sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

MSF alerta: congelamento da ajuda externa dos EUA resultará em desastre humanitário

Em resposta ao congelamento da ajuda externa dos EUA e ao desmantelamento abrupto da infraestrutura central do sistema de ajuda humanitária, Médicos Sem Fronteiras (MSF) emitiu a seguinte declaração de Avril Benoît, diretora-executiva da organização nos EUA:

“Como uma organização médica humanitária que trabalha em muitas das mesmas zonas de crise que a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID – sigla em inglês) e suas organizações parceiras, sabemos que a pausa repentina na assistência humanitária e o rápido desmantelamento de componentes essenciais do sistema de ajuda humanitária apoiado pelo governo dos EUA causarão um desastre humanitário irreparável, afetando milhões de pessoas em situação de vulnerabilidade no mundo.

Instamos o governo dos EUA a retomar imediatamente o financiamento de ajuda humanitária e de saúde essencial, seja revogando as ordens de congelamento de financiamento ou expandindo a atual ajuda humanitária, que já é pequena e restrita para cobrir todos os programas de saúde e humanitários necessários.

Estamos falando de inúmeros refugiados e outras pessoas deslocadas, crianças ameaçadas pela malária e pessoas que precisam de tratamento para HIV e tuberculose, cujos cuidados de saúde correm risco de serem interrompidos. Já estamos ouvindo de organizações locais que fecharam suas portas e não têm certeza de quando ou se poderão reabrir.

Nas últimas duas semanas, os relatos são de parceiros tentando lidar com mudanças radicais, que colocam em risco a entrega de assistência humanitária e de saúde para aqueles que mais precisam ao redor do mundo. A ajuda humanitária existente é insuficiente e precisa ser expandida para cobrir todos os programas de saúde e humanitários necessários.

A ampla interrupção da assistência estrangeira, juntamente com limitações e falta de clareza em torno do apoio às ações humanitárias, já resultou na perda de ajuda médica que salva vidas e em impactos prejudiciais nas comunidades de pacientes. Na última semana, as equipes médicas de MSF testemunharam confusão e incertezas, pois clínicas e outros serviços críticos, anteriormente apoiados pela USAID, foram fechados sem aviso.

MSF não aceita financiamento do governo dos EUA, e nossos programas não serão afetados diretamente. No entanto, o papel massivo que o governo dos Estados Unidos desempenha no financiamento da ajuda internacional não pode ser rapidamente preenchido por outros atores.

Instamos o governo dos EUA a interromper essas medidas e a permitir que toda a assistência humanitária e médica essencial continue, enquanto o governo analisa suas prioridades de assistência externa.”

¨      Cortes na USAID geram pânico na África: 'Muita gente morrerá'

A decisão do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de congelar a ajuda externa causou pânico entre os trabalhadores humanitários na África, que temem, por exemplo, que os programas de tratamento experimental para pessoas que vivem com HIV possam ser interrompidos.

O presidente republicano ordenou o congelamento da ajuda externa na semana passada.

Seu polêmico conselheiro Elon Musk, chefe do departamento de eficiência do governo, vangloriou-se de que eles iriam fazer com que a enorme agência humanitária dos EUA, a USAID, "passasse pelo triturador".

Isso significa uma suspensão de 90 dias do trabalho do Plano de Emergência do Presidente para o Alívio da Aids (PEPFAR), que atende a mais de 20 milhões de pacientes e emprega 270.000 profissionais de saúde, de acordo com uma análise da Fundação Americana para Pesquisa da aids (amfAR).

Entre outras funções, o PEPFAR atualmente fornece tratamento antirretroviral a cerca de 680.000 mulheres grávidas com HIV para cuidar de sua saúde e evitar a transmissão do vírus para seus filhos, diz a fundação.

"Com uma paralisação de 90 dias, estimamos que isso significará que 135.987 bebês serão infectados pelo HIV", alerta.

O secretário de Estado Marco Rubio, nomeado diretor interino da USAID, especificou que "tratamentos que salvam vidas" serão isentos da suspensão.

Mas os trabalhadores que atuam na África reclamam que as instalações já fecharam.

Aghan Daniel, chefe de uma equipe de jornalistas científicos financiada pela USAID no Quênia, reclama que os projetos foram interrompidos abruptamente, mesmo para pacientes em meio a tratamentos experimentais.

Ele cita o exemplo do projeto MOSAIC, financiado pelo PEPFAR, que testa novos medicamentos e vacinas para prevenir o HIV.

"As pessoas que eram candidatas ao estudo terão efeitos adversos sobre a saúde porque o estudo foi interrompido repentinamente", disse Daniel à AFP.

Sua própria equipe de seis jornalistas científicos que coletam informações sobre questões de saúde também perdeu o emprego.

"Muitas pessoas morrerão por falta de conhecimento", ele reclama. "Uma das principais estratégias para reduzir os números do HIV na África é fornecer informações. Isso inclui aumentar a conscientização sobre sexo, bem como sobre tratamentos como lenacapavir (um antirretroviral), profilaxia pré e pós-exposição e outros medicamentos", argumenta.

<><> Vida ou morte

Fundada em 1961, a USAID tem um orçamento anual de mais de US$ 40 bilhões (231 bilhões de reais) usado para promover programas de desenvolvimento, saúde e humanitários em todo o mundo, especialmente em países pobres.

Mas os programas de HIV não são os únicos afetados.

Um funcionário de um programa financiado pela USAID no Quênia diz que a decisão de Trump foi "uma bomba" e deixou as pessoas em "pânico".

"Teremos mais pessoas sucumbindo a doenças como tuberculose e cólera", diz essa fonte.

Sua organização agora não pode pagar aluguel ou salários, portanto, seus funcionários foram colocados em licença compulsória não remunerada.

Em um escritório da USAID em Adis Abeba, na Etiópia, a AFP encontrou na quarta-feira funcionários esvaziando suas mesas.

Apesar da isenção de Rubio, "ainda há muita incerteza", disse um funcionário de uma ONG que trabalha com segurança alimentar em zonas de conflito.

"O que constitui um trabalho que salva vidas - as vacinas salvam vidas ou os programas de nutrição para os gravemente desnutridos?", pergunta esse trabalhador humanitário, que pede para permanecer anônimo.

"A interrupção de alguns desses programas, mesmo que por alguns dias, pode fazer a diferença entre a vida e a morte para algumas das pessoas que atendemos", diz ele.

Como muitos outros, o jornalista queniano Daniel acredita que o impacto da decisão poderia ter sido atenuado com um aviso prévio.

"Já temos muitas emergências no mundo. Não há necessidade de acrescentar mais uma".

¨      Metade da população do Sudão enfrenta altos níveis de insegurança alimentar, diz MSF

Metade da população do Sudão enfrenta altos níveis de insegurança alimentar aguda, o que corresponde a 24,6 milhões de pessoas. Desse total, 8,5 milhões enfrentam uma situação de emergência ou situação de fome, segundo a última Classificação da Fase de Segurança Alimentar Integrada (IPC, na sigla em inglês). Os doadores internacionais, a Organização das Nações Unidas (ONU), os envolvidos na guerra no Sudão e seus aliados devem agir agora para prevenir ainda mais mortes evitáveis por desnutrição no país. A situação, já catastrófica, deve piorar este ano.

“Apesar deste novo alerta, a mobilização humanitária e diplomática robusta ficou muito aquém das necessidades. Para fornecer cestas básicas mensais apenas àqueles em situação mais extrema, seriam necessários 2.500 caminhões de ajuda por mês, enquanto apenas cerca de 1.150 chegaram a Darfur entre agosto e dezembro de 2024”, diz Stephane Doyon, coordenador de operações de Médicos Sem Fronteiras.

“Há partes do Sudão em que é difícil trabalhar, mas é certamente possível. É isso que as organizações humanitárias e a ONU devem fazer,” Marcella Kraay, coordenadora de emergência de MSF. A organização reuniu dados que mostram taxas alarmantes de desnutrição em vários locais, tanto no auge do período de entressafra no Sudão no ano passado, quanto em dezembro de 2024. A crise de desnutrição causada pelo conflito no país se agravou pela contínua obstrução de ajuda humanitária pelas partes envolvidas no conflito e pela inércia negligente da ONU e do sistema de ajuda em Darfur. Com a entressafra que se aproxima em maio, que aumenta a escassez de alimentos, ações decisivas devem ser tomadas agora.

“Há partes do Sudão em que é difícil trabalhar, mas é certamente possível. É isso que as organizações humanitárias e a ONU devem fazer”, afirma Marcella Kraay, coordenadora de emergência de MSF. “Tanto em locais de mais fácil acesso, quanto em áreas de difícil movimentação, como em Darfur do Norte, rotas aéreas permanecem inexploradas, por exemplo. O fracasso em agir é uma escolha e está matando pessoas”.

·        Órgãos internacionais precisam coordenar envio de ajuda humanitária

A crise de desnutrição é reconhecida há algum tempo. A ONU, em comunicado emitido em outubro, alertou que “nunca na história tantas pessoas enfrentaram a fome e morreram de fome como no Sudão hoje.”

Levar suprimentos se tornará uma tarefa ainda mais difícil durante a próxima estação chuvosa e de entressafra, quando se torna impossível circular por estradas de terra inundadas. Uma resposta humanitária em larga escala deve ser lançada agora, inclusive aumentando drasticamente o financiamento disponível e as capacidades logísticas, garantindo corredores para envio de alimentos e abastecendo estoques de alimentos no Chade e em países vizinhos.

MSF está pedindo que agências da ONU, organizações internacionais, países doadores e governos com influência busquem todas as opções, incluindo rotas aéreas, para complementar e até mesmo substituir o acesso por rodovias, quando necessário.

As exigências burocráticas das partes em conflito têm sido um obstáculo à capacidade das organizações internacionais de prestar serviços e chegar às pessoas. Em vez de reagir a necessidades críticas em tempo hábil, as respostas são atrasadas ou negadas completamente pelas partes em conflito. Isso impede o trabalho de MSF no estado de Darfur do Sul: caminhões com suprimentos ficam retidos no Chade à espera de permissão para se deslocarem da área das Forças de Apoio Rápido (RSF, na sigla em inglês) e de seus escritórios. Uma distribuição de alimentos em Darfur do Sul também foi adiada recentemente, já que as autorizações de viagem necessárias foram negadas.

As partes em conflito devem conceder acesso irrestrito às organizações humanitárias. O acesso deve ser entendido como uma forma de promover a ajuda humanitária essencial para salvar vidas. MSF pede que as partes em conflito, seus aliados e Estados influentes usem essa influência para aliviar os obstáculos que estão causando mortes e sofrimento.

·        Índice de desnutrição é alarmante em diversas áreas do Sudão

MSF forneceu dados de diferentes locais para demonstrar a profundidade da crise de desnutrição. Em Darfur do Norte, onde um cerco da RSF à capital, El Fasher, está deixando as pessoas famintas e privando-as de assistência vital, equipes de MSF examinaram mais de 9.500 crianças menores de 5 anos de idade, enquanto realizavam uma distribuição de alimentos terapêuticos na localidade de Tawila, no oeste do Sudão, em dezembro de 2024. As equipes encontraram um cenário preocupante: 35,5% das crianças estavam com desnutrição aguda, sendo que 7% delas já sofria com desnutrição aguda grave.

Em setembro do ano passado, 34% das 29.300 crianças examinadas por MSF durante uma campanha de vacinação no acampamento de Zamzam sofriam de desnutrição aguda. Desde o início de dezembro, bombardeios repetidos impossibilitaram que nossa equipe realize novas avaliações no acampamento, onde, provavelmente, os índices de desnutrição aumentaram.

As equipes de MSF também veem taxas preocupantes de desnutrição fora de Darfur, seja em áreas onde pessoas deslocadas buscam abrigo, seja em áreas mais próximas do conflito. Em Omdurman, estado de Cartum, uma zona de conflito sob controle das Forças Armadas Sudanesas (SAF, na sigla em inglês), MSF realizou uma triagem nutricional enquanto auxiliava uma campanha de vacinação para crianças, em outubro de 2024. A organização constatou que 7,1% das crianças examinadas estavam gravemente desnutridas.

Esta não é a primeira guerra que eu vivo, mas é definitivamente a mais devastadora. As condições de vida aqui são difíceis, e tudo é uma luta diária,” Zahra Abdullah, que mora com o filho no acampamento de deslocados em Al Salam, nos arredores de Nyala. Dados de MSF também revelam que a desnutrição não é um problema apenas para pessoas próximas às linhas de frente, mas também em cidades mais estáveis como Nyala, capital de Darfur do Sul: em outubro de 2024, 23% das crianças menores de 5 anos examinadas em instalações apoiadas por MSF na cidade e em locais próximos estavam sofrendo de desnutrição aguda grave.

Em duas instalações apoiadas por MSF, 26% das mulheres grávidas e lactantes que procuravam atendimento estavam gravemente desnutridas. Com a falta de distribuição de alimentos do Programa Alimentar Mundial da ONU, MSF lançou uma distribuição de alimentos direcionada em Darfur do Sul, em dezembro de 2024, fornecendo mantimentos por dois meses para cerca de 30 mil pessoas. MSF continuará fazendo o que pode, mas a escala da crise está muito além da capacidade de resposta da organização. Precisamos ter uma resposta massiva agora para evitar mais mortes e fome. O momento é agora. Essa é uma questão de sobrevivência, não de conveniência política.

 

Fonte: MSF – imprensa/AFP

 

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