'O que nos torna
humanos? A resposta de hoje não é a mesma de três anos atrás'
O que
nos torna humanos?
É uma questão sobre
a qual o neurocientista Rodrigo Quian Quiroga reflete em seu último
livro Cosas que nunca creeríais: De la ciencia ficción a la
neurociencia ("Coisas que você nunca acreditaria: da ficção
científica à neurociência", em tradução livre), publicado em 2024.
Um dos filósofos
mais célebres da história, René Descartes, pensava que o que nos torna humanos
era a glândula pineal — que, segundo ele, facilitava a comunicação entre o
corpo e a mente.
E embora a ciência tenha
descartado há muito tempo a ideia de que a mente é uma entidade diferente do
cérebro, a questão permanece válida.
Para Quian Quiroga,
não se trata de uma glândula nem de um órgão — mas, sim, de vários fatores que
nos tornam humanos, como o bom senso ou a linguagem que desenvolvemos
há 100 mil anos.
O físico argentino
de 57 anos adverte em entrevista à BBC News Mundo, serviço de notícias em
espanhol da BBC, que é possível que a inteligência
artificial alcance
e supere a inteligência humana, mas afirma que não devemos ter medo dela, e
muito menos pensar que a humanidade vai "acabar" em cenários de
ficção científica, como os filmes O Exterminador do
Futuro ou Planeta dos Macacos.
Quian Quiroga, que
descobriu os "neurônios Jennifer Aniston", também conhecidos como
neurônios conceituais, é professor do ICREA no Instituto de Pesquisa do
Hospital del Mar, em Barcelona, e foi diretor do
Centro de Neurociência de Sistemas da Universidade de Leicester, na Inglaterra.
A BBC News Mundo
conversou com ele no âmbito do Hay Festival, que acontece em Cartagena entre 30
de janeiro e 2 de fevereiro.
LEIA A ENTREVISTA:
·
A
ciência está conseguindo o que parecia impossível há décadas. Há avanços
observados na ficção científica que você teme que se tornem realidade?
Rodrigo Quian
Quiroga - Muita gente tem medo dos avanços da inteligência artificial,
porque acredita que cenários distópicos como o do filme de ficção
científica O Exterminador do Futuro serão replicados.
Mas, pelo
contrário, a inteligência artificial oferece muitas vantagens.
Pode ajudar em
análises médicas, por exemplo. Não vai substituir um médico, mas pode servir
como ferramenta para analisar imagens ou estudos.
Há alguns anos,
ficamos surpresos com o fato de a inteligência artificial conseguir vencer os
melhores jogadores de xadrez do mundo.
Mas hoje os mesmos
jogadores de xadrez usam inteligência artificial para aprender a jogar xadrez
ou melhorar.
Como acontece com
toda tecnologia, a IA pode ser
bem ou mal utilizada. É o ser humano quem decide.
·
Mas
a inteligência humana ainda é muito superior à IA na maioria dos aspectos. Será
que algum dia ela será capaz de reproduzir a inteligência humana?
Rodrigo Quian
Quiroga - Não há razão para supor que a IA não possa reproduzir a
inteligência humana.
É algo que pode
acontecer, mas faltam duas coisas à IA.
Primeiro, ela não
tem o que é conhecido como inteligência geral, que é a capacidade de aprender
novas tarefas em contextos completamente novos e sem treinamento.
É algo que fazemos
o tempo todo: enfrentamos situações que são novas, usamos o bom senso e sabemos
como reagir.
Explicado de uma
forma mais simples, para replicar a inteligência humana, a IA precisa
desenvolver um bom senso que ainda não tem e não sabemos como proporcionar a
ela.
A outra coisa que
falta a ela é a consciência da sua existência, que nós temos.
Não sei se isso
pode ser alcançado dentro de dois anos, uma década ou dois séculos.
Mas, em princípio,
não descarto que um computador não possa ter estes dois elementos, porque não
há razão para que uma máquina não possa replicar o comportamento de um cérebro.
Isso é algo que
parece distante por enquanto, pois não se sabe qual é o ingrediente que falta
para que uma máquina seja consciente.
·
Há
um debate sobre se deveria haver um limite para o avanço dos computadores, e se
eles poderiam um dia ultrapassar a inteligência humana. O que você acha?
Rodrigo Quian
Quiroga - Isso é uma utopia. Não pode haver limite para o avanço dos
computadores.
Na prática, é algo
impossível de regular.
Qualquer pessoa
pode desenvolver um algoritmo de IA em casa, com seu laptop. Você não precisa
de um supercomputador da melhor universidade dos Estados Unidos para fazer
isso.
Portanto, acredito
que é impraticável impor limites aos avanços da IA.
Quanto a saber se
vai ser capaz de ultrapassar a inteligência humana, acho que é provável que a
IA ultrapasse a inteligência humana se conseguir ter inteligência geral, que é
a capacidade de desenvolver o bom senso.
·
Muitos
têm medo disso, pois na ficção científica vemos como a tecnologia criada pelos
seres humanos acaba nos dominando.
Rodrigo Quian
Quiroga - A tecnologia não precisa nos dominar. Quando começamos a falar
sobre essas coisas imaginamos cenários como o do filme O Exterminador do
Futuro.
Mas não se trata de
uma competição. Um computador não vai competir com os seres humanos pelos recursos
de que eles precisam, como terra e alimentos.
O computador só
precisa de energia, e isso é muito fácil de gerenciar.
Portanto, não vejo
por que um computador precisaria entrar em guerra com um ser humano.
Não devemos temer a
inteligência artificial, mas o que um ser humano pode fazer com ela.
A tecnologia não é
boa nem ruim, mas sim o uso que os seres humanos fazem dela.
Uma coisa que me dá
medo são os vídeos falsos ou deepfakes que as pessoas fazem, que
podem ser usados para difamar outras pessoas.
Isso é possível
hoje graças à IA, mas a culpa não é da tecnologia, mas de quem faz o vídeo
falso.
·
A
descoberta dos neurônios Jennifer Aniston, também conhecidos como neurônios
conceituais, mudou radicalmente sua carreira científica. O que o levou a esta
descoberta?
Quiroga -
Descobri esses neurônios após registrar neurônios individuais em seres humanos
por meio de eletrodos implantados por razões clínicas para curar pacientes com
epilepsia.
A primeira coisa
que vejo é que há neurônios que respondem a conceitos específicos. Seja
Jennifer Aniston, Halle Berry, Maradona, ou quem quer que seja.
Eles não respondem
a detalhes, apenas ao conceito.
Ou seja, eles não
respondem à aparência da pessoa em uma determinada foto, mas respondem à pessoa
independentemente de como você a mostra.
Esta descoberta
surpreendente foi a primeira etapa.
Na segunda fase,
vimos como estes neurônios estão envolvidos na formação e codificação de
memórias, como quando uma pessoa se lembrava de algo novo, esses neurônios
conseguiam codificar memórias novas.
Mas a terceira
etapa foi a mais interessante: percebemos que estes neurônios oferecem uma
representação abstrata de memórias e pensamentos, algo que nunca foi visto em
nenhum outro animal.
Depois de fazer
experiências em macacos, ratos e outras espécies, até agora não foram
encontrados neurônios deste tipo, e defendo que nunca os encontraremos. Para
mim, estes neurônios são exclusivos dos seres humanos.
Eles são a base da
inteligência humana, que é muito mais abstrata e de alto nível em comparação
com a de um macaco ou outro animal.
·
Há
alguns anos, dizia-se que as máquinas só podiam responder a rotinas escritas
por um usuário e, em princípio, não podiam pensar por si só. Será que a ciência
está mudando isso?
Rodrigo Quian
Quiroga - O que é fascinante sobre a IA é que dizer que as máquinas apenas
respondem a rotinas escritas era algo verdadeiro há dez anos, mas não é verdade
hoje, graças aos avanços que foram feitos.
Atualmente,
questiono isso. Não se pode mais dizer que a máquina responde apenas a códigos
ou rotinas escritas por um usuário
Hoje, você pode
fazer com que uma máquina aprenda e comece a responder não apenas com base em
determinadas regras, mas com base em tudo o que ela aprendeu treinando a si
mesma.
Neste sentido, não
é mais tão diferente do ser humano.
·
Há
cientistas que afirmam que o cérebro também é, no fundo, uma máquina. Você
concorda?
Rodrigo Quian
Quiroga - Sim. É o que em filosofia se chama materialismo.
Baseia-se no fato
de que a atividade, os pensamentos, os sentimentos, as emoções são nada mais
nada menos do que a atividade dos neurônios.
O substrato de tudo
se deve ao disparo dos neurônios.
Não se trata de
algo mágico ou de a mente estar dissociada do cérebro, como afirmou René
Descartes séculos atrás.
·
Então,
quais são as diferenças fundamentais entre a inteligência de um ser humano e a
de um computador?
Quiroga - Em
relação ao substrato material, não há diferenças entre a inteligência de um ser
humano e a que um computador poderia chegar a ter.
Nosso cérebro
funciona por meio de conexões entre neurônios, e a base dos neurônios, a base
da vida, é o carbono.
Uma máquina
funciona por conexões, transistores ou circuitos. E a base disso é o silício.
Então, não vejo por
que algo feito com carbono não pode ser replicado com silício ou por que algo
feito com silício não pode replicar o que foi feito com carbono.
Mas o que falta à
IA é algo que já disse antes: falta a ela desenvolver inteligência geral e
consciência da sua existência.
·
No
livro, você também aborda a consciência animal. Dada a pouca diferença entre o
DNA dos seres humanos e o dos primatas superiores, você acha que ainda é
possível que os animais um dia reproduzam a inteligência humana?
Rodrigo Quian
Quiroga - Pode-se dizer que o DNA dos primatas é muito parecido com o DNA
humano.
O cérebro humano é
três vezes maior que o de um chimpanzé.
As evidências
sugerem que a diferença não está ligada ao DNA — mas, sim, que há algo
anatomicamente no cérebro humano que é irreproduzível.
Em outras espécies,
o substrato é muito parecido, mas a diferença é que ele funciona de forma
distinta.
É como se
estivéssemos comparando dois computadores, um deles um pouco maior que o outro,
mas aquele que é um pouco maior é infinitamente mais poderoso que o menor.
Assim, pode-se
dizer que a diferença entre o cérebro humano e o de outras espécies não está
ligada às suas características fisiológicas — mas, sim, ao fato de funcionar de
forma diferente.
·
Já
houve tentativas de ensinar coisas aos primatas sem muito sucesso. O que
aconteceu exatamente, e o que torna difícil ensiná-los?
Rodrigo Quian
Quiroga - Muitas experiências foram feitas nas quais os chimpanzés foram
educados desde pequenos, como se fossem bebês humanos.
Mas chega um
momento em que a inteligência do ser humano dispara, e a do primata permanece
estagnada.
A diferença entre o
homem e os outros animais é que os seres humanos vêm evoluindo com a linguagem
há cerca de 100 mil anos.
Ao usar a
linguagem, pensamos com abstrações, porque todo substantivo é uma abstração;
palavras são abstrações da realidade.
O primata não tem
isso.
O macaco não tem
linguagem. Ele guincha, tem uma maneira de se comunicar, mas não atribui
palavras às coisas ao seu redor.
Pensar de uma
maneira mais abstrata e 100 mil anos de evolução com o uso da
linguagem são coisas que abriram caminho para a criação de neurônios
conceituais.
·
Então
a linguagem é outra coisa que nos define como espécie, além da mente, do bom
senso e da consciência...
Quiroga - Sim,
mas um macaco também pode ter bom senso.
Ele pode saber que
há algo que não deve fazer, e prever que existe um perigo.
Seu bom senso não
tem o nível de sofisticação que a inteligência geral do ser humano tem, mas
pelo menos tem um bom senso, algo que as máquinas ainda não têm.
As máquinas
confundem, te enganam de certa forma, porque são imbatíveis em tarefas muito
específicas.
Se você colocar uma
máquina para jogar xadrez, ela é imbatível, mas esta mesma máquina não consegue
reconhecer rostos.
Não pode sair para
a rua e se virar sozinha, se você a colocar em um corpo. Ela só sabe jogar
xadrez, e nada mais
·
Que
grande desafio a neurociência enfrenta neste momento?
Rodrigo Quian
Quiroga - No epílogo do livro, falo sobre como não só a neurociência está
mudando, mas a filosofia também, e muito rápido.
Há uma revolução e
uma mudança de paradigma.
Acho que o desafio
que a neurociência enfrenta é que ela está no meio de uma revolução, está se
refundando, mas grande parte da ciência e do pensamento humano também está na mesma
situação.
Você se pergunta: o
que nos torna humanos? Mas a resposta que você dá hoje não é a mesma que você
dava há três anos.
A diferença entre
um humano e um androide não é tão óbvia, porque há coisas que antes eram
atribuídas exclusivamente aos humanos, mas hoje vemos que as máquinas também
podem fazer.
Então, acredito que
os desafios não são apenas tecnológicos e de experimentos específicos, mas são
muito mais profundos, porque é assim que estamos repensando as grandes questões
da história da humanidade.
O que nos torna
humanos? O que é consciência?
Há muitas perguntas
que achávamos que não poderiam ser respondidas, e hoje estamos começando a
responder.
Ou são perguntas
que achávamos que já tínhamos respondido, mas agora estamos mudando a maneira de
ver as coisas e repensando o que achávamos que sabíamos antes.
·
Que
avanços vistos na ficção científica você considera impossíveis de tornar
realidade?
Quiroga -
Acredito que a possibilidade de ser imortal, de prolongar a vida após a morte,
é impossível.
Você pode acreditar
que existe vida após a morte, por uma questão religiosa, e isso é aceitável.
Mas acho que é
impossível prolongar a vida por meio de um dispositivo de IA. Acredito que a
partir do momento em que você morre, sua vida na Terra acaba.
Se existe vida após
a morte ou não é uma questão de fé, mas não acredito que a ciência possa te
eternizar.
Fonte: BBC News
Mundo
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