Migrações: entre o cinismo e a
necessidade do capital
A globalização da economia, com o consequente processo
de financeirização e as repercussões sobre o mercado de trabalho, contribui
para conferir a este um papel relevante, tanto à globalização em si quanto à
proteção social.
A reforma do Estado passou a ser uma exigência da crise
capitalista desencadeada nos países desenvolvidos e praticamente expandida a
todo o mundo a partir da metade dos anos 70, do século passado. A dificuldade
do grande capital em manter as taxas de lucro do período keynesiano, com
elevadas rentabilidade e produtividade, acirrou a concorrência, o que levou a
exigir desregulamentação e liberalização dos mercados com vistas a possibilitar
a livre circulação, notadamente de bens, serviços e capital.
Esse processo se fundamentou numa luta ideológica com o
propósito de restringir orçamentos e gastos dos Estados visando equilibrar as
contas públicas e mesmo gerar superávits fiscais, cujo alvo predileto passou a
ser a eliminação de direitos sociais, desestruturando simultaneamente o aparato
de proteção social. Reformas nos sistemas de previdência e de saúde foram
implementadas nos países desenvolvidos e disseminadas às demais nações. Nesse
sentido, a estruturação dos fundos de pensão constituiu-se em instrumento
essencial para acentuar a globalização financeira.
Ressalte-se que uma característica da
esfera financeira concerne à expressiva autonomia que exerce face à produção e,
principalmente, por condicionar a capacidade de intervenção das autoridades
monetárias. Grandes investidores passaram a dominar tal processo a ponto de
decidirem sobre quais agentes econômicos, países e tipos de transações seriam
atrativos segundo seus interesses de rentabilidade financeira. Enfim, isso
significou uma forte submissão dos países menos desenvolvidos que, sob a égide
neoliberal sustentada pelo FMI e pelo Banco Mundial, sofreram forte e rápida
desregulamentação dos seus mercados financeiros. Suas frágeis economias foram fortemente
atingidas, submetidas a crises, as quais, no caso de propagação, como a do
final do século passado, chegaram a assumir uma dimensão de risco sistêmico1. Isto foi evidente
a partir do efeito contágio da crise asiática e russa, que se estendeu à
América Latina, sendo responsável, inclusive, pelo fim da indexação do real ao
dólar, uma âncora cambial artificialmente valorizada, pois decretada pelo
governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, como estratégia de
“sustentação” do Plano Real.
Assim, a inevitável desvalorização dessa moeda alertou
o FMI a “intervir”, dado o temor de que a situação brasileira, em razão do porte
de sua economia, se entendesse para o restante da Região. Como de praxe, esta
instituição, funcionando como “bombeiro” visando paliar crises monetárias e de
balanço de pagamentos, concedeu, com outras instituições multilaterais, um
empréstimo vultoso de bilhões de dólares, todavia condicionado à aplicação de
políticas monetário-fiscais ortodoxas e privatizações, como regra geral de
submissão dos países. Foram então adotadas a Lei de Responsabilidade Fiscal
(famosa LRF, que visa meta de equilíbrio fiscal e rigor na manutenção de
superávits primários), bandas de inflação e taxa de câmbio flutuante, o chamado
tripé macroeconômico. Ora, sob rígida observância do Banco Central,
“autoproclamado” independente, passou-se a exercer controle rigoroso na aplicação
das referidas políticas por meio da prática de taxas de juros reais que chegam
a patamares exorbitantes, como na atual conjuntura brasileira. O crescimento da
economia, tão reclamado pelos economistas heterodoxos, desenvolvimentistas, é
então comprometido, e a implementação de políticas progressistas de alcance
social (em especial de saúde e educação) torna-se inviável. Vale salientar que
a lógica imanente da acumulação financeira não deixa de fora nem mesmo países
desenvolvidos, como a grande depressão provocada pelo subprime americano de 2008, que
afetou praticamente todas as economias nacionais.
Até aqui discorremos sobre o processo de globalização
econômica e financeira graças à flexibilização e desregulamentação dos mercados
de bens, serviços, commodities (notadamente produtos agrícolas, matérias-primas
e minerais) e capitais. Certamente, há implicações da financeirização sobre os
trabalhadores, uma vez que a tendência à desregulamentação dos mercados,
concomitante à incorporação de novas tecnologias, induzem à desregulamentação e
flexibilização do mercado de trabalho por meio do aumento da rotatividade
da mão-de-obra, da subcontratação (travestida de pejotização, no caso
brasileiro) e terceirização. Isso tudo representa, inclusive, novas formas de
intensificação do trabalho2, pelas vias das
mais-valias absoluta e relativa.
Em última instância, vale considerar que há uma inversão
de prioridades no sentido da esfera financeira (cujos recursos são atraídos
pelas elevadas taxas de juros das aplicações) em detrimento de investimentos na
esfera produtiva. Ora, se a taxa de investimentos na economia real não cresce,
compromete-se a geração de empregos e até mesmo provoca-se a supressão de
postos de trabalho em geral, com repercussão especialmente na indústria e em
certos ramos dos serviços que empregam tecnologias modernas. Como consequência,
têm-se aumentos do desemprego e da exclusão, simultaneamente ao incremento de
ocupações em atividades relativas à economia informal.
Pelo visto, todo esse processo permite conferir ao
mercado de trabalho um papel relevante, como condicionante, tanto para a
globalização em si quanto para a proteção social. De fato, ele apresenta
características peculiares, pois enquanto os outros mercados (de
matérias-primas, componentes, bens de capital, tecnologia, produtos, serviços e
capital) tendem a se liberar em escala planetária, num movimento intenso de
cobertura global, sempre à busca de redução dos custos de produção, a
liberalização do mercado de trabalho visa promover uma maior mobilidade da
força de trabalho internamente, ou seja, sem transcender os limites dos
Estados-Nações3.
Este mercado não se globaliza plenamente em razão da
problemática do emprego, cuja alegação concerne a implicações negativas sobre
mercado de trabalho (e socialmente) dos países centrais, o que demanda medidas
rigorosas de proteção interna em relação à “concorrência externa” inerente às
pressões dos fluxos migratórios. Ora, impede-se a livre mobilidade da força de
trabalho internacionalmente, porém, se aplicam, intranacionalmente, as
determinações imanentes da necessidade de expansão do capital no rumo da
globalização. Neste sentido, a força de trabalho não seria “excluída” da
lógica inerente ao processo de globalização pelo fato da restrição de
mobilidade que lhe é imposta, ao contrário, ela passa a constituir fator
basilar.
Em efeito, isto se verifica pelo menos em relação a
quatro aspectos. Em primeiro lugar, a intensificação da concorrência
capitalista exige cada vez mais a redução dos custos do trabalho que é
viabilizada por meio de um processo de desregulamentação que visa eliminar os
entraves à mobilidade interna (em níveis nacionais) da força de trabalho. Em
segundo, esta mesma concorrência se beneficia de tal processo e procura aliviar
o peso social – e o risco do aprofundamento da crise do emprego – do desemprego
(formal) estrutural provocado pelo progresso técnico pela via compensatória da
absorção de uma mão-de-obra que se acumula num mercado de trabalho em nítida
tendência de precariedade. Em terceiro, essa se traduz em eliminação de
direitos trabalhistas e sociais, reduzindo os custos direto e indireto (dos
encargos sociais) do trabalho. Em quarto, atinge a luta sindical,
enfraquecendo-a como decorrência da própria degradação do mercado de trabalho,
restringindo, portanto, a capacidade de organização e mobilização e,
consequentemente, o poder de pressão do trabalho sobre o capital4.
Verifica-se, assim, que a mesma lógica que desemprega,
reduzindo o “emprego caro”, como resultado da exacerbação da concorrência e do
progresso técnico, procura compensar o desemprego pela absorção do “emprego
barato”, pelas vias antes citadas. Dessa forma, o processo de globalização se
intensifica, pois setores produtivos intensivos em mão-de-obra se
internacionalizam. Empresas e grandes companhias buscam (imigram) mercados de
trabalho abundantes, desregulados e precários (com baixos salários e informais)
em países cujos estados foram “enxugados” em termos de regulação e controle,
mas ampliados, expandidos no que diz respeito a políticas generosas de
concessão de benéficos fiscais a empresas, de infraestrutura e vantagens de toda
ordem visando atrair capitais. Com isso, também investimentos diretos
estrangeiros se concentram em fusões e aquisições (principalmente beneficiadas
com privatizações de estatais a preços muito abaixo do praticado pelo mercado)
que chegam até a promover aumentos do PIB com redução de empregos, como ocorreu
no Brasil logo após a abertura econômica e a desregulamentação realizadas pelo
governo Collor de Mello.
Portanto, na trama que envolve a globalização, a
exacerbação das finanças em escala mundial, a relativa autonomia dos
Estados-Nações e a manutenção dos direitos, serviços e benefícios sociais, o
mercado de trabalho assume grande relevância. Em efeito, a busca pela conquista
de mercados globais em razão da concorrência intercapitalista exige a eliminação
de regulamentos e direitos com vistas a baratear a força de trabalho e
conferir-lhe máxima mobilidade, mas circunscrito aos âmbitos nacionais. Esse
controle, impondo obstáculos à migração internacional de trabalhadores, mantém
excedentes de mão de obra “nacionais” (outrora denominados exércitos de
reserva) nas economias periféricas para atender às necessidades de expansão e
acumulação de riqueza e capital dos países centrais. Isso se dá por meio das
vantagens usufruídas pelas empresas transnacionais que se instalam nestes
países com a redução de seus custos com folha de pagamentos e o envio de lucros
para esses países. Por outro lado, em virtude do Estado Nacional se constituir
uma instância normativa e organizacional, ele assume papel central na regulação
das relações de classe e, por meio da prerrogativa do seu poder de monopólio da
violência, garante um mínimo de ordem e coesão social5, necessário para o
referido processo de expansão capitalista.
Vale agora uma breve digressão sobre as medidas
adotadas pelo governo atual dos Estados Unidos no que concerne à extradição de
imigrantes ilegais. Ora, todos aqueles que vivem nas Américas, se não são
descendentes dos povos originários, são imigrantes ou descendentes de
imigrantes. Certamente, o chamado “descobrimento” das Américas representou uma
primeira grande globalização, intercontinental, da fase mercantilista, cujas nações
invasoras detinham o poder da força militar e tecnológica que os permitiram se
apropriarem do Continente, submeter e dizimar seus povos e extrair e explorar
suas riquezas.
Desta primeira grande globalização à atual, chega a ser
um contrassenso assistir descendentes de imigrantes (como o próprio presidente
Donald Trump) expulsando imigrantes para seus países de origem, da América.
Agora sob a alegação de que a recente imigração é prejudicial, Trump relega o
fato de que os EUA, notadamente sua economia, tenham sido edificados pelos
imigrantes. Ignora a importância que a mão de obra imigrante em processo de
expulsão exerce para sua economia, ao se submeter a empregos precários,
informais, sem proteção social e de baixos salários. Desconhece que os americanos
recusam tais empregos, pelas condições acima, e porque estes estão
circunscritos em atividades consideradas “não dignas”, da base da pirâmide
ocupacional, geralmente manuais e de baixa qualificação, como babás (baby sitter) e trabalhos domésticos,
cuidadores de pessoas idosas, limpeza, restaurantes (cozinhas e garçons, p.
ex.), atividades extrativas (nas lavouras), construção civil (pedreiros,
eletricistas, marceneiros etc.) e outras mais, muitas insalubres.
Na verdade, por outro lado, pratica imigração seletiva,
“roubando” cérebros – a maioria jovens egressos das universidades públicas dos
seus países de origem, que arcaram com o “custo” de sua formação –, como sempre
fizeram e fazem os países desenvolvidos. Pessoas com diploma acadêmico
(graduados, mestres e doutores) especialmente jovens (de preferência
recém-casados), eles querem, facilitam a imigração e até oferecem incentivos e
vantagens. Aliás, com isso enfrentam o problema demográfico (inversão da
pirâmide etária, com o processo de envelhecimento da população) que afeta a
escassez de força de trabalho, jovem e saudável, em diferentes profissões e
campos da produção de bens e serviços. A atração deste segmento populacional
apresenta ainda a vantagem dos jovens imigrantes constituírem famílias cujos filhos,
nascidos nos países de destino, já serem naturalmente seus cidadãos, ou seja,
não imigrantes, além do fato deles e de seus pais demandarem pouco os serviços
de saúde, de pensões, aposentadorias, assistência social e outros, não
pressionando, assim, seus custos.
Essa “dependência” dos países ricos em relação à
imigração lhes confere, na atual configuração internacional, algumas
estratégias e medidas. Isso ocorre porque a grande maioria, se não quase todos,
toma precauções para impedir a entrada em massa de estrangeiros. Muros são
construídos em todos os lugares, até mesmo dentro dos países, principalmente
para separar os ricos dos pobres. No entanto, é importante destacar que todos
os chamados países do primeiro mundo carecem, em graus variados, de trabalhadores.
Por sua vez, são as nações pobres que as necessitam para escaparem do
subdesenvolvimento e reduzirem as desigualdades sociais, mas que estão perdendo
jovens saudáveis e “cérebros” para as nações ricas. Elas são penalizadas
especialmente em relação aos altos investimentos em educação, porque muito se
gastou para formá-los, para dar-lhes uma profissão, o que afeta ainda mais os
recursos públicos, muitas vezes insuficientes para atender aos imperativos das
políticas educacionais.
Usando da metáfora, pode-se considerar que as políticas
migratórias dos países desenvolvidos atuam como uma grande peneira, que deixa
passar uma força de trabalho adequada para garantir-lhes altas taxas de
produtividade necessárias para enfrentar a concorrência capitalista e o
crescimento econômico, ao mesmo tempo que retêm e se livram do imigrante
considerado, no sentido acima, não apto ao trabalho, em particular crianças,
pessoas idosas, sem estudos e com problemas de saúde.
Ora, como dito antes, a estratégia adotada para atender
a esses propósitos compreende ainda a seleção de jovens saudáveis e fisicamente
vigorosos, embora não devidamente letrados – viabilizada pela intermediação de
empresas internacionais locadoras de mão de obra temporária – para exercerem
ocupações em atividades braçais, exaustivas e insalubres, citadas
anteriormente. Tais empresas arregimentam estes jovens nos países pobres, os
alocam conforme contratos nos países ricos, sem direitos à proteção trabalhista
e social adequada, nem condição de obterem títulos de cidadãos. Findo os
contratos, muitos sazonais, retornam, já com idades mais avançadas, aos países
de origem, permanecendo ainda nos cadastros de reserva de tais empresas a
espera de novas demandas6. Portanto, o
protecionismo relativo aos grandes interesses de empresas nacionais,
transnacionais e governos encontra-se em consonância com a globalização ao
administrar a mobilidade da mão de obra conforme suas conveniências, expulsando
trabalhadores, retendo outros e até promovendo a imigração seletiva.
Por tudo isso, é importante e necessário esclarecer que
a atitude dos países desenvolvidos referente à questão imigratória se
fundamenta em mais uma bem elaborada fake
news.
Fonte:
Por Fernando J. Pires de Souza, em Outras
Palavras
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