sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

Bruno Huberman: O plano de Trump para Gaza - blefe ou cartada final?

O primeiro-ministro de Israel Benjamin Netanyahu, procurado internacionalmente pelos crimes cometidos no genocídio em Gaza, foi o primeiro líder estrangeiro a realizar uma visita ao novo presidente dos EUA Donald Trump. No encontro realizado nesta terça-feira 04 de fevereiro, o plano anunciado para o futuro de Gaza é tão esdrúxulo que soa impossível: a ocupação estadunidense para tornar a Faixa uma “Riviera do Oriente Médio”.

O sonho idílico de Trump seria possibilitado pela limpeza étnica da população nativa. Quando questionado quantos palestinos precisariam sair de Gaza, ele respondeu: “Todos eles. Provavelmente um milhão e setecentos, talvez um milhão e oitocentos. Eles serão assentados em áreas onde possam viver uma vida linda”. Viviam, antes do genocídio, cerca de 2,2 milhões de palestinos na Faixa de Gaza.

À primeira vista, o projeto parece ser mais um blefe de Trump depois que ameaçou Canadá e México com tarifas para conseguir a sua cooperação em outros âmbitos, como o tráfico de drogas. O plano envolve a ocupação estadunidense de um território hostil ocupado há décadas por um grupo guerrilheiro, o Hamas, que demonstrou capacidade de sustentar o confronto militar em condições adversas. Além disso, o partido é aliado do grande inimigo ocidental na região, o Irã. “Todos com quem conversei adoram a ideia de os Estados Unidos possuírem aquele pedaço de terra”, declarou Trump.

Contudo, Trump tem sido contra o envolvimento militar direto dos EUA em conflitos internacionais. Além de promover o cessar-fogo em Gaza, Trump promete tirar os EUA da Guerra da Ucrânia contra a Rússia. No seu primeiro mandato, como demonstra Regionaldo Nasser, ele iniciou a retirada dos EUA do Afeganistão, concluída por Joe Biden em 2021. Além disso, Trump também é contra o excesso de gasto com bombas para Israel e não vê sentido político em provocar a morte de milhões de pessoas no Oriente Médio sem uma estratégia política clara.

Poucos dias após a posse, quando perguntado sobre o seu ex-conselheiro de Segurança Nacional, o neo-conservador John Bolton, Trump afirmou:

“Foi ele que nos envolveu, junto com [o ex-vice presidente Dick] Cheney e alguns outros, convencendo [o ex-presidente George W.] Bush, o que foi uma decisão terrível, a explodir o Oriente Médio. Nós explodimos o Oriente Médio e fomos embora. Não ganhamos nada com isso, exceto muitas mortes. Matamos muitas pessoas, e John Bolton era um desses caras, um cara estúpido.”

Trump não parece querer ocupar aquele pedaço de terra verdadeiramente. Mas o plano, por um lado, revela como Israel não é somente um aliado estrangeiro, mas praticamente um Estado estadunidense, ou um protetorado. A ocupação estadunidense constituiria uma vinculação inédita entre os países apesar das décadas de aliança. Gaza não é oficialmente território israelense, mas a ocupação estadunidense se daria sob a tutela de Israel e em flagrante violação do direito internacional. É um plano, à primeira vista, irracional. Mas certamente há uma racionalidade por trás dele.

Há evidências de que Trump esteja blefando e o anúncio desta terça-feira possa não passar de retórica vazia. Mas o que Trump almeja colher com esse blefe?

·        Limpar a imagem de Israel após o genocídio?

Depois de quinze meses de conflito, Israel e Hamas chegaram a um acordo de cessar-fogo no dia 19 de janeiro de 2025. O acordo traz certamente um alívio profundo após longos meses de genocídio promovido por EUA e Israel contra os palestinos na Faixa de Gaza. Estudo da Lancet avalia que pelo menos 78.525 palestinos devem ter sido mortos diretamente pelos israelenses (diante de 46.600 mortos segundo o Ministério da Saúde palestino). Em julho de 2024, outro estudo da Lancet estimou que 186.000 teriam sido mortos por consequências do genocídio israelense, como a destruição do sistema de saúde.

O cessar-fogo foi anunciado poucos dias antes da posse de Donald Trump. A data revela como os EUA possuiam condições para impor o fim das hostilidades a qualquer momento. Mas faltou vontade política ao ex-presidente Joe Biden. Essa percepção, inclusive, foi partilhada pelos eleitores estadunidenses. Segundo pesquisa, cerca de um terço (29%) dos que votaram em Biden em 2020 se recusaram a votar em Kamala Harris, a sua vice, no pleito de 2024 por causa da violência em Gaza. Harris teve cerca de seis milhões de votos a menos que Biden.

O cessar-fogo, entretanto, não faz do republicano um pacifista. Em seu primeiro mandato, Trump mudou a forma como os EUA se relacionam com Israel, se tornando o líder mais sionista da história. Uma tendência continuada por Biden e que se mantém no retorno do empresário à Casa Branca.

Em abril de 2024, Trump havia defendido o fim do conflito em Gaza pois Israel estaria “perdendo a guerra das RP (relações públicas)”. Não é que Trump tenha simpatia pelas vidas palestinas. Mas, em um mundo cada vez mais pautado pela espetacularização e a desinformação, o mandatário estadunidense entende que o importante é não parecer genocida. Contudo, é preciso mais que um cessar-fogo.

O Nation Brand Index, que revela as percepções globais da reputação e da imagem desses países, demonstrou que Israel caiu para as últimas possições do ranking que avalia 50 países. A juventude mundial rejeita o país, produtos “Made in Israel” tem sido sistematicamente boicotados e há riscos reais de danos à economia do país. Décadas de marketing que almejavam colocar Israel como um país inovador, tecnológico e LGBTfriendly parecem ter ido para o buraco com o genocídio.

O primeiro objetivo de Trump parece ser limpar a imagem israelense. No seu primeiro mandato, Trump já havia defendido a construção de cassinos e hotéis, a sua especialidade no ramo imobiliário, para a renovação de Gaza. O plano de reconstrução estadunidense de Gaza pode fazer do genocídio uma vitória israelense, não uma derrota, como o cessar-fogo tem sido representado.

·        Uma saída honrosa para Israel após o cessar-fogo?

Nas últimas semanas, ficamos impactados com as imagens de mais de um milhão de palestinos retornando, em marcha, para os destroços das suas casas no norte da Faixa de Gaza. Locais como o campo de refugiados de Jabalia, um lócus histórico da resistência palestina, foram totalmente destruídos. As pessoas não conseguem mais distinguir a casa onde viveram de uma montanha de reboco. Já aqueles que encontram as suas casas parcialmente destruídas, começam imeditamente a reforma para retomar a sua vida.

Apesar de provocantes, essas cenas não são entendidas como sinais de derrota pelos palestinos. Os termos do cessar-fogo são vistos como pilares de uma vitória da resistência. O retorno para o norte de Gaza, onde a destruição foi massiva justamente por causa das ambições israelenses de assentamento, significa uma grande conquista dos palestinos.

A superioridade das Forças Armadas de Israel não foi suficiente para derrotar as Brigadas de al-Qassam, o braço armado do Hamas. Os guerrilheiros do Hamas mantiveram os confrontos em Beit Hanoun, no extremo noroeste da Faixa, apesar da expulsão de praticamente todos os civis. Isso levou a um grande desgaste nas tropas israelenses e contribuiu para o cessar-fogo ser estabelecido nesses termos.

Após o cessar-fogo, o Hamas tem feito da libertação de reféns israelenses, trocados por prisioneiros palestinos, verdadeiros eventos midiáticos para demonstrar a força do grupo. Estima-se que o Hamas esteja conseguindo recrutar novos guerrilheiros rapidamente, enquanto Israel tem tido dificuldade em recrutar novos reservistas. Ao menos 831 soldados israelenses foram mortos nesta que foi a mais longa guerra da história israelense.

O retorno dos civis ao norte de Gaza, a libertação dos prisioneiros palestinos em troca dos reféns israelenses, o fim imediato das hostilidade e a manutenção das armas pelo Hamas eram os mesmos termos do cessar-fogo negociado em fevereiro de 2024 por Yahya Sinwar, o chefe militar do Hamas e mentor do ataque de 07 de outubro de 2023, que foi morto em combate por Israel em 16 de outubro de 2024. Todos os objetivos de Sinwar com a agressão a Israel foram obtidos, exceto o fim do bloqueio israelense a Gaza, que impede a livre circulação de pessoas e mercadorias para dentro e fora do enclave, desde 2006.

Obviamente, essas conquistas estratégicas vieram ao custo da perda de milhares de vidas palestinas e da destruição praticamente completa de uma região ancestral palestina. Isso tem sido utilizado por israelenses para demonizar os palestinos com o objetivo de diminuir a derrota. “Não fique impressionado com a alegria do nosso inimigo. Essa é uma sociedade animalista que santifica a morte. Em breve, nós iremos apagar o seu sorriso novamente e substituir por choros de luto e lamentações daqueles que foram deixados com nada”, afirmou o ministro israelense de extrema-direita Bezalel Smotrich.

A vitória para Israel virá somente com a destruição completa do Hamas e a expulsão de todos os palestinos em Gaza. É isso o elemento central da promessa de Trump, com a vantagem de transformar a limpeza étnica dos palestinos em um esforço humitário. “Ela [Gaza] tem sido símbolo de morte e destruição por décadas, tão ruim para a população que vive ali. Muita falta de sorte naquele lugar. Não deveria ocorrer um processo de reconstrução pelas mesmas pessoas que estão lá. Ao invés disso, deveriam ir para outros países com interesse em questões humanitárias”, declarou Trump.

·        Continuação da Nakba: a normalização da limpeza étnica de Gaza?

Desde a sua posse, Trump já vinha defendendo a expulsão em massa dos palestinos da Faixa de Gaza para Egito e Jordânia: “Estamos falando de 1,5 milhão de pessoas, e simplesmente limparemos tudo isso.” Em outra declaração, ele revelou um típico paternalismo colonial. “Gostaria que [os palestinos] vivessem em área onde possam viver sem tanta perturbação, revolução nem violência. Quando você olha para a Faixa de Gaza, tem sido um inferno por tantos anos… Acredito que as pessoas poderiam viver em áreas muito mais seguras e possivelmente muito mais confortáveis.”

Essa intenção de expulsar em massa os palestinos de sua terra para o seu próprio bem é uma ideia colonial presente desde as fantasias do pai do sionismo, o jornalista austro-húngaro Theodor Herzl. “Tentaremos transferir a parte mais pobre da população nativa através da fronteira, sem causar tumulto, dando-lhes emprego nos países de trânsito, mas no nosso próprio país devemos negar-lhes todo o trabalho”, escreveu Herzl em 1895.

Essa ideia segue bem presente nas ambições de Nentanyahu, e de seus aliados de extrema-direita: Smotrich e o o ex-ministro Itamar Ben-Gvir, que deixou o cargo depois do cessar-fogo. Ambos defendem a remoção completa dos palestinos para dar lugar a assentamentos judeus e Smotrich ameaça derrubar o governo caso o acordo de cessar-fogo chegue à fase final, que envolve a devolução dos corpos de israelenses sob a custódia do Hamas e planos para a reconstrução de Gaza sem a destruição completa do Hamas.

O plano de Trump, no qual os EUA assumem a tarefa de expulsão dos palestinos e reconstrução de Gaza, parece ser uma saída de emergência para sustentar o governo Netanyahu e agradar os seus aliados de extrema-direita (e a sua ampla base na sociedade israelense). Ao defender de forma banal a remoção dos palestinos de sua terra, Trump muda o paradigma da política externa dos EUA. Até hoje, nunca um mandatário estadunidense havia se comprometido de forma tão clara com as ambições coloniais israelense.

Na prática, o que estamos vendo desde  o 07/10, como apontou a historiadora Arlene Clemesha, é a continuação da Nakba. A grande catástrofe palestina de 1948 resultou na expulsão de mais de 800 mil nativos e na destruição de 500 vilarejos num processo de limpeza étnica que abriu espaço para a consolidação de Israel como um país de ampla maioria judaica. “Gaza está arruinada e desintegrada, inabitável. E irá permanecer assim”, afirmou Smotrich.

Em relatório oficial do governo israelense vazado em dezembro de 2023 pelo jornal israelense Israel Hayom, Netanyahu teria determiando a um assessor próximo explorar formas de “afinar” a população de Gaza. Este é o plano israelense para o day after: assentar o norte de Gaza com colonos judeus radicais, deportar o máximo de palestinos para países árabes e reduzi-los a uma população administrável que sirva como força de trabalho para os novos assentamentos. O novo plano de Trump colocaria os EUA como o responsável por executar as ambições coloniais israelenses, desresponsabilizando os israelenses. Seria uma tercerização da colonização.

Biden e Netanyahu já teriam proposto ao presidente egípcio, Abdel Fattah el-Sisi, o perdão da dívida do país com o Fundo Monetário Internacional (FMI) em troca do asilo dos palestinos de Gaza, mas ouviram uma negativa. O Egito é o segundo país com maior dívida com o FMI e contraiu novo empréstimo diante de grave crise econômica — além do genocídio em Gaza, o país é impactado pelas guerras civis nos vizinhos Sudão e Líbia.

Contudo, depois do anúncio do novo plano de Trump para Gaza, Egito e Jordânia afirmaram jamais terem se comprometido a receber os refugiados palestinos de Gaza. A Arábia Saudita, apontada por Trump como uma eventual parceira na reconstrução de Gaza e avessa à criação de um Estado palestino como condição para normalizar relações diplomáticas com Israel, reafirmou, através de nota imediatamente após a declração de Trump, o seu comprometimento com a criação de um Estado da Palestina em Cisjordânia e Gaza.

Apesar da submissão ao imperialismo estadunidense, os mandatários egípcios, jordanianos e sauditas rejeitam os planos de estadunidenses e israelenses pois sabem que não podem simplesmente abrir as portas de seus países para os refugiados palestinos e ceder milhões de dólares para uma Gaza sem palestinos. Isso significa colaborar com a Nakba 2.0. O que contraria a vontade popular dos povos árabes. Embora todos estes regimes sejam ditaduras, precisam de um mínimo de legitimidade para se manter no poder.

A Questão Palestina retomou a sua importância como linha vermelha para os povos árabes, impedindo novas normalizações de Israel com países árabes, como as que Trump havia promovido em seu primeiro mandato com Emirados Árabes Unidos, Marrocos, Sudão e Bahrein.

·        O Oriente Médio de Trump II não é o mesmo de Trump I

O ex-presidente dos EUA Biden afirmou que a agressão israelense no Oriente Médio foi “bem-sucedida” pois conseguiu enfraquecer o Irã, o Hezbollah e as demais forças que compõem o Eixo da Resistência. Apesar da perversidade de classificar um genocídio como um ato de sucesso, a declaração do estadunidense faz sentido do ponto de vista ocidental.

O Hamas está enfraquecido militarmente e perdeu os seus principais líderes (Sinwar, Ismail Haniyeh e Mohammed Deif); o Hezbollah teve o seu líder, Hassan Nasrallah, assassinado por Israel e viu os israelenses bombardearem o país a esmo e manterem ocupação de parte do sul do Líbano; o regime de Bashar Assad finalmente caiu depois de mais de uma década de guerra civil na Síria, a guerrilha HTS (Hay’at Tahrir al-Sham, antiga facção da al-Qaeda na Síria e aliada da Turquia) tomou o poder e tem buscado normalizar as relações com Israel (que destruiu diversas infraestruturas sírias e expandiu a ocupação do território sírio sobre o Monte Hermon); e o Irã viu aliados enfraquecerem ou perecerem, além de perder o corredor logístico na Síria, aberto pelo falecido general Qassem Soleimani, para armar os seus parceiros no Líbano e na Palestina.

Contudo, os rivais do imperialismo estadunidense também podem pintar um quadro positivo a respeito dos eventos recentes. Apesar da destruição de Gaza, o Hamas sai politicamente fortalecido, com grande apoio popular em todo o Oriente Médio; embora o Hezbollah tenha demonstrado vulnerabilidade aos ataques aéreos israelenses (e ao atentado através dos pagers explosivos), a guerrilha libanesa conteve o avanço terrestre israelense; o Irã conseguiu manter a dissuasão com Israel, teve a sua defesa antiaérea testada de forma bem-sucedida e atingiu importantes alvos militares em Israel, o que revelou o funcionamento do Iron Dome israelense; e o Ansar Allah, no Iêmen, atingiu diversos alvos em Israel e interrompeu o comércio naval israelense pelo Mar Vermelho, o que levou o país a fechar o porto de Eilat (um exemplo da profunda crise econômica israelense).

A queda de Assad de fato significa uma perda significativa para o Eixo da Resistência, pois o território sírio tinha uma grande importância logística. Além do Irã, o país servia de base para as incursões militares da Rússia no Oriente Médio. Contudo, o autoritarismo enfraquecido de Assad há tempos já não era mais um aliado verdadeiro das forças populares do Oriente Médio que almejam libertação e dignidade.

Lideranças da guerrilha palestina já declaram que a etapa iniciada com o ataque de 07/10 seria penúltima do processo de libertação do país. O historiador Ilan Pappé afirmou este ser o início do fim do sionismo. Ainda é difícil saber quais são as ambições reais dos planos de Trump para a Palestina e o Oriente Médio, mas é certo que a sua presidência irá acelerar os desdobramentos na região e no mundo.

O front na Cisjordânia segue ativo, com ações israelenses em Jenin e Tulkarem que emulam as realizadas em Gaza. Há o escalonamento da rivalidade entre EUA e China, assim como a intenção declarada de Trump de retomar a “pressão máxima” sobre o Irã e seu programa nuclear (que pode estar próximo de obter a bomba atômica). Diante das incertezas, o que é certo é que a Palestina retomou a sua centralidade para a geopolítica global e regional no futuro próximo. E isso, certamente, contribui para as ambições do seu povo por libertação nacional.

 

Fonte: Blog da Boitempo

 

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