco, e depois para uma área no Hospital do Exército, no Cambuci, onde ficou até a sua desativação, por uma Portaria do Ministério do Exército, de 18 de janeiro de 1985, que criou em seu lugar, nas 2ª Seções das unidades militares, as Subseções de Operações (SOp), para realizar as operações de informações e contrainformações.

Quando dessa transferência, alguns dos seus principais torturadores deixaram o órgão, retornando para as Polícias Militar, Civil ou Federal. Um deles foi o delegado Aparecido Laertes Calandra, que usava o codinome de Capitão Ubirajara, que voltou para a Polícia Federal, levando consigo os arquivos do DOI-CODI. Os documentos mais sensíveis foram entregues ao Exército. Outra parte foi para o DOPS e está hoje no Arquivo Público do Estado de São Paulo, podendo ser consultado na pasta 50 – Z – 9 do Fundo Deops.

·        Que Memorial queremos?

No debate sobre que Memorial deve ser implantado naquele espaço, um grupo de ex-presos políticos que por ali passaram considera fundamental que ele inclua as áreas da 36ª DP, pelo menos onde ficavam as celas, a sala de tortura do térreo e a escada que levava às salas de interrogatório e tortura do 1º andar.

O objetivo final dessa luta é a entrega de todo o complexo arquitetônico tombado para a Secretaria de Cultura e sua transformação em Memorial, como pede a ação civil pública, e dele não podemos abrir mão, até que se concluam as negociações.

No entanto, deve-se entender as dificuldades de se conquistar isso, uma vez que, ao contrário do prédio velho, esses espaços estão hoje parcialmente ocupados por órgãos da Polícia Civil, que resiste em liberá-los. E, é claro, deve se estar abertos para aceitar eventual contraproposta que seja apresentada, excluindo o prédio da Delegacia.

Nesse sentido, deve se pensar num projeto museológico mais amplo, caso a área da 36ª DP seja liberada, e num projeto mais restrito, caso a liberação ocorra apenas com o prédio velho e o sobrado onde Ustra morou por um tempo, que hoje estão desocupados.

Ex-presos que ali passaram entendem que na sala de tortura do térreo do prédio da 36ª DP, ou na principal sala de tortura do 1º andar do prédio velho, devem ser reproduzidos um pau-de-arara, uma cadeira do dragão, uma máquina de choque, conhecida como “pimentinha”, e um capuz.

Além disso, caso ocorra a liberação das áreas da 36ª DP, sugerem que as celas, onde ficava a carceragem, hoje descaracterizadas por várias reformas, devem ser reconstituídas como eram na época, bem como a principal sala de tortura, no térreo, ao lado da carceragem.

Defendem, também, que a parede e o muro de arrimo que hoje separam os prédios da Rua Tutóia dos da Rua Tomás Carvalhal, devem ser demolidos, reconstituindo-se a arquitetura e configuração originais, com a rampa de acesso por onde entravam as C-14 com os capturados, até o pátio, onde eram desembarcados.

Em relação ao acervo, sugerem que sejam colocadas fotos de todos os 78 mortos, com suas respectivas biografias, com uma iluminação especial, além da reprodução de fichas de identificação de alguns dos presos, da grade de presos, declarações de próprio punho, entre outros. Vídeos com os depoimentos de ex-presos também devem ser exibidos.

E os torturadores? O que fazer com eles? Não há clareza sobre isso, mas deve se pensar sobre a possibilidade de um espaço onde seus nomes e codinomes seriam relacionados, vinculando-os aos assassinatos pelos quais são os principais responsáveis, e, quem sabe, fotos dos mais notórios.

Essas são algumas questões que devem ser discutidas no workshop, mas o importante é que todos os envolvidos nesse debate – acadêmicos, juristas, entidades, ex-presos, estejam unidos para que se conquiste o Memorial possível.

Para que não se repita! Para que nunca mais aconteça!

 

Fonte: A Terra é Redonda

 

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