Inteligência
do Ministério da Justiça tem acesso a cadastros de alunos, revelam documentos
O Ministério da Justiça e
Segurança Pública (MJSP) tem obtido acesso a cadastros de alunos de redes
municipais de ensino a fim de alimentar a máquina de inteligência que o
ministério mantém e coordena, o sistema Córtex.
Segundo documentos aos quais
a Agência Pública teve
acesso, a coleta desses dados foi proposta pela primeira vez no atual governo
Lula (PT), pelo MJSP, em continuidade a uma busca por bases de dados sensíveis
sob a guarda de estados, municípios e entes privados – movimento que marcou
também a gestão do sistema de vigilância no
governo de Jair Bolsonaro (PL).
O Córtex reúne um conjunto
de dados sensíveis da população brasileira e é acessado por mais de 55 mil pessoas – grande
parte ligada a órgãos de inteligência da segurança pública, mas também a centros
de inteligência das Forças Armadas, às guardas municipais e até aos bombeiros.
Indagado pela Pública sobre
a obtenção de cadastros de estudantes, o MJSP disse que “o objetivo consiste na
prevenção de atentados no âmbito do projeto Escola Mais Segura” e que busca “identificar e
mitigar potenciais riscos à segurança de escolas e seus frequentadores”.
Especialistas em educação e
pesquisadores da violência no ambiente escolar ouvidos pela reportagem
contestam a abordagem do MJSP, ao considerar a coleta de dados de estudantes e
familiares uma medida “repressiva” e “autocrática”, com poucas chances de
melhorar a segurança nas escolas brasileiras.
A Pública confirmou
dois casos – Campo Grande (MS) e Ipojuca (PE) – em que as tratativas do MJSP já
resultaram na assinatura, em 2024, de Acordos de Cooperação Técnica (ACTs) para
o compartilhamento dos dados de alunos da rede municipal com o ministério. Por
meio de ACTs, o ministério concede acesso aos seus sistemas em troca de
“contrapartidas” – como os dados pessoais dos alunos municipais.
As administrações de Campo
Grande e Ipojuca já assinaram os acordos, pelos quais se comprometeram a
“disponibilizar”, 30 dias após a assinatura do termo, “informações sobre
cadastro de alunos na rede municipal”. Até o início de 2024, a rede municipal
de Campo Grande tinha pouco mais de 112 mil estudantes e a rede
de Ipojuca, cerca de 20 mil alunos, segundo o
Censo Escolar de 2023.
Os dados deveriam ser
enviados “via API para a Subsecretaria de Tecnologia da Informação e
Comunicação (STI)” do MJSP. Uma API (sigla em inglês para Application Programming Interface)
funciona como interface para integração de dois sistemas diferentes, permitindo
a troca de informações e dados.
Os ACTs foram assinados em
julho e agosto de 2024 por Adriane Lopes (PP), prefeita de Campo Grande, e por
Célia Sales (PP), então prefeita de Ipojuca. Nos dois casos, o governo federal
foi representado pelo chefe da Secretaria Nacional de Segurança Pública
(Senasp), Mario Luiz Sarrubbo, ex-procurador-geral da Justiça Estadual de São
Paulo. A Senasp é responsável pela área de inteligência do MJSP, tendo sob sua
alçada os sistemas Córtex e Sinesp – alvos de “consultas irregulares” e
sob suspeita de uso por “organizações criminosas”.
No caso de Ipojuca, os dados
obtidos pelo MJSP são “escolaridade, idade, filiação e endereço” dos alunos da
rede municipal. Em relação a Campo Grande, foi garantido o acesso a “dados
provenientes do cadastro de alunos”. Na documentação obtida pela Pública não
há mais detalhes sobre a natureza dos dados, nem quanto ao uso do material
pelos agentes de segurança pública e outros servidores públicos que teriam
acesso ao material.
Por outro lado, o conteúdo
amplia o alcance dos sistemas de vigilância do MJSP, mesmo com as suspeitas de
descontrole no acesso aos programas Córtex e Sinesp – o que permitiria, afinal,
que pessoas usem tais informações de alunos e pais de estudantes para outros
fins que não a manutenção da segurança nas escolas.
Pelos acordos, as
prefeituras de Campo Grande e Ipojuca se comprometeram ainda a enviar “os dados
provenientes do cadastro de pessoas sob domínio das secretarias” municipais
relacionadas aos temas do “turismo, transporte, trânsito e saúde”. A prefeitura
de Ipojuca aceitou também transferir informações do seu “Centro de Atendimento
ao Cidadão”, responsável por emitir registros de identidade na cidade.
Procurada pela Pública, a prefeitura
de Campo Grande não se manifestou sobre a cessão da base dos cadastros dos
alunos da rede municipal. Já o município de Ipojuca, hoje administrado pelo
prefeito Carlos Santana (Republicanos), disse que “que todos os convênios,
acordos e termos de compromisso feitos com órgãos e entidades pelas gestões
passadas, estão sendo levantados e analisados pela atual gestão municipal,
especialmente pela falta de acesso a todas informações necessárias no período
de transição de gestão”.
·
Acesso
a dados de alunos chamou atenção em reunião do CGDI
A Pública localizou
referências a outros 21 municípios que estariam perto de repassar, prometeram
ou foram instados a fornecer os cadastros de seus alunos, segundo documentos
oficiais do MJSP. As menções aparecem nas atas das reuniões do Comitê de
Governança de Dados e Sistemas de Informações (CGDI), obtidas por meio da Lei
de Acesso à Informação (LAI).
Os outros municípios cujas
atas do CGDI citam a possibilidade de acesso aos cadastros de alunos são
Chapecó (SC), Londrina (PR), Araçatuba (SP), Bebedouro (SP), Mongaguá (SP),
Ponta Grossa (PR), Rio Grande da Serra (SP), Ferraz de Vasconcelos (SP),
Limeira (SP), Mogi Guaçu (SP), Salto (SP), Leme (SP), Uberlândia (MG), Aracaju
(SE), São José (SC), Jaboatão dos Guararapes (PE), Jaguariúna (SP), Guapimirim
(RJ), Cariacica (ES), São Gonçalo (RJ) e Campo Limpo Paulista (SP).
Em todos os casos, embora as
atas registrem as negociações do MJSP sobre os cadastros, a Pública não
localizou ACTs já assinados, diferentemente dos casos de Campo Grande e
Ipojuca, ambas com acordos já assinados e obtidos pela reportagem. O MJSP não
divulga, em transparência ativa na internet, todos os ACTs que costuma assinar.
Os documentos do CGDI
mostram ainda que, na reunião de janeiro de 2024, uma representante da área de
informática do MJSP indagou à representante da Senasp no encontro, Geisa
Almeida, sobre a questão do acesso aos cadastros de alunos – naquele momento
discutido entre o ministério e a prefeitura de Chapecó (SC).
“A sra. Geisa respondeu que
os dados dos cadastros de alunos que serão integrados à plataforma se referem a
nome e a CPF [Cadastro de Pessoa Física] dos pais dos alunos e dos próprios
alunos”, segundo a ata do encontro do CGDI.
Indagado, o MJSP informou
que não há acordo vigente com a prefeitura de Chapecó, mas que “o processo
encontra-se em fase de tratativas, aguardando a definição da volumetria de
dados a ser compartilhada pelo município, sem que, até o momento, tenha sido
formalizada uma resposta”.
O CGDI é formado por servidores
representantes de 17 órgãos e setores sob comando do MJSP, incluindo as
polícias Federal (PF) e Rodoviária Federal (PRF) e a Senasp. O comitê tem 33 membros e se reúne
mensalmente para discutir e aprovar a “celebração de atos para captação ou
compartilhamento de bases de dados e demais ativos de informação”. No caso do
acesso ao Córtex, o MJSP cobra uma contrapartida, na forma de determinadas
bases de dados.
A leitura das atas das
reuniões mostra que o CGDI analisa de forma protocolar as sugestões de acordo
de cooperação técnica. Seus integrantes pouco indagam sobre a natureza e a
necessidade das bases de dados solicitadas pelo ministério durante os
encontros, que duram cerca de uma hora.
No caso do cadastro de
alunos, com exceção da pergunta feita em janeiro de 2024, em nenhum outro
momento foi questionada a necessidade de o MJSP ter acesso a esses dados e qual
sua real utilidade.
·
“Medidas repressivas assim não funcionam
dentro das escolas”
Em abril de 2023, após
ataques violentos ocorridos em diferentes escolas no país, o governo Lula
criou um grupo de trabalho com dezenas de
especialistas, sob a coordenação do Ministério da Educação (MEC), a fim de
“propor políticas de prevenção e enfrentamento da violência nas escolas”. Não
consta, na lista final de recomendações do grupo, nenhuma
proposta de coleta de dados ou monitoramento em tempo real de alunos como forma
de combater o problema.
À Pública, uma das
integrantes do grupo de trabalho, a professora visitante do Núcleo de Estudos
da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP) Miriam Abramovay, disse que coletas de dados
sensíveis de alunos, como a executada pelo MJSP, “não funcionam” no combate à
violência nas escolas.
“Os dados gerais de ataques
às escolas mostram que os agressores são alunos que tinham algum problema com a
escola, e não é à toa que a escolhem como um espaço real e simbólico para
cometer os ataques. Hoje, vemos que escolas em geral têm se fechado até para os
pais, então é um problema sério quando dados são coletados dessa forma – que,
honestamente, acho difícil que os pais sequer fiquem sabendo”, disse Abramovay,
coordenadora da área de Juventude e Políticas Públicas da
Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso).
Para a pesquisadora, coletas
de dados sensíveis e monitoramentos com imagens dos alunos dentro das escolas
seriam a face de um “pesadelo autoritário” que já tem se manifestado de outras
formas, como no aumento de escolas cívico-militares em estados governados por
políticos de direita no Brasil. “Medidas assim não funcionam dentro das
escolas”, afirmou Abramovay.
“Existe um pensamento no
Brasil que acredita que ordem só existe com mecanismos duros, que [a ordem] não
viria através do diálogo, da socialização, de considerar a escola um lugar de
aprendizagem e de amizade. Infelizmente, temos muita gente que acredita que a
escola tem de funcionar como um quartel, na base da disciplina, mas é essencial
dizer que escola não é, nem deve ser, um quartel”, disse a pesquisadora.
A professora e pesquisadora
da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB) Catarina de Almeida Santos, mestre e
doutora em política educacional, disse que era sabido que o Ministério da
Justiça buscava treinar profissionais de segurança para fazer o monitoramento
de certos grupos na internet, “nos quais é engendrada cooptação de crianças e
jovens para atacar não só escolas”. Mas disse não saber que “seriam reunidos os
dados de todos os alunos” e expressou surpresa com a informação.
“Isso [coleta indiscriminada
dos dados] me parece algo muito preocupante, embora eu não seja especialista na
área de segurança. Mas sempre vai me preocupar a questão do monitoramento das
nossas vidas, das vidas das crianças, como se todos nós estivéssemos sob
suspeita. Acho que há uma confusão, na nossa sociedade, entre o que é segurança
e o que é vigilância.”
Para a professora, “é
difícil entender” qual o objetivo do MJSP com o recolhimento das bases de dados
de alunos. “Espero que repensem esse sistema. Pode ter gente que vai pegar
esses dados para diferentes ações”, disse ainda Almeida Santos.
A pedagoga Telma Vinha,
doutora em educação pela Faculdade de Educação da Universidade de Campinas
(Unicamp) e pesquisadora sobre violência nas escolas, também recebeu com surpresa a informação da coleta de dados de alunos
e disse que a prática levanta questões sobre direito à privacidade e risco de
descumprimento da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).
“Quando é detectado um risco
potencial, eu consigo ver a lógica, há uma justificativa para o monitoramento.
Mas não estou entendendo como essa plataforma [Córtex], com todas essas
informações de estudantes, poderia colaborar para evitar a violência extrema
nas escolas”, disse a pesquisadora.
Segundo Vinha, há
necessidade da criação de um banco de dados sobre ataques que já ocorreram ou
que foram evitados pela ação de escolas ou das forças de segurança. “Um banco
de dados de acesso restrito, que possa receber pesquisas anonimizadas [dados
processados de forma a não serem associados a um indivíduo específico]. Para
que se possa aprender com cada caso. Até porque a literatura que temos é toda
internacional, mas temos muitas características que são diferentes do que
ocorre nos Estados Unidos. A ideia é estudar e conhecer melhor os casos, e a
partir daí se propor políticas públicas.”
Fonte: Por Rubens Valente e
Caio de Freitas, da Agencia Pública
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