Qual é para cada
religião o momento do início da vida — e como cada uma lida com aborto
A discussão sobre o aborto ganhou novo capítulo no Brasil com o projeto de
lei que equipara a realização do procedimento após 22 semanas de gestação ao
crime de homicídio. Mas a definição sobre quando se inicia a vida
é complexa, e a resposta varia de religião para religião.
Esta é uma questão filosófica e científica que
acompanha a humanidade desde o surgimento da consciência: a vida começa na hora
da concepção, quando o óvulo é fertilizado pelo espermatozoide? No nascimento?
Ou em algum momento intermediário?
Quando a religião entra na discussão, um
ingrediente de fé costuma interferir no entendimento e suas implicações acabam
buscando impor regras comportamentais e morais a seus seguidores. Em comum, a
questão que geralmente baliza o debate é o momento em que a "alma" é
concedida ao novo ser. Mas as interpretações variam dentro do cristianismo e,
claro, quando comparamos também com outras religiões importantes mas menos
difundidas no Brasil contemporâneo.
A reportagem ouviu especialistas e traz, a
seguir, os entendimentos da Igreja Católica Apostólica Romana, de igrejas
cristãs protestantes e evangélicas, das religiosidades indígenas e das de matriz
africana, do espiritismo kardecista, do judaísmo e do islã. A partir desse
entendimento, cada credo costuma traçar sua régua moral para assuntos como sexo
para fins não reprodutivos, métodos
contraceptivos, aborto e relações homoafetivas.
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Igreja Católica
Ex-coordenador do Núcleo Fé e Cultura da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e editor do jornal O São
Paulo, da Arquidiocese de São Paulo, o sociólogo e biólogo Francisco Borba
Ribeiro Neto argumenta à BBC News Brasil que "no caso do catolicismo, o
conceito de origem da vida evoluiu com o desenvolvimento do conhecimento sobre
biologia fetal. O cristianismo sempre condenou o aborto, mas na Idade Média se supunha que a alma não se incorporaria
plenamente ao feto já na concepção. Com a evolução do conhecimento científico,
a Igreja Católica passou a assumir que a alma é infundida no corpo já no
momento da concepção”, defende ele.
Para o sociólogo, a questão parte do
conhecimento científico. E, segundo ele, é por isso que a Igreja condena o
aborto. "Em primeiro lugar, acho importante fazer um a distinção para
entendermos o que realmente está em debate. Ninguém pode, hoje em dia, duvidar
do fato de que uma nova vida se origina na concepção. Quando o óvulo e o
espermatozoide se encontram, surge um novo código genético, que corresponde a
um novo ser vivo. Este é um dado científico universalmente aceito. O debate real
é se esse novo ser vivo, ainda desprovido das características próprias da
condição humana, pode ser considerado uma pessoa humana portadora de direitos
equivalentes aos de uma pessoa já nascida", pontua. "Esse caráter,
pertencente constitutivamente à filosofia do direito, não interessa aos
envolvidos no debate, por isso permanece camuflado", diz Ribeiro Neto.
"Aos que defendem o direito de escolha [ou
seja, o direito ao aborto], não interessa a constatação de que o feto já é um
ser humano diferente, mesmo que seja apenas do ponto de vista biológico. Aos
que defendem o direito à vida, não interessa destacar que pode existir uma
diferença entre um novo ser vivo, no sentido biológico estrito) e uma pessoa
dotada de direitos, que é uma questão filosófica e social."
Como a Igreja entende que a alma é concedida por Deus já no momento da concepção, qualquer
método abortivo é visto, nas palavras do sociólogo, como "um atentado
contra o direito à vida de uma pessoa". Mas há um senão. "Os métodos
contraceptivos não são totalmente condenados pelo catolicismo. Ele [a Igreja]
concorda com os chamados métodos naturais, que monitoram o ciclo reprodutivo
da mulher e indicam que se mantenha relações sexuais nos dias em que ela
está infértil, para evitar a concepção, ou nos dias férteis, no caso dos casais
que desejam ter filhos”, explica ele. É a chamada tabelinha. Por outro lado,
Ribeiro Neto ressalta que preservativos, dispositivo intrauterino (DIU) e a
pílula são contraindicados. Assim como procedimentos definitivos, como a
laqueadura e a vasectomia. "Porque não dariam espaço à livre ação de
Deus", afirma. "Todo ato sexual deve estar aberto à possibilidade da
geração de uma nova vida."
"O sexo não reprodutivo é plenamente
aprovado pela Igreja, que reconhece que a sexualidade tem um valor unitivo,
isso é, reforça a união entre homem e mulher. Contudo, justamente por
representar essa unidade entre ambos, deve estar aberto à reprodução, que é o
auge do amor entre dois seres humanos: a criação de um terceiro ser que é a
fusão de ambos", salienta ele. Isso implica numa questão correlata: a
maneira como o catolicismo vê as uniões homoafetivas. A não aceitação desses
casamentos, conforme explica Ribeiro Neto, é porque, em última instância, eles
"não podem, naturalmente, gerar um filho".
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Igrejas protestantes e evangélicas
Professor na Universidade Presbiteriana
Mackenzie, o teólogo, filósofo e historiador Gerson Leite de Moraes lembra que,
"de maneira geral, o cristianismo, seja o católico, seja o protestante ou
evangélico, trabalha com a ideia de que existe uma ordem controlada pelo
criador, que comanda tudo. É preciso, de alguma forma, respeitar esse doador da
vida. Isso está na tradição cristã que foi inicialmente pensada pela confissão
católica e também na que teve sequência com os protestantes e
evangélicos", afirma. Ele lembra que as raízes desse entendimento estão na
filosofia do teólogo Tomás de Aquino (1224-1274), que definia como
"pessoa" a "substância capaz de pensar".
"Assim, a pessoa é um ser racional, mas
não que tenha recebido essa racionalidade de maneira natural, no sentido de
herdar uma carga genética dos pais. O dom da vida, a racionalidade, ela é algo
espiritual que foi infundida, associada a cada um por meio de um ato criador.
Por isso que a vida acaba sendo um presente de Deus", contextualiza
Moraes. "A definição se torna bastante sofisticada porque coloca Deus na
parada."
"Na tradição protestante é muito comum
você escutar que os seres humanos criados são a joia da criação de Deus, por
isso temos o direito de administrar o cosmos, porque somos sujeitos
racionais", completa. Assim, para os cristãos não católicos a ideia é a
mesma: a vida começa na concepção. "Porque, em algum momento, Deus infunde
a alma" diz o teólogo.
Mas se os católicos costumam se apoiar em
catataus filosóficos e teológicos construídos em quase 2 mil anos, protestantes
se fiam mais no que está na Bíblia por si só. E aí o principal fator a condenar o aborto é um
trecho do Antigo Testamento que aparece no Salmo 139. Ali diz que "os teus
olhos [de Deus] viram o meu corpo ainda informe; e no teu livro todas estas
coisas foram escritas; as quais em continuação foram formadas, quando nem ainda
uma delas havia. Segundo esse texto, Deus conhecia a pessoa antes mesmo de ela
existir", interpreta. "E Deus conhecida o plano eterno. Já via, com
seus olhos, a substância ainda informe. Nesse sentido, a partir daquele bolo de
células, da fecundação, já há uma vida, uma pessoa conhecida por Deus."
Por outro lado, as igrejas protestantes
costumam ser mais abertas ao uso de métodos contraceptivos. "Há uma
liberdade maior. Não há problema quanto ao sexo não reprodutivo desde que
dentro do casamento, porque se entende que o homem foi dado à mulher e a mulher foi
dada ao homem. O sexo deve acontecer porque ambos foram abençoados por Deus
numa relação legítima e essas duas pessoas estão unidas para se reproduzirem,
criarem filhos mas também para se alegrarem, sentirem prazer e viverem uma vida
de fidelidade sem nenhuma imposição ou restrição sexual", comenta.
No caso do aborto, Moraes explica que
tradicionalmente os protestantes sempre condenaram a prática de modo
indiscriminado mas respeitavam o direito de escolha de seus fiéis, sobretudo em
casos de violência contra a mulher, estupro ou mesmo quando a gestante corre
risco de vida ou o feto tem alguma má-formação. "A tradição sempre foi
voltada ao pró-escolha", conta. Isso mudou com a ascensão de grupos
evangélicos fundamentalistas aliados a grupos de extrema-direita, segundo
explica o professor. "Em uma mimetização do que vem ocorrendo nos Estados
Unidos desde os anos 1960, vemos no Brasil de hoje lideranças evangélicas
promovendo manifestações até em frente a clínicas que praticam aborto",
comenta.
Há variações de denominação para denominação. "É
preciso lembrar que em outras igrejas as coisas podem funcionar de forma
diferente. Há igrejas pentecostais que são inclusivas, mas mesmo aí ainda
prevalece algum moralismo. A igreja Cidade de Refúgio, por exemplo, é uma
igreja inclusiva, mas proíbe o sexo antes ou fora do casamento. A Igreja
Universal, no início deste século, não se opunha ao
aborto. Passou a proibir o aborto posteriormente. Essa igreja defende o
planejamento familiar com o uso de métodos contraceptivos", exemplifica o
sociólogo Edin Sued Abumanssur, professor da PUC-SP, onde lidera o Grupo de
Estudos do Protestantismo e Pentecostalismo.
Sobre a origem da vida, ele toma como exemplo
duas igrejas evangélicas bastante disseminadas no Brasil, a Deus é Amor e a
Assembleia de Deus. "[Para ambas] a origem da vida está no momento da
concepção", esclarece. "Para as duas igrejas o casamento é mandamento
divino e as relações sexuais devem acontecer apenas no contexto do casamento.
Sexo antes do casamento é proibido e implica disciplina para os faltosos. Sexo
com outro que não o marido ou a esposa é adultério e implica em exclusão da
igreja. O casamento é necessariamente monogâmico, heterossexual."
Há regras claras para o matrimônio. Na Deus é
Amor, casamento só deve acontecer depois dos 16 anos para mulheres e 18 anos
para os homens. As mulheres entre 16 e 18 anos só podem casar com homens de
até, no máximo, 28 anos. Se tiver entre 18 e 21 anos pode se casar com homens
de até 36 anos. A partir de 21 anos pode se casar com homens de qualquer idade.
Há preceitos para quando é o caso de o homem ser mais novo que a mulher",
diz Abumanssur. "Ambas as igrejas só reconhecem a família heterossexual. Qualquer relação homoafetiva é vista como
pecado e passível de exclusão da igreja. Para a Deus é Amor, métodos
contraceptivos são proibidos a não ser por ordem médica ou quando o marido não
for crente e exigir a operação para evitar filhos. Para ambas as igrejas o
aborto é proibido em qualquer circunstância, mesmo naqueles casos previstos na
lei. Para as igrejas pentecostais que conheço o aborto é sempre proibido",
esclarece.
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Judaísmo
De acordo com o historiador, hebraísta e rabino
Theo Hotz, apresentador do podcast Torá com Fritas, são diversas as opiniões no
judaísmo sobre o momento do início da vida. De acordo com a Lei Judaica, a vida
humana se inicia no momento do nascimento. "Feto e bebê são diferenciados
a partir do ato do nascimento. Enquanto ainda na fase uterina, o feto é
considerado como vida em potencial, mas ainda parte da mãe, como se fosse um
órgão dela. Tanto os antigos sábios do Talmud, quanto os legisladores da Lei
Judaica entendem que, após a cabeça do bebê ter saído, ele é considerado um ser
humano completo. Outras autoridades entendem que somente após a maior parte do
bebê ter saído ele deve ser considerado como um ser humano completo",
esclarece Hotz.
A base do entendimento é bíblica e remonta ao
livro do Gênesis, parte das escrituras tanto do judaísmo quanto das
denominações cristãs. Ali diz que "Deus então soprou em suas narinas o
fôlego da vida, e ele se tornou um ser vivente. Assim, a respiração natural é
vista como base para a determinação de quando a vida começa e termina. Como
dentro do útero, cercado pelo líquido amniótico, o feto é incapaz de respirar, seu
potencial de vida só é realizado a partir do momento em que tem contato com o
ar e pode respirar por si só e naturalmente", explica o historiador.
Ele ressalta, contudo, que não há um consenso.
A cabalá, ou seja, a mística judaica, tem o entendimento de que a vida se
inicia a partir da entrada no quarto mês de gestação. "Daqui, por exemplo,
surge o costume de somente se anunciar uma gravidez após a compleição de três
meses de gestação", conta. "Há quem diga, porém, que tal costume se
desenvolveu por puro empirismo, após a observação do fato de que era muito
comum se perder uma gravidez durante o primeiro trimestre."
Segundo o historiador e rabino, a visão judaica
não condena o aborto. "Entendendo a respiração natural como a realização
total do potencial de vida humana, o judaísmo entende que a gravidez pode ser interrompida a qualquer
momento antes do nascimento. Desse modo, o aborto não é visto como algo
fundamentalmente proibido pela Lei Judaica", contextualiza. "Contudo,
é importante compreender que o judaísmo, embora não proíba o aborto, tampouco o
incentiva. Autoridades legais e mestres da filosofia judaica entendem que o
objetivo do feto é realizar o seu potencial de vida, assim, a gravidez não
deveria ser interrompida por qualquer motivo", ressalta ele.
Um dos motivos vistos como razoáveis para a
prática é quando a gestante corre riscos. "Neste caso, entende-se a mãe
como potencial já realizado versus o feto potencial ainda não realizado. Deste
modo, a vida da mãe estaria acima do potencial de vida fetal", afirma. Outros
casos aceitáveis são quando a viabilidade da vida do potencial é baixa, como no
caso de fetos com malformações e outras anomalias. “[Nestas situações], o
aborto pode ser recomendado, não incorrendo em qualquer culpa religiosa sobre
os progenitores", diz Hotz.
O rabino explica que métodos contraceptivos
são, "de maneira geral, não recomendados pelo judaísmo". "Mas as
autoridades rabínicas são incentivadas a analisar caso a caso, podendo vir a
autorizar seu uso ou recomendá-lo no caso, por exemplo, de uma família pobre,
que não tenha condições de criar um filho naquele momento da vida". Neste
caso o fundamento é o mesmo, ou seja, da precária viabilidade da vida cujo
potencial venha a ser realizado. "De todo modo, num caso assim, muitas
vezes não se recomenda o método contraceptivo, mas sim, que se entregue a
criança nascida para adoção", comenta.
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Islã
O islã tem o entendimento de que a vida começa
120 dias depois da concepção. Isto está presente no Corão, o livro sagrado da religião. "Tem uma surata que fala da
formação [do feto]. Primeiro, o coágulo, depois o pedaço de carne, os
ossos", explica a antropóloga Francirosy Campos Barbosa, professora na
Universidade de São Paulo (USP). No texto, há o chamado período do esperma, de
40 dias, seguido pela sua transformação em coágulo, outros 40 dias, e então ao
pedaço de carne, mais 40 dias. "Então Deus manda um anjo até a criatura
que está sendo gestada e assopra a vida. Esse anjo é ordenado a registrar para
essa criança o sustento, as ações, quando vai morrer, se será uma pessoa
bem-aventurada ou não… Esses pontos já se decidem ali, nesse momento em que a
criança recebe a vida", afirma Barbosa.
Essa crença implica em duas consequências. A
primeira é que o aborto, para o islã, é algo terminantemente proibido. Mas há o tal prazo de 120 dias.
"Se pensarmos claramente, não é ainda vida [para os que professam essa
fé], então não teria determinados impedimentos", diz a antropóloga. Contudo,
mesmo assim, evita-se, conforme ressalta a professora. Porque não há um
consenso entre os sábios da religião. "Há especialistas que dizem que se o
aborto ocorre antes [dos quatro meses], não há problemas. Mas há quem discorda.
O mais comum é aceitar nos casos em que a mãe está correndo risco de
vida", explica. Sobre métodos contraceptivos, Barbosa conta que dentro do
islã não há problemas desde que não sejam permanentes. Ou seja: laqueadura e
vasectomia não são aceitos, mas os outros métodos não são vistos como
problemáticos. "Na época do profeta [Maomé ou Muhammad, como preferem seu
seguidores], se fazia uma prática conhecida como coito interrompido. Que ele e
seus companheiros já realizavam", diz Barbosa.
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Espiritismo kardecista
Como se trata de uma doutrina
reencarnacionista, a linha espírita kardecista parte da
ideia "de que a alma é imortal e a gente tem várias existências, várias
vidas", como explica a historiadora e socióloga Célia da Graça Arribas,
professora na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e autora do livro
'Afinal, Espiritismo é Religião?'. "O princípio da vida, então, é pensado
como uma espécie de evolução. Passamos por algumas existências, das plantas aos
animais, até chegarmos aos seres humanos. Mas a ideia é que ninguém nunca
regride", contextualiza. "O fundo da teoria espírita é a ideia da
evolução."
A pesquisadora salienta que, embora o
espiritismo seja praticado em geral por pessoas de classes sociais mais elevadas
do que a que compõe a massa de evangélicos neopentecostais no Brasil, a
intransigência à possibilidade do aborto é uma pauta que une esses dois grupos.
"Embora haja espíritas progressistas que pensam no aborto a partir das
lentes da saúde pública, o que predomina é uma visão muito forte contra
qualquer tipo de aborto. O pensamento hegemônico [dentro da doutrina] é
conservador, então eles são completamente contrários à descriminalização do
aborto", diz. No entendimento deles, impedir o término de uma gestão é
impedir a vinda de um espírito programado para reencarnar. "Alguém que tem
objetivos, provas a cumprir na Terra. Ou seja, o aborto seria uma ação
contrária às leis naturais e divinas. É um discurso alinhado com a perspectiva
católica e evangélica, nesse sentido", argumenta a pesquisadora.
De modo geral, os espíritas kardecistas não se
opõem aos métodos contraceptivos, desde que as relações
sexuais sejam feitas com consentimento e responsabilidade.
"A partir da ideia de uma parceria fixa e do amor", esclarece
Arribas. A exceção é o DIU. "Porque como ele não impede a fecundação, mas
sim a absorção do zigoto no colo do útero para o começo da gestação, para
muitos espíritas ali já estava implementado o espírito reencarnante", diz.
Uma informação interessante a respeito é que um
dos proponentes do estatuto do nascituro, de 2007, foi o então deputado federal
Luiz Carlos Bassuma, que segue o espiritismo. "[Trata-se de uma proposta
que] prevê que o feto tem direito à vida, à integridade física, a partir do
momento em que é concebido. Na prática, qualquer aborto seria proibido,
inclusive em casos de estupro", pontua a professora.
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Povos originários
Dentre os tantos povos indígenas brasileiros,
são muito diversas as crenças sobre o momento em que a vida se inicia. E,
atualmente, esses entendimentos muitas vezes estão contaminados com preceitos
cristãos, seja oriundo de missionários católicos, seja de evangélicos. Professor
na Universidade Federal do Amapá (Unifap), o historiador e antropólogo Giovani
José da Silva explica que essas posturas costumam variar conforme "as
narrativas míticas de cada povo. Há os que acreditam que a alma adentra o corpo
no momento do nascimento e aqueles que acreditam que o espírito já esteja presente no
momento da fecundação. Os que sofreram influência religiosa cristã costumam
entender que um feto de algumas semanas já é um ser vivo", argumenta. "E
isso, claro, vai influenciá-los a aceitar ou não o aborto." Ele cita,
contudo, pesquisas realizadas na etnografia dos kadiwéus mbayá-guaikurú e os
classifica como exemplos de uma população que via com naturalidade a prática do
aborto. "Seus ancestrais muitas vezes abortavam e, no lugar dessa criança
abortada, costumavam raptar uma criança de outro grupo", comenta.
Ao longo de quase 10 anos, nos anos 2000, Silva
participou da organização de oficinas de educação sexual em comunidades indígenas, principalmente visando a conter a propagação de infecções
sexualmente transmissíveis. Ele constatou que diversos métodos contraceptivos e
receitas abortivas, muitos deles ligados ao uso de plantas específicas, eram
utilizados pelas mulheres sem nenhum problema ou tabu. "Há, nos povos
[indígenas] a ideia e o sentimento de se fazer sexo para fins não reprodutivos,
de dar prazer aos parceiros", comenta. "Evidentemente que a entrada
em cena de religiões cristãs, sobretudo as evangélicas neopentecostais, com um
discurso bastante moralista, provocou mudanças de comportamento."
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Candomblé
De acordo com o sociólogo, antropólogo e
babalorixá Rodney William Eugênio, autor de, entre outros livros, A
Bênção aos Mais Velhos: Poder e Senioridade nos Terreiros de Candomblé, não
existe na religião africana nada que impeça a interrupção voluntária de uma
gravidez ou a decisão de não engravidar. "Não há juízo moral no candomblé, sobretudo essa moral
restritiva normalmente vinculada às religiões cristãs. Cada um exerce o direito
e a responsabilidade sobre seu próprio corpo", salienta ele. "Não há
nenhum fundamento que condene o aborto, muito menos os métodos contraceptivos.
Aliás, compreender o aborto dentro de um contexto histórico nos ajuda a incluir
a prática como uma condição diante do contexto de violência do processo de
escravidão e da vulnerabilidade social que seguiu no pós-abolição. Usar
qualquer história sagrada dos orixás para criticar o aborto, além de leviano, seria uma grande
hipocrisia. São as mulheres negras as maiores vítimas de procedimentos
mal-sucedidos. Portanto, deve ser uma preocupação dos terreiros que abortos,
quando necessários, possam ser feitos sem riscos e com a devida
assistência."
No entendimento do candomblé a vida de cada um
começa antes mesmo do nascimento na Terra. "Resumidamente, de acordo com as histórias sagradas dos
orixás, cada um de nós escolhe no Orun, o mundo das divindades e ancestrais, um
Ori, ou seja, cabeça, mente, consciência, para nascer no Aiyê, a Terra. Antes
do nosso nascimento nosso Ori escolherá um Odu, o caminho, destino, e deve
testemunhá-lo diante de Exu Onibodê Orun, o guardião da grande encruzilhada que
separa o Orun do Aiyê, e Orunmilá, o senhor dos oráculos", narra. "Dizemos
tudo que vamos realizar: vitórias, desafios, conquistas, dificuldades,
encontros, guerras e até o tempo em que vamos ficar na Terra. Quando
atravessamos o portal, Exu nos faz esquecer de tudo para que tenhamos direito
ao arbítrio", prossegue. "Sendo assim, o Ori de cada pessoa já
determinou como será sua vida, seu tempo no Aiyê e como será sua morte,
inclusive no caso de mortes prematuras. Nós escolhemos a quem nosso destino vai
se atrelar, em qual família nascermos, quem serão nossos pais e de que forma
morreremos."
Sobre os que têm esse nascimento interrompido,
também há uma explicação. "No Orun há uma sociedade dos Abikus, que são os
predestinados a não cumprir seu odu na Terra, nascendo mortos ou nem chegando a
nascer", esclarece Eugênio.
Fonte: BBC News Brasil
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