sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

Sérgio Ferrari: Os suíços querem frear suas multinacionais

Uma aliança de mais de 90 sindicatos, associações religiosas e culturais, entre outras, e Organizações Não Governamentais (ONGs) no campo dos direitos humanos e do meio ambiente atingiu um marco histórico na Suíça em janeiro passado. A partir de uma mobilização cidadã nunca antes vista, em apenas duas semanas essa coalizão coletou mais de 183.000 assinaturas – em um país de menos de 9 milhões de habitantes – em apoio à Iniciativa Popular em favor das Multinacionais Responsáveis.

Para isso, cerca de 10 mil voluntários foram mobilizados e instalaram mil estandes e pontos de coleta de assinaturas em todo o território nacional no segundo e terceiro finais de semana de janeiro. Se aceito nas urnas, o texto da Iniciativa Popular será integrado à Constituição. A partir de então, as grandes empresas suíças, ou empresas sediadas na Suíça, bem como suas subsidiárias e contratadas locais, terão que respeitar os direitos humanos e ambientais em todos os países onde fazem negócios e cumprir os mesmos requisitos e obrigações que na Suíça. Isso significa que qualquer pessoa ou organização prejudicada por essas empresas em qualquer país poderá buscar reparações. Além disso, será criada uma entidade independente para a supervisão e o controle das práticas comerciais.

O comitê que promove essa mudança constitucional é composto por personalidades de um amplo espectro político (dos socialistas e verdes à direita liberal, incluindo o centro democrata-cristão), empresários e representantes de várias ONGs. Falando a repórteres, Claude Ruey, ex-senador nacional do Partido Liberal Radical de direita e membro do comitê, reconheceu que em sua longa vida política nunca viu “uma causa pela qual tantas pessoas se envolvam”. E ele descreveu como “extraordinário” o fato de que 183.661 assinaturas foram coletadas em apenas 14 dias. “Isso mostra claramente”, enfatizou Ruey, “até que ponto a população apoia [esta proposta] e como nossos concidadãos compartilham um grande senso de justiça”. O significativo dessa mobilização cidadã é que ela conseguiu quase o dobro das 100 mil assinaturas exigidas pela Constituição e em um tempo recorde de apenas duas semanas. A Carta Magna Suíça concede um prazo de 18 meses para obter essas assinaturas.

·        Café “escravo”

Os argumentos e exemplos que serviram aos promotores para realizar a coleta de assinaturas são contundentes.

A Nutrade Comercial Exportadora Ltda., subsidiária da multinacional suíça de agroquímicos Syngenta, bem como o programa Nucoffee, também de propriedade da Syngenta, comercializaram café de fazendas brasileiras onde prevalecem condições de trabalho análogas à escravidão.

46% do café do Brasil –maior produtor e exportador mundial– vem do Estado de Minas Gerais. Vários estudos concluem que mais de dois terços da força de trabalho nas fazendas de café naquele Estado são informais: eles não têm direito a um salário mínimo, pagamento de horas extras ou bônus sociais. No setor cafeeiro brasileiro, casos de trabalho forçado e violações trabalhistas muito graves, bem como trabalho infantil, são regularmente denunciados.

Uma investigação conjunta da Coalizão Suíça para Multinacionais Responsáveis e do coletivo de pesquisa WAV denuncia 6 casos de exploração laboral e trabalho forçado no Brasil ligados à Nutrade ou ao programa Nucoffee. A Sucafina continuou a comprar esse produto da Nutrade mesmo depois que as autoridades brasileiras comprovaram graves irregularidades trabalhistas.

A Syngenta também é acusada de violações em outros países, como a contaminação da água nas cidades de Cipreses e Santa Rosa, nas terras altas da Costa Rica, devido ao uso de seus pesticidas. Valores de clorotalonil até 200 vezes superior ao limite legal foram detectados nas águas. Esse fungicida altamente tóxico é proibido na União Europeia e na Suíça porque é suspeito de ser cancerígeno.

·        Ouro “assassino”

A menos de 3.000 quilômetros das plantações de café de Minas Gerais está a mina de ouro La Esperanza, no sul do Peru. Situada a cerca de 2.000 metros acima do nível do mar, em uma área muito isolada do Departamento de Arequipa, a mina é de propriedade da empresa peruana Yanaquihua SAC. Todo o minério que extrai é vendido para a Metalor, uma controversa refinaria de ouro suíça, que o transforma em barras de ouro com destino final nos cofres da União dos Bancos Suíços (UBS), a principal instituição financeiro-bancária do país. A UBS e várias marcas de luxo suíças que lidam com esse metal precioso afirmam que ele é indiscutivelmente “sustentável”, ou seja, produzido em condições justas. No entanto, a realidade parece negá-lo, como evidenciado por uma série de acidentes dramáticos em La Esperanza.

O primeiro deles, um grave incêndio na galeria I, quando 27 mineiros morreram asfixiados. De acordo com a Coalizão Suíça para Multinacionais Responsáveis, a refinaria suíça Metalor, a única compradora desse ouro, deveria ter garantido que os padrões básicos de segurança fossem respeitados durante a extração para que nenhum trabalhador ficasse ferido. Além disso, conforme destacado pela Coalizão, as graves deficiências de segurança eram bem conhecidas, pois entre 2011 e 2022 ocorreram 196 acidentes com ferimentos e deficiências significativas e entre 2019 e 2022 três trabalhadores perderam a vida devido ao desabamento do telhado de uma galeria.

Um relatório das autoridades peruanas sobre o incêndio de 2023, ainda não publicado, revela a gravidade dos problemas de segurança naquela empresa. A mina não tinha um sistema de alarme para facilitar a evacuação coordenada em caso de desastre. Também não tinha um plano formal de evacuação de emergência e as rotas de evacuação e saídas de emergência careciam de sinalização. Por fim, não possuía um sistema adequado de proteção contra incêndio, como extintores, areia e tanques de água, e os abrigos de segurança estavam mal equipados. Tal estado de negligência poderia ter levado a consequências ainda mais graves, dado o número de detonadores e explosivos que os investigadores encontraram nas profundezas da mina, largados, sem a menor proteção. De qualquer forma, a empresa que opera a mina nega que os requisitos de segurança não tenham sido respeitados.

·        Da Namíbia à Argentina, passando pelo Amazonas

Exemplos de desrespeito absoluto aos direitos humanos e ambientais por parte de empresas suíças são reiterados e abundantes.

Entre eles, as 300.000 toneladas de resíduos tóxicos na Namíbia, onde a multinacional canadense Dundee Precious Metals processa cobre com alto teor de arsênico para abastecer a multinacional IXM, com sede em Genebra. Bem como o impacto desastroso sobre o desmatamento na Amazônia e no Cerrado pelas multinacionais do setor de agroalimentos Cargill, Bunge, Cofco International e Amaggi, todas com sede na Suíça.

Na Argentina, as emissões de poeira da fábrica Sika, multinacional suíça especializada em produtos químicos para construção, estão poluindo o bairro de Las Mercedes, a cerca de 35 quilômetros da cidade de Buenos Aires. A Coalizão Suíça confirmou que exames médicos realizados em 48 moradores do bairro mostram que essa poeira está deixando a população doente. Entre outros elementos nocivos, esse resíduo tóxico inclui partículas de dióxido de silício, elemento que a Organização Mundial da Saúde classificou como cancerígeno de altíssimo risco.

·        Um pouco de história

Em novembro de 2020, após uma mobilização muito ampla, cidadãs/ãos suíços votaram em uma primeira Iniciativa sobre Multinacionais Responsáveis. Embora o resultado tenha sido de 50,7% a favor, a proposta não teve o apoio da maioria dos cantões (províncias), como exige a Constituição. A oposição, em particular os setores de extrema direita e pró-negócios, argumentou que, se aprovada, essa iniciativa introduziria uma responsabilidade civil única e muito exigente na Suíça e que, como resultado, importantes grupos econômicos emigrariam para outros países com menos demandas. O Poder Executivo, cuja maioria é de direita, também se opôs, argumentando a necessidade de agir “de forma coordenada em nível internacional” para colocar as empresas suíças e da União Europeia “em pé de igualdade”. Ele então promoveu, como alternativa, um contraprojeto. Na realidade, um simples álibi para tranquilizar as consciências, pois visa apenas fazer com que as multinacionais informem sobre suas atividades, mas sem qualquer obrigação legal a cumprir.

Em julho de 2024, entrou em vigor na União Europeia a Diretiva sobre a devida diligência empresarial em matéria de sustentabilidade, que visa promover um comportamento empresarial sustentável e responsável nas operações das empresas e suas respectivas cadeias de valor globais dentro e fora da Europa. Esse passo adiante para controlar o comportamento das multinacionais europeias em questões de direitos humanos e normas ambientais até agora não teve impacto na política suíça, que nem sequer o incorporou como referência.

Por isso, a sociedade civil suíça está mais uma vez levantando sua voz para relançar um princípio essencial da justiça internacional e propor essa nova iniciativa. E, fundamentalmente, exigir, com a força de um altíssimo nível de mobilização, que muito em breve seja decidido nas urnas como devem se comportar no futuro as multinacionais suíças que, até agora, têm sido irresponsáveis e violadoras dos direitos básicos.

 

¨      Canadá: como os inquilinos foram à luta. Por Bruno Dobrusin

“Isso vai durar o quanto for necessário, até que a empresa ceda às nossas demandas”, dizia Beverly Henry ao canal de televisão estatal CBC. Em 1º de junho de 2023, Beverly e mais quinhentos inquilinos de um prédio no subúrbio York South-Weston, em Toronto, Canadá, começaram uma greve total de aluguéis em protesto aos aumentos excessivos realizados pela empresa proprietária do edifício, a Dream Unlimited. Um mês depois, mais cem vizinhos de um prédio vizinho se juntaram à greve contra a mesma empresa. No 1º de outubro, mais dois prédios, com mais ou menos duzentos inquilinos, haviam começado sua própria greve contra outra empresa, a Barney River. Quase dezesseis meses depois de iniciada a greve, ela finalmente chegou a um fim exitoso. À meia-noite de um sábado, a empresa proprietária enviou uma nota com as condições para iniciar a negociação e buscar uma resolução. Inédito e inesperado, centenas de inquilinos se sentaram à mesa para discutir frente a frente com uma empresa multinacional. É a união — e o número das pessoas participando — que faz a força. Pouco mais de um ano depois de decidir pela greve de vizinhos, ela alcançou vitórias significativas, como a diminuição dos aluguéis, compensações por anos sem reparos nos apartamentos e o reconhecimento do sindicato de inquilinos como um ator legítimo e coletivo. E o mais importante: ninguém perdeu a sua casa.

<><> Como chegamos a essa situação?

Estamos em um bairro da cidade com forte tradição de lutas de inquilinos? Na verdade, não. A maior parte das pessoas que participaram da greve de aluguéis não possuía nenhuma experiência prévia com movimentos sociais ou outras atividades políticas. O bairro de York South-Weston é um subúrbio em Toronto, onde em geral não costumam ocorrer os movimentos políticos mais relevantes da vida da cidade. Os subúrbios foram desenvolvidos para despolitizar e desconectar a população. Mas a organização de inquilinos, composta sobretudo por enfermeiras, cuidadoras de idosos, trabalhadores da rede hoteleira e da indústria, está rompendo esse padrão de se organizar com base no mercado, e está construindo uma organização com base na classe de inquilinos.

O Sindicato de Inquilinos de York South-Weston [YSW Tenant Union] surgiu há 5 anos com objetivos muitos mais modestos do que realizar greves de aluguel. Queríamos juntar as vozes dos inquilinos e das inquilinas do bairro e fazer força política contrária ao processo de deslocamento da classe trabalhadora e da apropriação de todos os espaços de vida por parte das grandes corporações. Mas percebemos rapidamente que nada disso seria simples, e que a luta contra essas corporações precisava ser muito mais profunda do que se imaginava. Essas corporações são parte daquilo que chamamos de o Complexo Industrial de Proprietário [Landlord Industrial Complex]. Controlam os empreendimentos imobiliários, as políticas de moradia dos governos (ou a sua ausência), são os principais doadores de campanhas e possuem uma política declaradamente antissindical contra qualquer organização coletiva de inquilinos.

Encarados por esse monstro de mil cabeças, aprofundamos a organização de base. Fazemos isso a partir de uma base territorial que são os prédios. A grande maioria dos inquilinos do bairro vivem em grandes edifícios, com quinze a trinta andares, com uma empresa que administra todo o edifício. O sindicato se organiza a partir de associações ou comitês em cada prédio, que se encarregam de manter a organização operante e a coordenar as lutas conjuntas com os outros prédios. Atualmente temos em torno de quinze prédios organizados, com ao redor de 2 mil inquilinos ativos no bairro. A organização em comitês locais é fundamental porque não remuneramos ninguém que possa dedicar seu integral à vida do sindicato, de modo que a base depende muito do contato dentro de cada edifício.

Durante esses anos, as lutas têm crescido em tamanho e em relevância política. Se no começo as principais demandas eram por falta de manutenção nos apartamentos, agora elas abrangem outras questões.

<><> Como se faz e se sustenta uma greve de inquilinos?

Deflagrar uma greve de inquilinos não é fácil e nem pode acontecer de um dia para o outro. Em nosso sindicato já estudávamos há alguns anos as melhores estratégias para confrontar as empresas, especialmente quando elas ignoravam ou não cumpriam com os acordos que havíamos conseguido. No caso do prédio localizado em 33 King St, com mais de 400 apartamentos, uma maioria de inquilinos chegou a esse ponto de saturação durante o inverno de 2023, quando a empresa proprietária do edifício, a Dream Unlimited, negou-se a cumprir o acordo assinado seis meses antes e a devolver o dinheiro pelos aumentos abusivos dos aluguéis. Embora o acordo tenha sido validado pelo Tribunal de Inquilinos e Proprietários da província, a empresa não estava obrigada a cumpri-lo. Depois de anos de mobilização diante da empresa, da casa do CEO e de outros empreendimentos da Dream na cidade, ficou evidente que a única alternativa possível para forçar a empresa a cumprir o acordo e se sentar para negociar as outras demandas do sindicato era realizar uma greve total de aluguel com a adesão maior de inquilinos do edifício.

Foi assim que, entre março e junho de 2023, um grupo grande de inquilinos organizados no edifício se deu como tarefa convencer um mínimo de duzentos apartamentos a se juntarem à greve. Esse número indicava a metade mais um dos apartamento do prédio e um apoio, portanto, incontestável à greve. Para chegar a esse número foi preciso bater em portas semanalmente, organizar grupos de Whatsapp, ir aos pontos de ônibus pela manhã cedo, fazer eventos sociais, tudo para conseguir ter conversas cara a cara com as pessoas potencialmente interessadas na greve. Após três meses de preparação, se chegou ao número estabelecido de apartamentos e se declarou, a partir de 1º de junho de 2023, a greve no edifício. Essa greve foi crescendo e se expandido aos demais prédios que fazem parte do sindicato.

Muitas vezes nos perguntam sobre a legalidade das greves e sobre os medos de despejos por parte das autoridades. A realidade é que as greves constituem uma ruptura do contrato entre inquilino e proprietário. Mas esse contrato já havia sido rasgado em mil pedaços pelos abusos das empresas, e é isso que os inquilinos respondem. O fato de nenhum das centenas de inquilinos participando das greves terem sido despejados se deve, essencialmente, ao número de pessoas envolvidas.

Para realizar um despejo, seria preciso desalojar centenas de pessoas ao mesmo tempo. E essas pessoas estão organizadas, preparadas para isso e dispostas a lutar. Até o momento, nenhum juiz assinou essa ordem. Além disso, existe uma estratégia legal que complementa a ação coletiva. Essa estratégia é, essencialmente, demonstrar as violações constantes dos direitos dos inquilinos por parte das empresas proprietárias. Isso dificulta que elas acionem mecanismos judiciais.

Dizemos, então, que a greve se sustenta por sua massificação e também pelo seu ativismo. Não podemos ser ingênuos e esperar que um tribunal resolva a questão. A pressão sobre as administradoras é contínua e buscamos realizar ações que perturbem a sua vida pelo menos uma vez por semana.

<><> Para onde vai o movimento?

As greves em Toronto têm demonstrado que os vizinhos organizados não têm por que temer as grandes empresas que concentram as moradias e nem o discurso dominante que indica que ser inquilino é ser menos, ou que apenas a propriedade faz a felicidade. Além da manutenção das unidades, meses de aluguel em compensação e mudanças nas dinâmicas de vida nos prédios, os inquilinos ganharam dignidade e constroem uma experiência coletiva que lhes dá esperança.

Essas greves podem ser reproduzidas em outros lugares? Acreditamos que sim. Elas triunfaram apesar de serem totalmente ilegais e de romperem com as normas estabelecidas de protesto. Triunfaram, essencialmente, porque centenas de pessoas se juntaram e consolidaram uma luta coletiva, em tempo que essas lutas parecem ser minoritárias. Desde o começo da greve, e sobretudo a partir da vitória, chegaram inúmeros chamados e mensagens de inquilinos de toda a província e de todo o país, pedindo apoio para construírem suas próprias greves.

Está claro que o movimento de inquilinos pode se converter em um dos movimentos populares mais importante de nossa época. O desafio agora é dar a ela uma base de sustentação que permita responder a esses chamados, consolidar a organização e ampliar, assim, mais conflitos pela cidade, pela província e pelo país. Sabemos que não será fácil, mas parece que estamos em um bom caminho.

 

Fonte: Outras Palavras

 

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