Bruno Huberman: O plano de Trump para Gaza - blefe ou
cartada final?
O primeiro-ministro de Israel Benjamin Netanyahu,
procurado internacionalmente pelos crimes cometidos no genocídio em Gaza, foi o
primeiro líder estrangeiro a realizar uma visita ao novo presidente dos EUA
Donald Trump. No encontro realizado nesta terça-feira 04 de fevereiro, o plano
anunciado para o futuro de Gaza é tão esdrúxulo que soa impossível: a ocupação
estadunidense para tornar a Faixa uma “Riviera
do Oriente Médio”.
O sonho idílico de Trump seria possibilitado pela
limpeza étnica da população nativa. Quando questionado quantos palestinos
precisariam sair de Gaza, ele respondeu: “Todos eles. Provavelmente um milhão e
setecentos, talvez um milhão e oitocentos. Eles serão assentados em áreas onde
possam viver uma vida linda”. Viviam, antes do genocídio, cerca de 2,2 milhões
de palestinos na Faixa de Gaza.
À primeira vista, o projeto parece ser mais um blefe de
Trump depois que ameaçou Canadá e México com tarifas para conseguir a sua
cooperação em outros âmbitos, como o tráfico de drogas. O plano envolve a
ocupação estadunidense de um território hostil ocupado há décadas por um grupo
guerrilheiro, o Hamas, que demonstrou capacidade de sustentar o confronto
militar em condições adversas. Além disso, o partido é aliado do grande inimigo
ocidental na região, o Irã. “Todos com quem conversei adoram a ideia de os
Estados Unidos possuírem aquele pedaço de terra”, declarou
Trump.
Contudo, Trump tem sido contra o envolvimento militar
direto dos EUA em conflitos internacionais. Além de promover o cessar-fogo em
Gaza, Trump promete tirar os EUA da Guerra da Ucrânia contra a Rússia. No seu
primeiro mandato, como demonstra
Regionaldo Nasser,
ele iniciou a retirada dos EUA do Afeganistão, concluída por Joe Biden em 2021.
Além disso, Trump também é contra o excesso de gasto com bombas para Israel e
não vê sentido político em provocar a morte de milhões de pessoas no Oriente
Médio sem uma estratégia política clara.
Poucos dias após a posse, quando perguntado sobre o seu
ex-conselheiro de Segurança Nacional, o neo-conservador John Bolton, Trump
afirmou:
“Foi ele que nos envolveu, junto com [o ex-vice
presidente Dick] Cheney e alguns outros, convencendo [o ex-presidente George
W.] Bush, o que foi uma decisão terrível, a explodir o Oriente Médio. Nós explodimos
o Oriente Médio e fomos embora. Não ganhamos nada com isso, exceto muitas
mortes. Matamos muitas pessoas, e John Bolton era um desses caras, um cara
estúpido.”
Trump não parece querer ocupar aquele pedaço de terra
verdadeiramente. Mas o plano, por um lado, revela como Israel não é somente um
aliado estrangeiro, mas praticamente um Estado estadunidense, ou um
protetorado. A ocupação estadunidense constituiria uma vinculação inédita entre
os países apesar das décadas de aliança. Gaza não é oficialmente território
israelense, mas a ocupação estadunidense se daria sob a tutela de Israel e em
flagrante violação do direito internacional. É um plano, à primeira vista,
irracional. Mas certamente há uma racionalidade por trás dele.
Há evidências de que Trump esteja blefando e o anúncio
desta terça-feira possa não passar de retórica vazia. Mas o que Trump almeja
colher com esse blefe?
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Limpar a imagem de Israel após o genocídio?
Depois de quinze meses de conflito, Israel e Hamas
chegaram a um acordo de cessar-fogo no dia 19 de janeiro de 2025. O acordo traz
certamente um alívio profundo após longos meses de genocídio promovido por EUA
e Israel contra os palestinos na Faixa de Gaza. Estudo
da Lancet avalia
que pelo menos 78.525 palestinos devem ter sido mortos diretamente pelos
israelenses (diante de 46.600 mortos segundo o Ministério da Saúde palestino).
Em julho de 2024, outro
estudo da Lancet estimou
que 186.000 teriam sido mortos por consequências do genocídio israelense, como
a destruição do sistema de saúde.
O cessar-fogo foi anunciado poucos dias antes da posse
de Donald Trump. A data revela como os EUA possuiam condições para impor o fim
das hostilidades a qualquer momento. Mas faltou vontade política ao
ex-presidente Joe Biden. Essa percepção, inclusive, foi partilhada pelos
eleitores estadunidenses. Segundo
pesquisa,
cerca de um terço (29%) dos que votaram em Biden em 2020 se recusaram a votar
em Kamala Harris, a sua vice, no pleito de 2024 por causa da violência em Gaza.
Harris teve cerca de seis milhões de votos a menos que Biden.
O cessar-fogo, entretanto, não faz do republicano um
pacifista. Em seu primeiro mandato, Trump
mudou a forma como os EUA se relacionam com Israel, se tornando o
líder mais sionista da história. Uma tendência continuada por Biden e que se
mantém no retorno do empresário à Casa Branca.
Em abril de 2024, Trump
havia defendido o
fim do conflito em Gaza pois Israel estaria “perdendo a guerra das RP (relações
públicas)”. Não é que Trump tenha simpatia pelas vidas palestinas. Mas, em um
mundo cada vez mais pautado pela espetacularização e a desinformação, o
mandatário estadunidense entende que o importante é não parecer
genocida. Contudo, é preciso mais que um cessar-fogo.
O Nation Brand Index, que revela as percepções globais
da reputação e da imagem desses países, demonstrou que Israel caiu para as
últimas possições do ranking que avalia 50 países. A juventude mundial rejeita
o país, produtos “Made in Israel” tem sido sistematicamente boicotados e há
riscos reais de danos à economia do país. Décadas de marketing que almejavam
colocar Israel como um país inovador, tecnológico e LGBTfriendly parecem
ter ido para o buraco com o genocídio.
O primeiro objetivo de Trump parece ser limpar a imagem
israelense. No seu primeiro mandato, Trump já havia defendido a construção
de cassinos e hotéis,
a sua especialidade no ramo imobiliário, para a renovação de Gaza. O plano de
reconstrução estadunidense de Gaza pode fazer do genocídio uma vitória
israelense, não uma derrota, como o cessar-fogo tem sido representado.
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Uma saída honrosa para Israel após o cessar-fogo?
Nas últimas semanas, ficamos impactados com as imagens
de mais de um milhão de palestinos retornando, em marcha, para os destroços das
suas casas no norte da Faixa de Gaza. Locais como o campo de refugiados de
Jabalia, um lócus histórico da resistência palestina, foram totalmente destruídos.
As pessoas não conseguem mais distinguir a casa onde viveram de uma montanha de
reboco. Já aqueles que encontram as suas casas parcialmente destruídas, começam
imeditamente a reforma para retomar a sua vida.
Apesar de provocantes, essas cenas não são entendidas
como sinais de derrota pelos palestinos. Os termos do cessar-fogo são vistos
como pilares de uma vitória da resistência. O retorno para o norte de Gaza,
onde a destruição foi massiva justamente por causa das ambições israelenses de
assentamento, significa uma grande conquista dos palestinos.
A superioridade das Forças Armadas de Israel não foi
suficiente para derrotar as Brigadas de al-Qassam, o braço armado do Hamas. Os
guerrilheiros do Hamas mantiveram os confrontos em Beit Hanoun, no extremo noroeste
da Faixa, apesar da expulsão de praticamente todos os civis. Isso levou a um
grande desgaste nas tropas israelenses e contribuiu para o cessar-fogo ser
estabelecido nesses termos.
Após o cessar-fogo, o Hamas tem feito da libertação de
reféns israelenses, trocados por prisioneiros palestinos, verdadeiros eventos
midiáticos para demonstrar a força do grupo. Estima-se que o Hamas esteja conseguindo
recrutar novos guerrilheiros rapidamente, enquanto Israel tem tido dificuldade
em recrutar novos reservistas. Ao menos 831
soldados israelenses foram mortos nesta que foi a mais longa guerra da
história israelense.
O retorno dos civis ao norte de Gaza, a libertação dos
prisioneiros palestinos em troca dos reféns israelenses, o fim imediato das
hostilidade e a manutenção das armas pelo Hamas eram os mesmos termos do
cessar-fogo negociado em fevereiro de 2024 por Yahya Sinwar, o chefe militar do
Hamas e mentor do ataque de 07 de outubro de 2023, que foi morto em combate por
Israel em 16 de outubro de 2024. Todos os objetivos de Sinwar com a agressão a
Israel foram obtidos, exceto o fim do bloqueio israelense a Gaza, que impede a
livre circulação de pessoas e mercadorias para dentro e fora do enclave, desde
2006.
Obviamente, essas conquistas estratégicas vieram ao
custo da perda de milhares de vidas palestinas e da destruição praticamente
completa de uma região ancestral palestina. Isso tem sido utilizado por
israelenses para demonizar os palestinos com o objetivo de diminuir a derrota.
“Não fique impressionado com a alegria do nosso inimigo. Essa é uma sociedade
animalista que santifica a morte. Em breve, nós iremos apagar o seu sorriso
novamente e substituir por choros de luto e lamentações daqueles que foram
deixados com nada”, afirmou o ministro israelense de extrema-direita Bezalel
Smotrich.
A vitória para Israel virá somente com a destruição
completa do Hamas e a expulsão de todos os palestinos em Gaza. É isso o
elemento central da promessa de Trump, com a vantagem de transformar a limpeza
étnica dos palestinos em um esforço humitário. “Ela [Gaza] tem sido símbolo de
morte e destruição por décadas, tão ruim para a população que vive ali. Muita
falta de sorte naquele lugar. Não deveria ocorrer um processo de reconstrução
pelas mesmas pessoas que estão lá. Ao invés disso, deveriam ir para outros
países com interesse em questões humanitárias”, declarou
Trump.
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Continuação da Nakba: a normalização da limpeza étnica de Gaza?
Desde a sua posse, Trump já vinha defendendo a
expulsão em massa dos palestinos da Faixa de Gaza para Egito e Jordânia: “Estamos falando
de 1,5 milhão de pessoas, e simplesmente limparemos tudo isso.” Em outra
declaração,
ele revelou um típico paternalismo colonial. “Gostaria que [os palestinos]
vivessem em área onde possam viver sem tanta perturbação, revolução nem
violência. Quando você olha para a Faixa de Gaza, tem sido um inferno por
tantos anos… Acredito que as pessoas poderiam viver em áreas muito mais seguras
e possivelmente muito mais confortáveis.”
Essa intenção de expulsar em massa os palestinos de sua
terra para o seu próprio bem é uma ideia colonial presente desde as fantasias
do pai do sionismo, o jornalista austro-húngaro Theodor Herzl. “Tentaremos
transferir a parte mais pobre da população nativa através da fronteira, sem
causar tumulto, dando-lhes emprego nos países de trânsito, mas no nosso próprio
país devemos negar-lhes todo o trabalho”, escreveu
Herzl em 1895.
Essa ideia segue bem presente nas ambições de
Nentanyahu, e de seus aliados de extrema-direita: Smotrich e o o ex-ministro
Itamar Ben-Gvir, que deixou o cargo depois do cessar-fogo. Ambos defendem
a remoção
completa dos palestinos para dar lugar a assentamentos judeus e
Smotrich ameaça
derrubar o governo caso o acordo de cessar-fogo chegue à fase final, que envolve a
devolução dos corpos de israelenses sob a custódia do Hamas e planos para a
reconstrução de Gaza sem a destruição completa do Hamas.
O plano de Trump, no qual os EUA assumem a tarefa de
expulsão dos palestinos e reconstrução de Gaza, parece ser uma saída de
emergência para sustentar o governo Netanyahu e agradar os seus aliados de
extrema-direita (e a sua ampla base na sociedade israelense). Ao defender de
forma banal a remoção dos palestinos de sua terra, Trump muda o paradigma da
política externa dos EUA. Até hoje, nunca um mandatário estadunidense havia se
comprometido de forma tão clara com as ambições coloniais israelense.
Na prática, o que estamos vendo desde o 07/10,
como apontou
a historiadora Arlene Clemesha, é a continuação da Nakba. A grande
catástrofe palestina de 1948 resultou na expulsão de mais de 800 mil nativos e
na destruição de 500 vilarejos num processo de limpeza étnica que abriu espaço
para a consolidação de Israel como um país de ampla maioria judaica. “Gaza está
arruinada e desintegrada, inabitável. E irá permanecer assim”, afirmou
Smotrich.
Em relatório
oficial do governo israelense vazado em dezembro de 2023 pelo jornal
israelense Israel Hayom, Netanyahu teria determiando a um assessor próximo
explorar formas de “afinar” a população de Gaza. Este é o plano israelense para
o day after: assentar o norte de Gaza com colonos judeus
radicais, deportar o máximo de palestinos para países árabes e reduzi-los a uma
população administrável que sirva como força de trabalho para os novos
assentamentos. O novo plano de Trump colocaria os EUA como o responsável por
executar as ambições coloniais israelenses, desresponsabilizando os
israelenses. Seria uma tercerização da colonização.
Biden e Netanyahu já teriam
proposto ao
presidente egípcio, Abdel Fattah el-Sisi, o perdão da dívida do país com o
Fundo Monetário Internacional (FMI) em troca do asilo dos palestinos de Gaza,
mas ouviram uma negativa. O Egito é o segundo país com maior dívida com o FMI
e contraiu
novo empréstimo diante
de grave crise econômica — além do genocídio em Gaza, o país é impactado pelas
guerras civis nos vizinhos Sudão e Líbia.
Contudo, depois do anúncio do novo plano de Trump para
Gaza, Egito e Jordânia afirmaram
jamais terem se comprometido a receber os refugiados palestinos de Gaza. A Arábia Saudita,
apontada por Trump como uma eventual parceira na reconstrução de Gaza e avessa
à criação de um Estado palestino como condição para normalizar relações diplomáticas
com Israel, reafirmou,
através de nota imediatamente
após a declração de Trump, o seu comprometimento com a criação de um Estado da
Palestina em Cisjordânia e Gaza.
Apesar da submissão ao imperialismo estadunidense, os
mandatários egípcios, jordanianos e sauditas rejeitam os planos de
estadunidenses e israelenses pois sabem que não podem simplesmente abrir as
portas de seus países para os refugiados palestinos e ceder milhões de dólares
para uma Gaza sem palestinos. Isso significa colaborar com a Nakba 2.0. O que
contraria a vontade popular dos povos árabes. Embora todos estes regimes sejam
ditaduras, precisam de um mínimo de legitimidade para se manter no poder.
A Questão Palestina retomou a sua importância como
linha vermelha para os povos árabes, impedindo novas normalizações de Israel
com países árabes, como as que Trump havia promovido em seu primeiro mandato
com Emirados Árabes Unidos, Marrocos, Sudão e Bahrein.
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O Oriente Médio de Trump II não é o mesmo de Trump I
O ex-presidente dos EUA Biden
afirmou que
a agressão israelense no Oriente Médio foi “bem-sucedida” pois conseguiu
enfraquecer o Irã, o Hezbollah e as demais forças que compõem o Eixo da
Resistência. Apesar da perversidade de classificar um genocídio como um ato de
sucesso, a declaração do estadunidense faz sentido do ponto de vista ocidental.
O Hamas está enfraquecido militarmente e perdeu os seus
principais líderes (Sinwar, Ismail Haniyeh e Mohammed Deif); o Hezbollah teve o
seu líder, Hassan Nasrallah, assassinado por Israel e viu os israelenses
bombardearem o país a esmo e manterem ocupação de parte do sul do Líbano; o
regime de Bashar Assad finalmente caiu depois de mais de uma década de guerra
civil na Síria, a guerrilha HTS (Hay’at Tahrir al-Sham, antiga facção da
al-Qaeda na Síria e aliada da Turquia) tomou o poder e tem buscado normalizar
as relações com Israel (que destruiu diversas infraestruturas sírias e expandiu
a ocupação do território sírio sobre o Monte Hermon); e o Irã viu aliados
enfraquecerem ou perecerem, além de perder o corredor logístico na Síria,
aberto pelo falecido general Qassem Soleimani, para armar os seus parceiros no
Líbano e na Palestina.
Contudo, os rivais do imperialismo estadunidense também
podem pintar um quadro positivo a respeito dos eventos recentes. Apesar da
destruição de Gaza, o Hamas sai politicamente fortalecido, com grande apoio
popular em todo o Oriente Médio; embora o Hezbollah tenha demonstrado
vulnerabilidade aos ataques aéreos israelenses (e ao atentado através dos
pagers explosivos), a guerrilha libanesa conteve o avanço terrestre israelense;
o Irã conseguiu manter a dissuasão com Israel, teve a sua defesa antiaérea
testada de forma bem-sucedida e atingiu importantes alvos militares em Israel,
o que revelou o funcionamento do Iron Dome israelense; e o Ansar Allah, no
Iêmen, atingiu diversos alvos em Israel e interrompeu o comércio naval
israelense pelo Mar Vermelho, o que levou o país a fechar o porto de Eilat (um
exemplo da profunda crise econômica israelense).
A queda de Assad de fato significa uma perda significativa
para o Eixo da Resistência, pois o território sírio tinha uma grande
importância logística. Além do Irã, o país servia de base para as incursões
militares da Rússia no Oriente Médio. Contudo, o autoritarismo enfraquecido de
Assad há tempos já não era mais um aliado verdadeiro das forças populares do
Oriente Médio que almejam libertação e dignidade.
Lideranças da guerrilha palestina já declaram que a
etapa iniciada com o ataque de 07/10 seria penúltima do processo de libertação
do país. O historiador Ilan
Pappé afirmou este
ser o início do fim do sionismo. Ainda é difícil saber quais são as ambições
reais dos planos de Trump para a Palestina e o Oriente Médio, mas é certo que a
sua presidência irá acelerar os desdobramentos na região e no mundo.
O front na Cisjordânia segue ativo, com ações
israelenses em Jenin e Tulkarem que emulam as realizadas em Gaza. Há o
escalonamento da rivalidade entre EUA e China, assim como a intenção declarada
de Trump de retomar a “pressão
máxima”
sobre o Irã e seu programa nuclear (que pode estar próximo de obter a bomba
atômica). Diante das incertezas, o que é certo é que a Palestina retomou a sua
centralidade para a geopolítica global e regional no futuro próximo. E isso,
certamente, contribui para as ambições do seu povo por libertação nacional.
Fonte: Blog da
Boitempo
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