Lana de Holanda
Pelech: Extrema direita faz pessoas trans
de bode expiatório. Nos EUA e aqui
A receita clássica de todo movimento de extrema
direita implica o apontamento de um “inimigo interno”. Algum grupo social, de
preferência já vulnerabilizado, como os imigrantes e refugiados, por exemplo,
deverá ser sacrificado para o entretenimento e regozijo das massas alienadas.
No dia 6 de maio de 1933, o governo nazista promoveu
sua primeira queima de livros, algo que se tornou muito comum e intenso nos
anos seguintes. Queimar livros era uma forma de tentar apagar o conhecimento
produzido sobre aquilo que o regime não gostaria que se espalhasse, se tornasse
público e de fácil acesso. Uma tática fascista.
Naquela data, em 1933, o primeiro alvo foi o Institut
für Sexualwissenschaft (Instituto de Pesquisa Sexual), onde centenas de
pesquisas sobre sexualidade e gênero foram incendiadas, incluindo os primeiros
manuais sobre transição de gênero do Ocidente.
Agora, em 2025, nos primeiros dias do governo Trump nos
Estados Unidos, algo muito parecido começou a acontecer. Não, livros físicos
não estão sendo queimados em praça pública (ainda). O que está acontecendo é
algo relativamente mais simples: todos os sites ligados ao governo federal dos
Estados Unidos da América estão sendo reformulados, com todas as referências à
comunidade trans e ao termo “gênero” sendo categoricamente deletadas.
Na sua página voltada ao turismo, o governo Trump
alterou a aba “LGBTQI+ Travelers” para “LGB Travelers”. Teoricamente, lésbicas,
gays e bissexuais ainda podem existir, enquanto pessoas trans estão sendo
institucionalmente apagadas.
Outra receita muito usada pela extrema direita é o
“separar para destruir”. Aliar-se à parcela conservadora das lésbicas, gays e
bissexuais, que, por uma visão colonizada de sexualidade, acabam rejeitando a
convivência com as dissidências de gênero da comunidade queer, é importante
para avançar, de forma mais rápida e eficiente, nos processos de eliminação do
“inimigo interno”.
Independentemente das justificativas inventadas, o
fascismo sempre foi e sempre será sobre isso: eliminar conhecimentos, apagar
subjetividades, destruir existências. Termos como “proteger a família”, “salvar
as crianças” ou “defender as mulheres”, quando usados pela extrema direita, são
totalmente esvaziados de significado. Tornam-se cortinas de fumaça para
camuflar os reais projetos de extermínio das vidas LGBTI, começando pelas
pessoas trans.
Já no CDC, que é o órgão estadunidense de controle de
doenças e pesquisas na área da saúde, eles foram mais explícitos e não pouparam
nem as letrinhas LGB, embora o maior foco de ataques ainda seja a comunidade
transgênero.
A nova diretoria do órgão determinou que seus
cientistas “corrijam” pesquisas que contenham os termos “LGBT”, “gênero”, “não
binário”, “biologicamente macho”, “biologicamente fêmea”, etc. Voltamos para
1933, na Alemanha. Pesquisas científicas sendo destruídas (mesmo que não seja
por ação do fogo) ou descontinuadas, por pressão política reacionária e
anti-científica.
Apagar menções às pessoas trans em documentos médicos
não fará com que essas pessoas deixem de existir. Mas tornará mais difícil a
implementação e a execução de políticas públicas voltadas para essa comunidade.
Dificultará, ainda mais, a vida dessas pessoas e seu acesso a direitos básicos.
Logo nos primeiros dias de governo, Trump também
determinou que os passaportes dos Estados Unidos não contemplassem mais as
pessoas não binárias. Elas terão que se enquadrar em “homem” ou “mulher”.
Isso não diminuirá os preços dos alimentos e da gasolina,
não tornará os planos de saúde mais acessíveis e não melhorará em nada a
qualidade de vida do cidadão médio estadunidense.
Mas saciará o ódio e a frustração que existem em tantos
desses cidadãos, que, diante de uma realidade de crescente violência e de
preços cada vez mais altos, decidem descontar suas amarguras e insatisfações
não nos bilionários que os exploram, mas nos grupos já vulnerabilizados por uma
sociedade totalmente opressora e desigual.
Aqui no Brasil, a extrema direita – que é movida por um
forte complexo de vira-lata e total falta de identidade própria – tem tentado
copiar os discursos transfóbicos do Norte Global.
Nikolas Ferreira, do PL de Minas Gerais, em 8 de março
de 2023, usou o púlpito da Câmara dos Deputados para propagar a ideia,
associada a correntes do feminismo radical, de que a existência das mulheres
trans representaria uma ameaça às mulheres cis. O que, obviamente, não possui
nenhum respaldo na realidade.
Estima-se que as pessoas trans no Brasil sejam apenas
2% da população. Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais, a
Antra, cerca de 90% da comunidade trans brasileira precisa recorrer à
prostituição como meio de subsistência, devido à falta de oportunidades no
mercado formal de trabalho.
Na política, nos esportes, na academia, no jornalismo,
na cultura e no entretenimento – em todos os espaços públicos –, o tímido
avanço de mulheres trans ainda é ínfimo e não representa, sob nenhum aspecto,
qualquer risco para as demais mulheres. Pelo contrário, dois importantes
princípios feministas são justamente a solidariedade e a interseccionalidade.
Mais recentemente, em São Paulo, o vereador Lucas
Pavanato, do PL, o mais votado do Brasil em 2024, propôs três projetos de lei
para cercear direitos de pessoas trans. A direita brasileira tem se
especializado em projetos de retirada de direitos.
Você já viu alguém do PL defendendo passe livre? Já viu
algum parlamentar do PP ou do Republicanos em defesa do SUS ou de melhorias das
universidades federais? Não, nunca. A lógica reacionária brasileira (em que
direita e extrema direita caminham juntas, formando, muitas vezes, um bloco só)
é sempre a lógica da retirada de direitos e da marginalização dos “inimigos
internos”.
É fundamental que o campo democrático brasileiro tenha
atenção ao que está acontecendo com a comunidade trans nos Estados Unidos. Nos
próximos meses, provavelmente veremos uma escalada da perseguição e até da
criminalização das vivências queer.
E isso terá reflexos no Brasil e no restante do mundo.
Portanto, é muito importante que a sociedade brasileira – aquelas e aqueles que
não aderiram ao fascismo bolsonarista – esteja pronta para defender e caminhar
ao lado das pessoas trans.
¨
Mulheres
trans nos EUA podem ir para prisões masculinas. Por Shawn
Musgrave
Na tarde de sexta-feira, Kara Sternquist, uma
mulher trans detida em uma prisão feminina federal em Forth Worth, Texas, EUA,
foi retirada de sua unidade. Um guarda disse a Sternquist que ela tinha uma
consulta psiquiátrica excepcional na capela.
“Mentiram para ela”, conta Deviant Ollam, um amigo que
fala frequentemente com ela por telefone. “Assim que ela estava longe de todos,
eles a levaram.”
Sternquist teria contado a Ollam, segundo o próprio,
que estava entre a dezena de mulheres trans que haviam sido separadas da
população geral da prisão FMC Carswell e transferida para a unidade de
segregação administrativa que normalmente é usada para detentas em risco de
suicídio. (O Intercept não conseguiu falar diretamente com Sternquist, e um
funcionário da FMC Carswell se recusou a responder perguntas em contato
telefônico na segunda-feira.)
Elas foram informadas de que seriam transferidas para
um presídio masculino, segundo Ollam, à luz do decreto antitrans do
presidente Donald Trump, que orientou o
Departamento Penitenciário a assegurar “que machos não sejam detidos em prisões
femininas” e que detentos não recebam cuidados de saúde de afirmação de gênero
com uso de recursos federais. Na segunda-feira, Trump editou outro decreto de
intolerância,
barrando as pessoas trans do serviço militar, que foi rapidamente
questionado na
justiça federal.
As mulheres trans obrigadas a viver em estabelecimentos
prisionais masculinos enfrentam um risco
desproporcional de
agressão sexual e violência, como reconhece o manual sobre detentos trans do
Departamento Penitenciário, publicado em 2022.
Na tarde de terça-feira, um diretor da prisão disse
inesperadamente a Sternquist que ela poderia retornar à sua unidade por
enquanto, segundo Ollam relatou ao Intercept. “Ela ainda está muito preocupada,
mas otimista”, disse, depois de falar ao telefone com ela.
Os quatro dias de sofrimento de Sternquist e a
incerteza persistente sobre onde ela cumprirá o restante de sua pena refletem a
situação precária de centenas de pessoas trans em prisões federais, que estão
sendo perseguidas por Trump e seus aliados de extrema direita.
“A pior parte para ela é não saber o que vai acontecer
a seguir”, diz Allegra Glashausser, advogada de Sternquist. “Ela não sabe se
será mantida com homens. Ela não sabe se receberá seus hormônios como
programado. Tudo é incerto. Estou extremamente preocupada com a segurança
física e a saúde mental de Kara.”
“As pessoas trans presas, e especialmente as mulheres
trans, estão sofrendo o impacto direto dos danos imediatos desse decreto”, diz
Shayna Medley, advogada de contencioso da organização Defensores da Igualdade
Trans.
Não é a primeira vez que Sternquist enfrenta uma
alocação perigosa em presídio federal.
Em 2022, depois de ser presa por acusações relacionadas
a armas de fogo e posse de crachás do governo forjados, Sternquist foi
inicialmente colocada na unidade
masculina das
famigeradas instalações da MDC Brooklyn, embora seu passaporte e sua carteira
de motorista tragam a informação de que ela é mulher.
Foram necessários dois mandados judiciais e a ameaça de
sanções por um juiz federal para que o Departamento Penitenciário transferisse
Sternquist para um alojamento feminino na MDC Brooklyn. “O Departamento de
Justiça e o Departamento Penitenciário atuam sob o equívoco de que os mandados
judiciais são consultivos”, escreveu o juiz Sanket Bulsara, em mandado expedido
em setembro de 2022. “Essa conduta contumaz enseja risco de sanções por
descumprimento.”
Em outro mandado, de novembro de 2022, um juiz determinou que o
Departamento Penitenciário alterasse o marcador de gênero de Sternquist para
“mulher” em um banco de dados prisional. “Deixar de fazê-lo apenas continuaria
a causar os problemas de atribuição equivocada de gênero que a Ré vem
enfrentando sob custódia”, escreveu a juíza distrital Dora Irizarry.
Em agosto de 2024, após Sternquist se declarar culpada
pela acusação relativa às armas de fogo, Irizarry a condenou à prisão por 60
meses. A sentença da juíza
recomendava especificamente que Sternquist fosse direcionada para a FMC
Carswell “ou outro estabelecimento médico feminino”, e que o Departamento
Penitenciário “fornecesse cuidados médicos de afirmação de gênero e de outros
tipos”.
“É preciso mover céus e terras para que elas fiquem na
unidade certa”, disse Ollam sobre o processo para que pessoas trans presas
sejam direcionadas para as instalações adequadas, mesmo com as regras do
governo Biden. “Se elas forem transferidas, provavelmente estarão perdidas para
sempre.”
Ollam, que publica atualizações em vídeo sobre o caso e
as condições de Sternquist, contou ao Intercept que ela não sabe quando será
transferida, mas teme que possa acontecer a qualquer momento. Enquanto isso,
autoridades do presídio começaram a se dirigir a Sternquist e às outras
mulheres trans por pronomes masculinos, segundo Ollam. “Quando os funcionários
entram aqui, eles se dirigem a elas como ‘senhores'”, diz.
O Departamento Penitenciário não respondeu às perguntas
sobre as mulheres trans detidas na FMC Carswell, nem sobre os planos de
transferi-las. Mas outro detento do local, Ángel Espinosa-Villegas, que é
transmasculino, fez um relato muito parecido com o de Ollam nas mensagens que
enviou aos amigos.
Na sexta-feira, os guardas “levaram as mulheres trans
de todas as unidades”, escreveu Espinosa-Villegas em uma mensagem no dia, que
foi compartilhada com o Intercept. “Você precisava ter visto os olhares
malignos de triunfo quando eles escoltaram as mulheres trans daqui, chorando.”
Espinosa-Villegas também escreveu sobre o receio entre
detentos transmasculinos de “sermos os próximos na lista de Trump”.
“Agora estão falando sobre nós, transmasculinos, sermos
enviados para [segregação administrativa] até o ‘Trump encontrar um lugar para
nós'”, escreveu Espinosa-Villegas. “Tem policiais dizendo essa merda. Eles se
recusaram a me dar as injeções [de testosterona] todas as vezes que fui pedir.”
“Meu Deus, ver as mulheres trans sendo arrastadas foi
pura maldade”, escreveu Espinosa-Villegas em outra mensagem. “Não sei mais o
que fazer além de soar os alarmes.”
No domingo, outra mulher trans sob custódia federal —
identificada nos autos do processo por um pseudônimo, Maria Moe — entrou com a
primeira ação judicial contestando o decreto.
“Maria Moe vive como mulher e tomar hormônios
continuamente desde a adolescência”, diz a petição inicial, protocolada na
justiça federal no estado de Massachusetts. “Durante seu período de encarceramento,
ela sempre foi tratada como mulher pelos funcionários da administração
penitenciária e por suas colegas. Ela nunca foi alojada em uma instituição
masculina, e nunca parou de tomar seus hormônios.”
Mas na semana passada, como Sternquist e as outras na
FMC Carswell, Moe foi removida da população geral de um estabelecimento
feminino, segundo os documentos judiciais, que ocultaram o nome do presídio
específico. No dia seguinte à assinatura do decreto por Trump, Moe foi
confinada à “Unidade Especial de Alojamento” e “não foi autorizada a ter
contato com outras pessoas por pelo menos quatro dias”.
O advogado de Moe argumenta que as disposições do
decreto sobre alojamento de presos violam a proibição da Oitava Emenda
Constitucional contra penas cruéis ou incomuns, entre outras disposições da
Constituição e da legislação federal, assim como a proibição de fornecimento da
terapia hormonal e outros cuidados.
“Transferir Maria Moe para uma prisão masculina
representará um risco substancial de danos graves, incluindo risco extremamente
alto de violência e agressão sexual por outras pessoas encarceradas e
funcionários do Departamento Penitenciário”, diz a petição inicial.
Em resposta ao pedido, o juiz distrital George O’Toole,
em Boston, impediu liminarmente a
transferência, enquanto aprecia o mérito da questão.
Embora o caso de Moe tenha sido rapidamente colocado em
sigilo, Ollam diz que ele, Sternquist, e as outras mulheres trans na FMC
Carswell estão acompanhando de perto, na esperança de que o juiz do caso
suspenda o decreto em todo o país. Na semana passada, um juiz federal suspendeu
temporariamente outro
dos decretos de Trump, relativo ao direito de cidadania por lugar de
nascimento.
“As meninas só querem que seu recado seja: o silêncio
equivale à morte”, diz Ollam.
Fonte: The
Intercept
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