Sérgio Ferrari: Os suíços querem frear
suas multinacionais
Uma aliança de mais de 90 sindicatos, associações
religiosas e culturais, entre outras, e Organizações Não Governamentais (ONGs)
no campo dos direitos humanos e do meio ambiente atingiu um marco histórico na
Suíça em janeiro passado. A partir de uma mobilização cidadã nunca antes vista,
em apenas duas semanas essa coalizão coletou mais de 183.000 assinaturas – em
um país de menos de 9 milhões de habitantes – em apoio à Iniciativa Popular em favor das Multinacionais
Responsáveis.
Para isso, cerca de 10 mil voluntários foram
mobilizados e instalaram mil estandes e pontos de coleta de assinaturas em todo
o território nacional no segundo e terceiro finais de semana de janeiro. Se aceito
nas urnas, o texto da Iniciativa Popular será integrado à Constituição. A
partir de então, as grandes empresas suíças, ou empresas sediadas na Suíça, bem
como suas subsidiárias e contratadas locais, terão que respeitar os direitos
humanos e ambientais em todos os países onde fazem negócios e cumprir os mesmos
requisitos e obrigações que na Suíça. Isso significa que qualquer pessoa ou
organização prejudicada por essas empresas em qualquer país poderá buscar
reparações. Além disso, será criada uma entidade independente para a supervisão
e o controle das práticas comerciais.
O comitê que promove essa mudança constitucional é
composto por personalidades de um amplo espectro político (dos socialistas e
verdes à direita liberal, incluindo o centro democrata-cristão), empresários e
representantes de várias ONGs. Falando a repórteres, Claude Ruey, ex-senador
nacional do Partido Liberal Radical de direita e membro do comitê, reconheceu
que em sua longa vida política nunca viu “uma causa pela qual tantas pessoas se
envolvam”. E ele descreveu como “extraordinário” o fato de que 183.661
assinaturas foram coletadas em apenas 14 dias. “Isso mostra claramente”,
enfatizou Ruey, “até que ponto a população apoia [esta proposta] e como nossos
concidadãos compartilham um grande senso de justiça”. O significativo dessa
mobilização cidadã é que ela conseguiu quase o dobro das 100 mil assinaturas
exigidas pela Constituição e em um tempo recorde de apenas duas semanas. A
Carta Magna Suíça concede um prazo de 18 meses para obter essas assinaturas.
·
Café “escravo”
Os argumentos e exemplos que serviram aos promotores
para realizar a coleta de assinaturas são contundentes.
A Nutrade Comercial Exportadora Ltda., subsidiária da
multinacional suíça de agroquímicos Syngenta, bem como o programa Nucoffee,
também de propriedade da Syngenta, comercializaram café de fazendas brasileiras
onde prevalecem condições de trabalho análogas à escravidão.
46% do café do Brasil –maior produtor e exportador
mundial– vem do Estado de Minas Gerais. Vários estudos concluem que mais de
dois terços da força de trabalho nas fazendas de café naquele Estado são
informais: eles não têm direito a um salário mínimo, pagamento de horas extras
ou bônus sociais. No setor cafeeiro brasileiro, casos de trabalho forçado e violações
trabalhistas muito graves, bem como trabalho infantil, são regularmente
denunciados.
Uma investigação conjunta da Coalizão Suíça para
Multinacionais Responsáveis e do coletivo de pesquisa WAV denuncia 6 casos de
exploração laboral e trabalho forçado no Brasil ligados à Nutrade ou ao
programa Nucoffee. A Sucafina continuou a comprar esse produto da Nutrade mesmo
depois que as autoridades brasileiras comprovaram graves irregularidades
trabalhistas.
A Syngenta também é acusada de violações em outros países,
como a contaminação da água nas cidades de Cipreses e Santa Rosa, nas terras
altas da Costa Rica, devido ao uso de seus pesticidas. Valores de clorotalonil
até 200 vezes superior ao limite legal foram detectados nas águas. Esse
fungicida altamente tóxico é proibido na União Europeia e na Suíça porque é
suspeito de ser cancerígeno.
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Ouro “assassino”
A menos de 3.000 quilômetros das plantações de café de
Minas Gerais está a mina de ouro La Esperanza, no sul do Peru. Situada a cerca
de 2.000 metros acima do nível do mar, em uma área muito isolada do
Departamento de Arequipa, a mina é de propriedade da empresa peruana Yanaquihua
SAC. Todo o minério que extrai é vendido para a Metalor, uma controversa
refinaria de ouro suíça, que o transforma em barras de ouro com destino final
nos cofres da União dos Bancos Suíços (UBS), a principal instituição
financeiro-bancária do país. A UBS e várias marcas de luxo suíças que lidam com
esse metal precioso afirmam que ele é indiscutivelmente “sustentável”, ou seja,
produzido em condições justas. No entanto, a realidade parece negá-lo, como
evidenciado por uma série de acidentes dramáticos em La Esperanza.
O primeiro deles, um grave incêndio na galeria I,
quando 27 mineiros morreram asfixiados. De acordo com a Coalizão Suíça para
Multinacionais Responsáveis, a refinaria suíça Metalor, a única compradora
desse ouro, deveria ter garantido que os padrões básicos de segurança fossem
respeitados durante a extração para que nenhum trabalhador ficasse ferido. Além
disso, conforme destacado pela Coalizão, as graves deficiências de segurança
eram bem conhecidas, pois entre 2011 e 2022 ocorreram 196 acidentes com
ferimentos e deficiências significativas e entre 2019 e 2022 três trabalhadores
perderam a vida devido ao desabamento do telhado de uma galeria.
Um relatório das autoridades peruanas sobre o incêndio
de 2023, ainda não publicado, revela a gravidade dos problemas de segurança
naquela empresa. A mina não tinha um sistema de alarme para facilitar a
evacuação coordenada em caso de desastre. Também não tinha um plano formal de
evacuação de emergência e as rotas de evacuação e saídas de emergência careciam
de sinalização. Por fim, não possuía um sistema adequado de proteção contra
incêndio, como extintores, areia e tanques de água, e os abrigos de segurança
estavam mal equipados. Tal estado de negligência poderia ter levado a
consequências ainda mais graves, dado o número de detonadores e explosivos que
os investigadores encontraram nas profundezas da mina, largados, sem a menor
proteção. De qualquer forma, a empresa que opera a mina nega que os requisitos de
segurança não tenham sido respeitados.
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Da Namíbia à Argentina,
passando pelo Amazonas
Exemplos de desrespeito absoluto aos direitos humanos e
ambientais por parte de empresas suíças são reiterados e abundantes.
Entre eles, as 300.000 toneladas de resíduos tóxicos na
Namíbia, onde a multinacional canadense Dundee Precious Metals processa cobre
com alto teor de arsênico para abastecer a multinacional IXM, com sede em
Genebra. Bem como o impacto desastroso sobre o desmatamento na Amazônia e no Cerrado
pelas multinacionais do setor de agroalimentos Cargill, Bunge, Cofco
International e Amaggi, todas com sede na Suíça.
Na Argentina, as emissões de poeira da fábrica Sika,
multinacional suíça especializada em produtos químicos para construção, estão poluindo o bairro de Las
Mercedes,
a cerca de 35 quilômetros da cidade de Buenos Aires. A Coalizão Suíça confirmou
que exames médicos realizados em 48 moradores do bairro mostram que essa poeira
está deixando a população doente. Entre outros elementos nocivos, esse resíduo
tóxico inclui partículas de dióxido de silício, elemento que a Organização
Mundial da Saúde classificou como cancerígeno de altíssimo risco.
·
Um pouco de história
Em novembro de 2020, após uma mobilização muito ampla,
cidadãs/ãos suíços votaram em uma primeira Iniciativa sobre Multinacionais
Responsáveis. Embora o resultado tenha sido de 50,7% a favor, a proposta não
teve o apoio da maioria dos cantões (províncias), como exige a Constituição. A
oposição, em particular os setores de extrema direita e pró-negócios,
argumentou que, se aprovada, essa iniciativa introduziria uma responsabilidade
civil única e muito exigente na Suíça e que, como resultado, importantes grupos
econômicos emigrariam para outros países com menos demandas. O Poder Executivo,
cuja maioria é de direita, também se opôs, argumentando a necessidade de agir
“de forma coordenada em nível internacional” para colocar as empresas suíças e
da União Europeia “em pé de igualdade”. Ele então promoveu, como alternativa,
um contraprojeto. Na realidade, um simples álibi para tranquilizar as
consciências, pois visa apenas fazer com que as multinacionais informem sobre
suas atividades, mas sem qualquer obrigação legal a cumprir.
Em julho de 2024, entrou em vigor na União Europeia a
Diretiva sobre a devida diligência empresarial em matéria de sustentabilidade,
que visa promover um comportamento empresarial sustentável e responsável nas
operações das empresas e suas respectivas cadeias de valor globais dentro e
fora da Europa. Esse passo adiante para controlar o comportamento das
multinacionais europeias em questões de direitos humanos e normas ambientais
até agora não teve impacto na política suíça, que nem sequer o incorporou como
referência.
Por isso, a sociedade civil suíça está mais uma vez
levantando sua voz para relançar um princípio essencial da justiça
internacional e propor essa nova iniciativa. E, fundamentalmente, exigir, com a
força de um altíssimo nível de mobilização, que muito em breve seja decidido
nas urnas como devem se comportar no futuro as multinacionais suíças que, até agora,
têm sido irresponsáveis e violadoras dos direitos básicos.
¨ Canadá: como os inquilinos foram à
luta. Por Bruno Dobrusin
“Isso vai durar o quanto for necessário, até que a
empresa ceda às nossas demandas”, dizia Beverly Henry ao canal de televisão
estatal CBC. Em 1º de junho de 2023, Beverly e mais quinhentos inquilinos de um
prédio no subúrbio York South-Weston, em Toronto, Canadá, começaram uma greve
total de aluguéis em protesto aos aumentos excessivos realizados pela empresa
proprietária do edifício, a Dream Unlimited. Um mês depois, mais cem vizinhos
de um prédio vizinho se juntaram à greve contra a mesma empresa. No 1º de
outubro, mais dois prédios, com mais ou menos duzentos inquilinos, haviam
começado sua própria greve contra outra empresa, a Barney River. Quase
dezesseis meses depois de iniciada a greve, ela finalmente chegou a um fim
exitoso. À meia-noite de um sábado, a empresa proprietária enviou uma nota com
as condições para iniciar a negociação e buscar uma resolução. Inédito e
inesperado, centenas de inquilinos se sentaram à mesa para discutir frente a
frente com uma empresa multinacional. É a união — e o número das pessoas
participando — que faz a força. Pouco mais de um ano depois de decidir pela
greve de vizinhos, ela alcançou vitórias significativas, como a diminuição dos
aluguéis, compensações por anos sem reparos nos apartamentos e o reconhecimento
do sindicato de inquilinos como um ator legítimo e coletivo. E o mais
importante: ninguém perdeu a sua casa.
<><>
Como chegamos a essa situação?
Estamos em um bairro da cidade com forte tradição de
lutas de inquilinos? Na verdade, não. A maior parte das pessoas que
participaram da greve de aluguéis não possuía nenhuma experiência prévia com
movimentos sociais ou outras atividades políticas. O bairro de York
South-Weston é um subúrbio em Toronto, onde em geral não costumam ocorrer os
movimentos políticos mais relevantes da vida da cidade. Os subúrbios foram
desenvolvidos para despolitizar e desconectar a população. Mas a organização de
inquilinos, composta sobretudo por enfermeiras, cuidadoras de idosos,
trabalhadores da rede hoteleira e da indústria, está rompendo esse padrão de se
organizar com base no mercado, e está construindo uma organização com base na
classe de inquilinos.
O Sindicato de Inquilinos de York South-Weston [YSW
Tenant Union] surgiu há 5 anos com objetivos muitos mais modestos do que
realizar greves de aluguel. Queríamos juntar as vozes dos inquilinos e das
inquilinas do bairro e fazer força política contrária ao processo de deslocamento
da classe trabalhadora e da apropriação de todos os espaços de vida por parte
das grandes corporações. Mas percebemos rapidamente que nada disso seria
simples, e que a luta contra essas corporações precisava ser muito mais
profunda do que se imaginava. Essas corporações são parte daquilo que chamamos
de o Complexo Industrial de Proprietário [Landlord
Industrial Complex]. Controlam os empreendimentos imobiliários, as
políticas de moradia dos governos (ou a sua ausência), são os principais
doadores de campanhas e possuem uma política declaradamente antissindical
contra qualquer organização coletiva de inquilinos.
Encarados por esse monstro de mil cabeças, aprofundamos
a organização de base. Fazemos isso a partir de uma base territorial que são os
prédios. A grande maioria dos inquilinos do bairro vivem em grandes edifícios,
com quinze a trinta andares, com uma empresa que administra todo o edifício. O
sindicato se organiza a partir de associações ou comitês em cada prédio, que se
encarregam de manter a organização operante e a coordenar as lutas conjuntas
com os outros prédios. Atualmente temos em torno de quinze prédios organizados,
com ao redor de 2 mil inquilinos ativos no bairro. A organização em comitês
locais é fundamental porque não remuneramos ninguém que possa dedicar seu
integral à vida do sindicato, de modo que a base depende muito do contato
dentro de cada edifício.
Durante esses anos, as lutas têm crescido em tamanho e
em relevância política. Se no começo as principais demandas eram por falta de
manutenção nos apartamentos, agora elas abrangem outras questões.
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Como se faz e se sustenta uma greve de inquilinos?
Deflagrar uma greve de inquilinos não é fácil e nem
pode acontecer de um dia para o outro. Em nosso sindicato já estudávamos há
alguns anos as melhores estratégias para confrontar as empresas, especialmente
quando elas ignoravam ou não cumpriam com os acordos que havíamos conseguido.
No caso do prédio localizado em 33 King St, com mais de 400 apartamentos, uma
maioria de inquilinos chegou a esse ponto de saturação durante o inverno de
2023, quando a empresa proprietária do edifício, a Dream Unlimited, negou-se a
cumprir o acordo assinado seis meses antes e a devolver o dinheiro pelos
aumentos abusivos dos aluguéis. Embora o acordo tenha sido validado pelo
Tribunal de Inquilinos e Proprietários da província, a empresa não estava
obrigada a cumpri-lo. Depois de anos de mobilização diante da empresa, da casa
do CEO e de outros empreendimentos da Dream na cidade, ficou evidente que a única
alternativa possível para forçar a empresa a cumprir o acordo e se sentar para
negociar as outras demandas do sindicato era realizar uma greve total de
aluguel com a adesão maior de inquilinos do edifício.
Foi assim que, entre março e junho de 2023, um grupo
grande de inquilinos organizados no edifício se deu como tarefa convencer um
mínimo de duzentos apartamentos a se juntarem à greve. Esse número indicava a
metade mais um dos apartamento do prédio e um apoio, portanto, incontestável à
greve. Para chegar a esse número foi preciso bater em portas semanalmente,
organizar grupos de Whatsapp, ir aos pontos de ônibus pela manhã cedo, fazer
eventos sociais, tudo para conseguir ter conversas cara a cara com as pessoas
potencialmente interessadas na greve. Após três meses de preparação, se chegou
ao número estabelecido de apartamentos e se declarou, a partir de 1º de junho
de 2023, a greve no edifício. Essa greve foi crescendo e se expandido aos
demais prédios que fazem parte do sindicato.
Muitas vezes nos perguntam sobre a legalidade das
greves e sobre os medos de despejos por parte das autoridades. A realidade é
que as greves constituem uma ruptura do contrato entre inquilino e
proprietário. Mas esse contrato já havia sido rasgado em mil pedaços pelos
abusos das empresas, e é isso que os inquilinos respondem. O fato de nenhum das
centenas de inquilinos participando das greves terem sido despejados se deve,
essencialmente, ao número de pessoas envolvidas.
Para realizar um despejo, seria preciso desalojar
centenas de pessoas ao mesmo tempo. E essas pessoas estão organizadas,
preparadas para isso e dispostas a lutar. Até o momento, nenhum juiz assinou
essa ordem. Além disso, existe uma estratégia legal que complementa a ação
coletiva. Essa estratégia é, essencialmente, demonstrar as violações constantes
dos direitos dos inquilinos por parte das empresas proprietárias. Isso
dificulta que elas acionem mecanismos judiciais.
Dizemos, então, que a greve se sustenta por sua
massificação e também pelo seu ativismo. Não podemos ser ingênuos e esperar que
um tribunal resolva a questão. A pressão sobre as administradoras é contínua e
buscamos realizar ações que perturbem a sua vida pelo menos uma vez por semana.
<><> Para onde vai o movimento?
As greves em Toronto têm demonstrado que os vizinhos
organizados não têm por que temer as grandes empresas que concentram as
moradias e nem o discurso dominante que indica que ser inquilino é ser menos,
ou que apenas a propriedade faz a felicidade. Além da manutenção das unidades,
meses de aluguel em compensação e mudanças nas dinâmicas de vida nos prédios,
os inquilinos ganharam dignidade e constroem uma experiência coletiva que lhes
dá esperança.
Essas greves podem ser reproduzidas em outros lugares?
Acreditamos que sim. Elas triunfaram apesar de serem totalmente ilegais e de
romperem com as normas estabelecidas de protesto. Triunfaram, essencialmente,
porque centenas de pessoas se juntaram e consolidaram uma luta coletiva, em
tempo que essas lutas parecem ser minoritárias. Desde o começo da greve, e
sobretudo a partir da vitória, chegaram inúmeros chamados e mensagens de
inquilinos de toda a província e de todo o país, pedindo apoio para construírem
suas próprias greves.
Está claro que o movimento de inquilinos pode se
converter em um dos movimentos populares mais importante de nossa época. O
desafio agora é dar a ela uma base de sustentação que permita responder a esses
chamados, consolidar a organização e ampliar, assim, mais conflitos pela
cidade, pela província e pelo país. Sabemos que não será fácil, mas parece que
estamos em um bom caminho.
Fonte: Outras
Palavras
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