Ângela
Carrato: China rouba a cena e o tio Sam dá a volta por baixo
Um novo modelo de inteligência artificial (IA) desenvolvido pela startup chinesa
DeepSeek não só relegou as maldades de Donald Trump a segundo plano na mídia internacional,
como impôs perdas de cerca de US$ 1 trilhão em valor de mercado às empresas de
tecnologia dos Estados Unidos e da Europa.
As perdas aconteceram em um só dia, na segunda-feira (27) e se deram
diante da disparada de downloads do assistente de IA da
DeepSeek, que superou seus rivais ocidentais. O aplicativo, gratuito e de
código aberto, rapidamente se transformou no melhor avaliado diante de todos os
concorrentes.
O rombo por ele provocado foi calculado pela agência Bloomberg em US$ 1
trilhão. Em hipótese alguma, esta agência pode ser considerada simpática à
China ou a empresas daquele país.
Não faltou quem comparasse o DeepSeek a um novo Sputnik, o primeiro
satélite artificial produzido e colocado em órbita da terra em 1957, pela então
União Soviética.
A comparação procede em parte, pois se o lançamento do Sputnik acirrou a
disputa pela hegemonia mundial entre Estados Unidos e URSS, com o surgimento de
dois grandes blocos de apoio a cada um deles, o DeepSeek apenas aprofunda o
nítido declínio dos Estados Unidos como principal potência mundial.
Mentiroso e truculento, Trump não deve ter gostado nem um pouco da
novidade, que veio a público quando completava uma semana de mandato e esperava
que todas as atenções estivessem voltadas para as suas ações.
Além de dar início a uma verdadeira caçada a imigrantes ilegais e
deportá-los com requintes de humilhação, como fez com brasileiros, anunciou e
começou a impor pesadas taxas à importação de produtos de vários países, a
exemplo do México e do Canadá.
Dois dias depois, foi a vez da Alibaba, gigante chinesa de tecnologia,
lançar uma nova versão de seu modelo de inteligência artificial, o Qwen 2.5,
afirmando que ele supera o DeepSeek.
A empresa aguardou o primeiro dia do Ano Novo Chinês, comemorado em 29
de janeiro, para fazer o anúncio e fornecer suporte de computação em nuvem para
a transmissão ao vivo da abertura de gala do tradicional Festival da Primavera,
programa anual que mistura música, dança, ópera, artes marciais e comédia,
assistido por bilhões de pessoas.
Esse novo anúncio, somado à informação de que está em andamento na China
um programa que, em cinco anos, deverá dotar todo o planeta de internet de alta
velocidade e acesso gratuito, simplesmente levou o Vale do Silício, na
Califórnia, onde as big techs estadunidenses estão localizadas, ao desespero.
Desespero ampliado uma vez que o sucesso do DeepSeek e o anúncio da
Alibaba desencadearam uma corrida não no Ocidente, mas entre as próprias
empresas chinesas, para atualizar e buscar mais funcionalidades em seus modelos
de inteligência artificial.
A ByteDance, dona do TikTok, por exemplo, anunciou uma atualização em
seu modelo de IA, frisando que ele superou o modelo da OpenAI, apoiado pela
Microsoft.
Até o momento, os normalmente tão falantes donos das big techs estadunidenses,
como Elon Musk e Mark Zuckerberg, continuam mudos.
Possivelmente estejam com dificuldades para explicar os elevadíssimos
gastos de suas empresas de IA em face do custo considerado baixíssimo do
DeepSeek.
O fundador da empresa, Liang Wenfeng (40 anos), um entusiasta da
tecnologia, que se formou na prestigiosa Universidade de Zhejiang, na cidade de
Hangzhou, afirma ter investido apenas US$ 5,6 milhões para desenvolver o seu
modelo. Uma quantia irrisória comparada aos bilhões gastos por empresas
estadunidenses.
Por razões óbvias, Trump evitou comentar o assunto, concentrando-se no
anúncio do seu pacote de maldades, que já provoca pesadas reações junto aos
mais diversos setores da sociedade estadunidense.
Se a deportação em massa de imigrantes tem o apoio da maioria da
população, convencida por sua enganosa propaganda de que eles são os
responsáveis pelos problemas econômicos do país, o mesmo não acontece com
medidas como o fim da cidadania estadunidense para filhos de imigrantes, a perseguição
aos apoiadores da cultura woke e ao segmento LGBTQIA+.
Possivelmente, Trump, do alto de sua arrogância, não tenha sequer
avaliado o tamanho do problema em que se meteu.
Até o momento, 22 estados já anunciaram que não participam dos esforços
determinados pela Casa Branca para localizar, prender e deportar imigrantes
ilegais, uma caçada sem qualquer sentido.
Os imigrantes ilegais estão longe de provocar qualquer problema para a
economia e a vida dos estadunidenses e tudo não passa de bravata de Trump para
desviar atenção dos reais motivos para a decadência econômica e social em seu
país.
Já setores das Forças Armadas não aceitam a proibição de que gays se
alistem em suas fileiras e o segmento LGBTQIA+ saiu às ruas em Nova Iorque e
outras metrópoles, para denunciar as semelhanças da ação de Trump com as
adotadas por Hitler e pelos nazistas, cujas consequências são conhecidas.
A chamada cultura woke (do verto to woke, despertar),
sinônimo de políticas que defendem a igualdade racial e social, o feminismo e
as minorias, está profundamente enraizada nos Estados Unidos desde as lutas
pelos direitos civis dos anos 1960. Lutas que tiveram como expoente o pastor
batista e ativista político Martin Luther King Jr, assassinado em 1968, e nada
indica que Trump conseguirá destruí-las.
A situação assumiu contornos mais graves ainda, quando Trump, sem
qualquer prova, responsabilizou a “política de diversidade dos governos Obama e
Biden” e os gays, pela colisão entre um helicóptero militar e um avião de
passageiros em Washington, na quarta-feira (29) a poucos quilômetros da Casa
Branca, deixando salto de 67 vítimas fatais.
O acidente chocou duplamente o país: ter acontecido no espaço aéreo
supostamente mais monitorado do mundo e pela leviana acusação.
Trump que já tinha conseguido colocar contra si a maioria dos
funcionários públicos, ao exigir que cumprissem ordens consideradas ilegais e
denunciassem colegas que se recusassem a executá-las, acabou por comprar uma
guerra, agora com os controladores de voos.
A categoria, que desempenha papel fundamental para a segurança aérea e
se ressente do excesso de trabalho e baixos salários, assumiu a linha de frente
no combate ao presidente.
Se em menos de duas semanas na Casa Branca, Trump desencadeou tamanhas
batalhas internas, sua atuação no plano externo é ainda pior.
Exigiu dos aliados europeus da OTAN o aumento da contribuição de 1% para
5% do PIB, a fim de que banquem a segurança contra supostas agressões da
Rússia. O problema é que a Europa está mergulhada em uma tremenda crise
econômica e não há dinheiro para arcar com a exigência.
Alemanha e França, principais economias da União Europeia, estão à beira
do colapso. A renúncia do primeiro-ministro alemão, Olaf Scholz, e a campanha
eleitoral em processo naquele país dão bem a ideia da grave crise que se
desenrola por lá.
Tecnicamente em recessão, a Alemanha assiste ao declínio de suas
empresas. A antes poderosa Volkswagen, que já figurou entre as maiores
fabricantes de carros do mundo, está em vias de demitir 30 mil operários em sua
matriz e só escapará do fim se for socorrida pelo governo.
Tudo porque Scholz aceitou a pressão de Joe Biden, que exigiu que a
Alemanha deixasse de comprar petróleo e gás da Rússia e passasse a comprá-lo
cinco vezes mais caro dos Estados Unidos. Pressão que Trump está mantendo e
ampliando.
Situação semelhante se repete na França, onde o governo de Emmanuelle
Macron mostra-se cada dia mais instável e enfrenta crescente impopularidade.
Até no Reino Unido, a desilusão com o Tio Sam não para de crescer. Quatro
anos depois de sair da União Europeia, os ingleses se mostram arrependidos.
Mais de 63% deles consideram que apoiar a saída foi “um tremendo erro”, cuja
consequência tem sido inflação alta e falta de investimentos.
Os ingleses caíram na mentira contada à época por Trump e seus
assessores de que os seus problemas econômicos se deviam à presença maciça de
imigrantes.
A mesma mentira que Trump repete agora em seu país.
Já o primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, imitou o slogan de Trump
(“Make America Great Again”) e sugeriu que é hora de “retomar o controle” das
redes sociais. Em sua fala durante o Fórum Econômico Mundial, em Davos, na
semana passada, ele criticou as big techs estadunidenses e
afirmou que elas “envenenam a sociedade”.
Já os governos do Canadá e do México prometem retaliar na mesma
proporção os produtos estadunidenses, se Trump cumprir a promessa de taxá-los
em 25%.
Especialistas alertaram a Casa Branca que a taxação pode sair pela
culatra, pois os Estados Unidos importam do Canadá 80% da madeira e do níquel
que consomem.
Quanto ao México, parte significativa da produção das empresas
estadunidenses concentra-se lá, com a taxação atingindo diretamente os
eleitores de Trump.
Reações igualmente negativas aconteceram em países da América do Sul, a
exemplo da Colômbia e do Brasil. Cada um ao seu estilo deixou claro que se
Trump investir contra a sua soberania e os seus produtos, haverá reação.
Enfático, o presidente colombiano Gustavo Petro, impediu que dois aviões
estadunidenses entrassem no espaço aéreo de seu país, para desembarcar
imigrantes ilegais. Ao mesmo tempo, publicou em suas redes sociais uma longa
carta aberta a Trump denunciando o imperialismo do Tio Sam sobre a América
Latina, citando como exemplo a própria história da Colômbia.
Alvo de guerra fomentada pelos Estados Unidos em 1904, a Colômbia perdeu
o istmo que deu origem ao Panamá. O mesmo país que agora Trump ameaça
tomar-lhe, sem qualquer motivo, o canal que liga os oceanos Atlântico e
Pacífico, por onde a cada ano atravessam mais de 14 mil navios de diversas
nacionalidades.
A dura reação de Petro levou a diplomacia estadunidense e a do seu país
a entrarem em ação. A crise foi contornada. Trump voltou atrás e Petro enviou
aeronaves para buscar os deportados.
Trump também recuou da decisão de taxar em 25% produtos colombianos como
o café. Possivelmente tenha sido alertado por especialistas que a medida seria
inócua e criaria problemas para empresas e alta nos preços para os consumidores
estadunidenses.
A crise envolvendo os imigrantes fez a presidente de Honduras, Xiomara
Castro, convocar uma reunião de emergência da Comunidade de Estados
Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), que acabou não acontecendo, dado ao
recuo de Trump e de Petro.
Mesmo o Itamaraty tendo confirmado a presença brasileira nesta reunião,
o presidente Lula, em relação à crise provocada pela deportação de imigrantes
ilegais, preferiu adotar uma postura diferente de seu colega colombiano.
Qualquer país tem direito a deportar imigrantes ilegais. Mas nenhum pode
submetê-los à humilhações como tem feito Trump. Daí a decisão do governo
brasileiro de não admitir que os deportados sejam obrigados a usarem algemas ou
estarem acorrentados em solo nacional, como aconteceu com o pouso de emergência
do avião fretado pelos Estados Unidos em Manaus.
Mais ainda: o Brasil vai acionar as cortes e tratados internacionais, a
fim de denunciar os abusos cometidos pelos Estados Unidos.
Em entrevista coletiva na última quinta-feira, Lula, quando perguntado
sobre a possibilidade de Trump aumentar as taxas sobre produtos brasileiros
vendidos nos Estados Unidos, afirmou que haverá “reciprocidade”, acrescentando
que “quero respeitar os Estados Unidos e quero que Trump respeite o Brasil. É
só isso.”
Ele também criticou as decisões de Trump de deixar de participar da
organização Mundial de Saúde e de acordos internacionais sobre o clima,
definindo-os como “uma regressão à civilização humana”.
Três dias antes, Lula e o presidente da Federação Rússia, Vladimir
Putin, conversaram longamente por telefone sobre temas da agenda global e
bilateral, com Lula expressando sua preocupação com o cenário internacional e
reafirmando o compromisso do Brasil com a paz.
Como se sabe, Brasil e China propuseram, há quase um ano, solução para o
fim do conflito na Ucrânia.
Solução que os Estados Unidos insistem em desconhecer, mesmo diante do
fracasso do anúncio de Trump de que acabaria com o conflito tão logo tomasse
posse, chegando a mencionar que iria conversar com Putin.
O BRICS, cuja presidência em 2025 cabe ao Brasil, foi outro tema
importante na conversa entre Lula e Putin.
Como Trump, desde o mandato anterior, havia definido a China como
principal inimigo e agora estende a designação a todos os membros do bloco, o
assunto obviamente foi alvo de conversa entre os dois presidentes.
Dito de outra forma, toda atenção aos passos de Trump, às suas ações
abertas e também aquelas por debaixo do pano, que sempre caracterizaram os
ocupantes da Casa Branca, precisam estar no radar brasileiro e internacional.
Possivelmente a Casa Branca e os militares estadunidenses ainda não
tenham se refeito do anúncio russo, em novembro do ano passado, sobre o míssil
supersônico Oreshnik, considerado o mais veloz e letal em atividade,
desbancando similares ocidentais.
Eles sabem que Putin não está brincando e, menos ainda, blefando.
Vale a pena recordar que Putin chegou a avisar a então presidente Dilma
Rousseff que o governo Obama, além de espioná-la, preparava golpe contra ela.
Pelo que se sabe, Dilma não acreditou. Deu no que deu.
Lula, que passou 580 dias preso, sem culpa, por interferência direta dos
Estados Unidos na Justiça e na política brasileira, sabe que não pode
descuidar, especialmente quando a maioria dos golpes atualmente fomentados pelo
Tio Sam são híbridos.
Aqueles que começam com manifestações sobre um assunto qualquer, como os
contrários ao aumento de R$ 0,20 nas passagens do transporte coletivo em São
Paulo, ganham apoio de parlamentares de extrema-direita, do mercado financeiro,
e são insuflados pela mídia corporativa e por redes sociais a serviço do Tio
Sam.
Foi assim no passado recente e continua sendo assim nos dias atuais.
Prova disso é a tentativa desta mídia de minimizar a truculência de Trump e
rapidamente desaparecer com as notícias positivas sobre a China, como a de ter
assumido a dianteira em aspecto tão estratégico como o da inteligência
artificial.
Dito de outra forma, essa mídia, que funciona como uma espécie de agente
subimperialista a serviço dos interesses da Casa Branca acredita que ainda pode
dar as cartas e tapar o sol com a peneira.
Todos os ingredientes do golpe contra Dilma continuam presentes, mas o
cenário é outro. A mídia corporativa brasileira está cada dia mais
desmoralizada.
As redes sociais, na realidade grandes empresas estadunidenses, ao aderirem
em massa à truculência de Trump, deixam claro a quem servem.
A notícia de que o democrata Joe Biden tinha plano para assassinar Putin
quase não repercutiu por aqui, graças a essa mídia, que, igualmente, não deu
qualquer relevância aos planos dos golpistas de 8 de janeiro de 2023 para
matarem Lula, o vice Geraldo Alckmin e o ministro do STF, Alexandre de Moraes.
Nos Estados Unidos, a denúncia sobre o plano para assassinar Putin gerou
um tremendo reboliço, com o governo russo pedindo explicações ao Capitólio e
enviando comunicado sobre o assunto à ONU. O comunicado pode ser acessado no
site das Nações Unidas.
Se Trump está comprometendo os republicanos, a situação dos democratas,
depois desta denúncia, não é muito diferente.
A grande novidade no cenário internacional é que sem qualquer gesto de
violência ou agressão, a China mostrou para Trump que não será fácil tornar os
Estados Unidos grandes de novo. Pelo menos grandes à custa da violência e da
exploração de outros países e povos.
O slogan, que pretendia sintetizar a volta por cima do Tio Sam, tem tudo
para se transformar em epitáfio.
Fonte: Viomundo
Nenhum comentário:
Postar um comentário