Marcelo Zero: A
guerra de Trump contra o mundo começou
Aqueles que achavam
que Trump era apenas um “bravateiro, “caíram do cavalo”. Ou melhor, caíram dos
asnos que os carregavam.
Procuraram
racionalidade, bom senso e civilidade em quem se alimenta de ódio, brutalidade,
preconceitos e mentiras delirantes.
Não leram o Projeto
2025 da Heritage Foundation e não entenderam que este segundo mandato de Trump
se desenvolverá em circunstâncias políticas bem diferentes do primeiro.
Além de ter maioria
no Legislativo, no Judiciário e entre governadores, Trump está aparelhando a
própria máquina estatal para assegurar um projeto da extrema-direita
estadunidense e mundial.
Tem também o apoio
das Big Techs, que dominam a produção e disseminação de informações, em nível
mundial. Em seu último mandato, tem pressa e não tem a nada perder. Quem
tem tudo a perder é a democracia, ou o que restou dela.
Trump tem de ser
levado a sério como a ameaça que verdadeiramente é.
Pois bem, a partir
de terça começam a vigorar as tarifas que Trump Impôs aos três principais
parceiros comerciais dos EUA: México, Canadá e China. Os três são responsáveis
por quase 42 % do que aquele país importa.
Combinados, eles
exportam mais de US$ 1 trilhão por ano ao mercado estadunidense. Apenas em
produtos manufaturados provenientes desses países, US$ 2 bilhões passam pela
fronteira dos EUA todos os dias.
Para se ter uma
ideia da importância desse fluxo, quase 100% dos aparelhos celulares vendidos
no EUA são importados e 65% deles provêm da China e do México. Há apenas uma
empresa que fabrica celulares realmente “made in Usa”, a Purism, que tem um
faturamento ridículo de cerca de US$ 9 milhões por ano. O mesmo se aplica a
produtos eletrônicos em geral e a várias outras áreas muito relevantes para os
consumidores e empresas estadunidenses.
Assim, o impacto
desse “tarifaço” será imenso. Deve-se salientar, que no caso do Canadá e do
México, a maioria das tarifas está praticamente “zerada”, por força da área de
livre comércio criada, em 1992, pelo antigo Nafta, substituído pelo USMCA, que
fora renegociado por Trump, com regras mais estritas de origem e trabalhistas
para proteger a economia estadunidense.
Um tarifaço de 25%
é, portanto, colossal. Mesmo a adição de 10% às importações da China é muito
significativa, dada à integração ainda existente entre as duas maiores
economias do mundo.
É óbvio que os
outros países, Canadá, México e China, reagirão e também imporão tarifas ou
outras medidas protecionistas, iniciando uma guerra comercial de graves
proporções. O Canadá já anunciou suas medidas retaliatórias, que também são
duras.
Em alguns casos, como
na indústria automobilística, as tarifas deverão ser cumulativas.
Algumas peças de
automóveis cruzam a fronteira oito vezes antes de serem colocadas no
veículo final. Por exemplo, uma peça de aço básico pode ser enviada do
México para os EUA, onde é moldada em uma peça de carburador, e então essa peça
é enviada para o Canadá, onde o carburador é finalizado, antes de ser enviado
para o México para ser instalado durante a montagem final, após a qual o carro
é finalmente vendido nos EUA.
Observe-se
que, no caso do México, muitas das importações estadunidenses são de produtos
norte-americanos apenas montados ou “maquilados” naquele país.
E isso será apenas
o começo. Trump já divulgou que depois assestará suas baterias protecionistas
contra a União Europeia, “que comete atrocidades contra os EUA”, e outros
países.
Poderá acontecer,
dessa maneira, algo semelhante ao acontecido na grande recessão dos anos 1930.
Naquela época, as
respostas iniciais à crise nos Estados Unidos foram também marcadas pela
tentativa de superar as dificuldades internas apelando para o nacionalismo
protecionista, saída aparentemente fácil e de forte apelo popular.
A lei Smoot-Hawley,
adotada em 1930, que quadruplicou, para alguns produtos, as já elevadas tarifas
norte-americanas, teve, sem dúvida, um papel decisivo no agravamento do quadro
recessivo. As retaliações em cadeia a que deu origem levaram a uma contração de
quase 70% nos fluxos de comércio mundial, durante seu período de vigência
(1930/33), com as consequências conhecidas sobre a evolução das economias
norte-americana e mundial.
É claro que tarifas
altas e políticas protecionistas tiveram um papel muito relevante para o
desenvolvimento de indústrias nascentes, inclusive nos EUA. Mas esses
processos de construção de indústrias demoraram décadas e se deram, de forma
concomitante, com massivos investimentos em infraestrutura, educação e ciência
e tecnologia.
Achar que uma
súbita e brutal guerra tarifária e protecionista vai reindustrializar os EUA da
noite para o dia é um simples delírio.
O efeito econômico
mais imediato, certo e severo será, na realidade, o aumento da inflação e da
carestia de muitos produtos, o qual deverá ser seguido por um incremento
proporcional na taxas de juros dos EUA.
Nesse quadro, toda
a economia mundial, enfraquecida pela pandemia e por diversos conflitos, será
invariavelmente afetada. Por conseguinte, mesmo os países que não forem objeto
direto da fúria protecionista de Trump serão também negativamente
afetados.
O pior são as
justificações ridículas da fúria tarifária do America First, como a imigração
irregular e o tráfico de drogas. No caso do Canadá, menos de 1% dos migrantes
irregulares e das drogas ilícitas que entram nos EUA provém daquele país.
Quanto à chamada
epidemia dos opioides nos EUA, que inclui mais recentemente o fentanil, ela foi
criada pelas próprias indústrias farmacêuticas estadunidenses, que passaram a
pressionar pela venda de medicamentos perigosos e viciantes como a oxicodona,
por exemplo.
Entre 2017 e 2021,
86% dos traficantes de fentanil eram estadunidenses.
Trump mente
continuamente para justificar sua truculência econômica e política.
Em relação à União
Europeia, ele argumenta que os EUA têm um déficit comercial gigantesco com
aquele bloco (mais de US$ 300 bilhões) e que os europeus não compram nada dos
EUA.
Mas, segundo dados
do serviço estatístico europeu, Eurostat, as exportações de bens da UE para os
EUA atingiram, em 2023, 502,3 bilhões de euros e as importações 346,5 bilhões
de euros, com um excedente de 155,8 bilhões para o bloco europeu.
E, no que diz
respeito às trocas comerciais de serviços, a UE importou 396,4 bilhões de
euros e exportou para os EUA 292,4 bilhões de euros, em 2023, o que representa
um excedente de 104 bilhões de euros para os Estados Unidos. Desse modo, a
balança comercial geral é relativamente equilibrada.
Trump tem ideia
fixa de que os EUA “financiam” o mundo.
Ora, é justamente o
oposto. É o mundo que financia os EUA. Graças à hegemonia do dólar, países,
empresas e indivíduos do planeta inteiro investem nos títulos do tesouro
norte-americano para amealhar reservas de valor internacionais. São trilhões de
dólares que o mundo todo investe na economia e no governo dos EUA. Por isso, os
déficits comerciais dos EUA, provocados, em boa parte, pelos interesses das
próprias companhias estadunidenses, sempre em busca de custos mais baixos de
produção, não constituem, em si, um problema sério.
O problema sério
está na concorrência tecnológica da China e na perspectiva, de médio e longo
prazo, de erosão cumulativa da hegemonia do dólar. No momento em que o “Dollar
First” deixar de existir; aí sim as coisas vão se complicar, mesmo.
Mas fazer guerra
comercial indiscriminada, especialmente contra aliados, só vai piorar a
situação e acelerar esse processo.
O mundo tem de se
preparar para conter Trump. E essa resposta política e econômica tem de ser
concertada, calculada e equilibrada.
Deixado livre, sem
oposição, interna e externa, Trump fara as piores coisas possíveis. Parece um
psicótico sem controle.
Vai até tentar
reaver o Canal do Panamá e se apossar, como puder, da Groenlândia. Com ele,
temos um grau de imprevisibilidade insustentável.
Mais: se puder,
Trump vai destruir democracias e as regras internacionais.
A guerra contra
Trump não é apenas uma guerra comercial e econômica. É, sobretudo, a guerra da
civilização contra a barbárie.
¨ Criptofacismo planetário. Por Raniero La Valle
Caros amigos, o
Ocidente que não foi a Washington para a posse de Trump passou a
segunda-feira, 20 de janeiro, um dia de consternação e pesadelo. O discurso de posse de
Trump foi
além de todas as piores expectativas. O que se perfilou diante dos olhos foi o
fantasma de um criptofascismo planetário com o qual teremos que
acertar as contas nos próximos anos. A democracia, como valor sagrado do
Ocidente, está em crise e até mesmo, como mostraram os primeiros desconsolados
comentários após a festa no Capitólio, teria acabado. Não por destino,
entretanto, mas pela responsabilidade e escolha das próprias pessoas que hoje a
lamentam. O que acabou foi, na realidade, a democracia reduzida a puro
exercício eleitoral, não por acaso abandonado pela maioria, sem tudo o que tínhamos
colocado em nossa Constituição, o que deveria servir de modelo para a Itália,
bem longe de Salvini.
Os Estados
Unidos pagam a conta, e nos fazem pagá-la, pelas escolhas erradas que
fizeram após a queda do Muro de
Berlim e
o ataque às duas
torres em Nova York.
Perseguindo, como sempre fez, o mito da “America first”, acreditaram que sua
segurança e destino estavam no domínio do mundo, em ter um exército como nunca
antes visto na Terra e até mesmo em se dispor à guerra preventiva, porque “a
melhor defesa é um bom ataque”. Esse era o diáfano Biden, não
surpreendentemente o alvo da rejeição eleitoral. Ele dava como acabada
a Rússia e por isso jogou contra ela a pobre Ucrânia, e
proclamava urbi et orbi (nos documentos sobre a estratégia nacional
estadunidense) a competição estratégica e o desafio final com a China, o
único adversário que tinha “tanto a intenção de remodelar a ordem internacional
quanto o poder econômico, diplomático, militar e tecnológico para fazê-lo”.
Assim, a Casa
Branca e o Pentágono investem 800 bilhões de dólares por ano em despesas
militares, enquanto a Rússia investe 80 bilhões, retirando centenas de bilhões
de dólares por ano do bem-estar do povo estadunidense. Devemos a isso, como
disse Bernie Sanders, o eterno
candidato presidencial da esquerda estadunidense, o fato de “não ter nenhuma
razão racional para termos uma enorme e crescente desigualdade de renda e
riqueza, nenhuma razão racional para sermos o único grande país que não garante
serviços de saúde para todos, nenhuma razão racional por 800.000 estadunidenses
estarem sem casa e milhões de outros gastarem mais da metade de sua renda para
ter um teto sobre a cabeça, nenhuma razão racional para que 25% dos idosos nos
Estados Unidos tentarem sobreviver com 15.000 dólares por ano ou menos, por
termos a maior taxa de pobreza infantil de quase todas as nações ricas, por
termos jovens saindo da universidade profundamente endividados ou por termos
assistência à infância inacessível para milhões de famílias”.
Isso explica os
eventos de hoje, como passamos do Ocidente “alargado” até o Indo-Pacífico,
ao Japão e à Austrália de Biden para
o criptofascismo global de Trump, acompanhado por autarquia (tarifas),
sanções, ordens executivas aos cântaros, confusão de poderes, justiça de
regime, pena de morte, imunidade fiscal dos super-ricos e a pretensão
de decidir quando começar ou terminar essas guerras “ridículas”, mas sempre trágicas.
Entretanto, o pior
que se materializou nos Estados Unidos nessa segunda-feira negra de
20 de janeiro, poderia não vir a contagiar o mundo inteiro. Poderá causar
grandes danos, servir de escola especialmente para as maiorias silenciosas, mas
poderia ficar confinado ao que foi visto entre o Capitólio e a Capital One
Arena, um banho de multidão embevecida e subjugada, fechado, porém, numa bolha
que são os Estados Unidos e não o mundo. Não existe um único globo terrestre, o
mundo não está pronto para o fascismo planetário, tem outros
pensamentos, outra vocação. É claro que depende de nós, mas agora a alternativa
é clara: ou nos rendemos a essa queda da história, ou resistimos e construímos
uma verdadeira comunidade internacional de direito com uma humanidade indivisa.
Afinal, nem tudo o
que Trump anunciou e ameaçou com seu olhar turvo se concretizará de
fato; parece mais um blefe de Miles gloriosus do que um verdadeiro
anúncio. Não haverá nenhum pouso e colonização em Marte até o final deste
mandato presidencial. A ciência foi taxativa: neste ponto da evolução da
espécie, a humanidade não está apta física e antropologicamente para empreender
uma viagem àquele planeta distante. No mínimo pela duração da viagem, dois anos
entre ida e volta, expostos às radiações cósmicas, sujeitos ao enfraquecimento
muscular e esquelético que o corpo humano sofreria durante uma longa permanência
no espaço, com os desequilíbrios associados do tônus muscular cardíaco. Teriam
de ser construídas enormes naves espaciais giratórias, capazes de gerar uma
força interna semelhante à gravidade terrestre, algo que só poderia ser feito
diretamente no Espaço, aproveitando hipotéticas matérias-primas recolhidas lá
em cima (de asteroides ou da Lua); sem falar na vida em Marte, até 126 graus
abaixo de zero.
Isso significa que
o mito da dupla Trump-Musk já caiu, e se
o objetivo político mais simbólico de todas as promessas presidenciais se
mostra impossível e falso, significa que o resto também não é tão garantido, a
começar pela deportação, ou expulsão, de
milhões de migrantes, tidos como criminosos internacionais e invasores: isso
teria que ser feito com o exército posicionado na fronteira sul com o México, deixando “nossos
guerreiros livres para derrotar nossos inimigos”, como diz Trump; mas com
isso acaba o mito da fortaleza estadunidense, a ideia de que ninguém jamais
poderá atravessar a fronteira dos EUA de forma ofensiva; eis que, segundo
Trump, isso já teria acontecido por parte dos migrantes, tendo falhado a defesa
das fronteiras, como se os Estados Unidos fossem Lampedusa, como na
imaginação obsessiva de Salvini.
E quanto ao retorno
incondicional ao petróleo, ao carvão, de modo a irradiá-lo ao som de dólares em
todo o mundo, em que consiste o “America first”? Consiste no fato de que
os Estados Unidos serão os primeiros a sofrer, juntamente com as
ilhas que serão submersas pelo mar, e terá ciclones e tornados cada vez mais
devastadores, e cidades em chamas, como o incêndio de Chicago ontem e o incêndio de Los
Angeles hoje,
onde até mesmo os ricos “perderam suas casas”.
E o que dizer dessa
apresentação de Trump como o Messias que o próprio Deus teria
protegido com seu escudo para cumprir sua missão nos EUA e no mundo? Para os
Estados Unidos, isso não é novidade, havia o jovem Bush que, a
caminho de destruir o Iraque, dizia que estava
“chorando apoiado ao ombro de Deus”. E agora Trump usa a religião como um
banquinho a seus pés e coloca Deus acima de si, como garantidor de seu poder.
Exceto pelo fato que o Deus da tradição judaico-cristã, ao qual se refere o
messianismo que chegou nos EUA por meio da Genebra de Calvino, não é um
Deus que pode ser chamado para servir como escudeiro dos poderosos, mas é o
Deus que derruba os poderosos de seus tronos e exalta os humildes, o Deus que é
todo misericórdia e nada vingança do Papa Francisco. E portanto, se
religião deve ser e se chega a jurar sobre duas Bíblias no Capitólio, como se
uma não fosse suficiente, a de Lincoln de 1861 e a que foi doada a Trump por
sua mãe em 1955, é preciso começar a se perguntar novamente quem é esse Deus a
quem se apela tão descaradamente.
Talvez, diante
desses desafios, se precisaria repensar a má qualidade da secularização como a
fizemos acriticamente no Ocidente: também por isso seria importante que a
identidade espiritual e profética do judaísmo voltasse a resplendecer, não
arrastada para os extermínios, não restrita a uma única etnia, não traída pelas
políticas do Estado de Israel.
Fonte: Brasil 247/Prima Loro
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