Liszt Vieira: Fake news,
hoje e ontem
Os exemplos mais conhecidos de fake news vêm da
direita: kit gay, mamadeira de piroca, o comunismo ameaça o Brasil etc. O
último e bem sucedido exemplo foi a taxação do Pix, divulgada pelo deputado de
direita Nikolas Ferreira. Mas a esquerda também recebe e repassa ingenuamente
notícias falsas. São exemplos recentes de fake news a
divulgação duas vezes da morte de Pepe Mujica, a informação de que a mãe do
Trump foi imigrante ilegal nos EUA, a foto do serviço de imigração dos EUA
prendendo homem com a inscrição “Latinos for Trump 2024” na camiseta etc.
Qualquer notícia que interesse é aceita e repassada sem espirito
crítico. Notícias falsas têm uma longa história, não são uma invenção do nosso
tempo. A novidade é que hoje todas as notícias se expandem e se tornam instantâneas,
as verdadeiras e as falsas. O maior best seller do mundo,
a Bíblia, está cheia de fake news. Desde as crenças
judaicas no Livro Gênesis (criação de Adão e Eva) até os
milagres cristãos do Novo Testamento, a Bíblia é
um conjunto de lendas que, ao longo da história, tornaram-se dogmas religiosos,
num processo que levou séculos.
Há muitos outros exemplos como a lenda do Cavalo de Troia. Seja real ou
mito, foi um estratagema, real ou literário, usado pelos gregos para enganar os
troianos na Guerra de Troia. Outros lembram Sun Tzu, famoso autor de A
Arte da Guerra, que viveu na China entre 544 a.C. – 496 a.C. As fake
News atravessaram todas as guerras como contrainformação para enganar
o inimigo. Mas o impacto agora é imediato e muito maior em nossa era de
comunicação eletrônica virtual. E, com a Inteligência Artificial, as montagens
imitam a realidade com perfeição.
Muitas pessoas, mal informadas, aceitam qualquer informação que confirme
suas crenças e opiniões, em geral frutos de preconceito ou de uma falsa
apreensão de um fato. Acreditam no que querem acreditar. E retransmitem,
alimentando os algoritmos que irão engordar os lucros fabulosos das big
techs.
A busca da verdade foi o fundamento do pensamento científico difundido
no mundo principalmente a partir do Renascimento e do Iluminismo. O Iluminismo
no século XVIII e XIX derrubou o pensamento mágico e promoveu o que o sociólogo
alemão Max Weber chamou de “desencantamento do mundo” que passaria a ser
explicado pela ciência investigando os fatos da realidade, e não mais pela
religião. O filósofo britânico Bertrand Russell, em sua Mensagem para o
futuro, de 1959, nos aconselhou, no estudo de qualquer assunto, a “buscar
os fatos e o que os fatos revelam”.
Nos últimos anos, porém, a lógica científica começou a ser questionada
por superstições, dogmas e mentiras divulgadas em grande escala para o conjunto
da sociedade, principalmente pelos meios de comunicação eletrônica. Até a
revolução científica nos séculos XVI e XVII, os fatos e as lendas, a verdade e a
mentira, se misturavam. Assim, o fenômeno das fake news não
é novidade na história. O que é novidade é sua multiplicação instantânea na
imprensa e na internet, principalmente para fins comerciais e políticos. Hoje,
uma informação pode ser divulgada instantaneamente para o mundo inteiro.
Um exemplo esclarecedor em tempos de internet é o descrito no
livro Os engenheiros do caos, de Giuliano Da Empoli. A partir de
uma base de dados, uma Coordenação envia centenas de milhões de mensagens
diferentes, dizendo coisas opostas, para públicos diferentes. Esse sistema,
adotado pela empresa Cambridge Analytica, foi usado com sucesso na eleição
do Brexit no Reino Unido em junho de 2016, na eleição de
Donald Trump em novembro de 2016 nos EUA e na de Bolsonaro em novembro de 2018
no Brasil.
A aceitação acrítica das fake news é um problema sério
da contemporaneidade, já que muitas pessoas não estão interessadas em saber se
a informação corresponde ou não à realidade. Elas se aferram a opiniões
baseadas em suas crenças. A crença tem uma conotação religiosa, dogmática, ao
contrário de conclusões ou previsões baseadas em fatos da realidade.
Nossa civilização baseada no iluminismo, na razão, na argumentação, está
sendo agredida e ameaçada pela aceitação crescente das fake news. A
opinião e a crença são irracionais porque dispensam a verificação baseada em
fatos da realidade. A informação falsa é aceita porque corresponde a opiniões e
sentimentos previamente existentes. Ela vem confirmar o que a pessoa acha,
confirma uma opinião que não se preocupa em saber se está ou não ancorada na
realidade. As fake news disparadas em escala industrial pela
extrema direita dirigem-se não à razão, mas à emoção e à crença dos
destinatários.
A civilização construída a partir dos princípios iluministas da razão e
da lógica vive hoje um dilema e um impasse.
O maniqueísmo sempre foi predominante na direita. Mas. infelizmente,
muita gente na esquerda se comporta de forma maniqueísta, considerando que as
pessoas são inteiramente boas ou inteiramente más. Não compreendem e não
trabalham com contradições. Isso ajuda a explicar porque algumas pessoas só
enxergam o aspecto positivo ou negativo de um líder político.
Vou dar um exemplo que, certamente, vai escandalizar aqueles que não
aceitam contradições. Por favor, vocês podem discordar, mas não me matem.
Considero Leonel Brizola um herói nacional pela sua luta contra a
ditadura militar e contra a direita no Brasil. E também pelo seu papel na
defesa da educação pública. Tem seu lugar na história da luta pela democracia
em nosso país. Mas Leonel Brizola era um político muito autoritário. Vejam
abaixo uma atitude dele quando era governador do Rio de Janeiro.
Como vocês sabem, o Defensor Público tem obrigação de defender os
direitos dos desvalidos, dos pobres, que foram violentados em seus direitos
seja por quem for, indivíduos, empresas ou governos. Quando a PM mata alguém na
favela, seja jovem, mulher, criança ou idoso, a família é defendida por um
Defensor Público. Mas o governador Leonel Brizola não gostava disso. Ele
pensava assim: Eu pago a PM e a Defensoria, um não pode brigar com o outro.
Como Defensor Público que fui, e sou, sou testemunha disso. Leonel Brizola
personificava o Estado na pessoa dele.
Ou seja, Leonel Brizola pode ser considerado um herói, mas um herói
autoritário. Ressalvadas as devidas diferenças, lembra um pouco o caso de
Getúlio Vargas. Para alguns, Getúlio Vargas era um estadista que nos legou a
legislação trabalhista e deu início à industrialização no Brasil com a fábrica
de Volta Redonda, negociada com os EUA em troca do apoio do Brasil na 2ª.
Guerra Mundial e contrariando seus generais, como Goes Monteiro e Eurico Dutra,
que queriam apoiar a Alemanha Nazista.
Para outros, Getúlio Vargas era um ditador que encarcerou e torturou
presos políticos que lhe faziam oposição, e suprimiu liberdades individuais e
políticas durante sua ditadura. Getúlio Vargas caiu depois da Guerra em 1945,
retornou eleito em 1951, e pressionado pelos militares, suicidou-se em 1954,
adiando por 10 anos o golpe militar. Uns e outros estão corretos. Getúlio
Vargas foi um grande estadista, pioneiro na industrialização e nos direitos
sociais, mas também um ditador. O desafio da análise política é incorporar
essas duas dimensões.
Mas falar de Getúlio Vargas não traz mais nenhum risco. Como dizia o
deputado Ulisses Guimarães, o tempo é o senhor da verdade. Mas Leonel Brizola
ainda desperta paixões que, no limite, podem contribuir para a violência,
principalmente no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul. Dizer que Brizola foi
um herói, mas também um caudilho autoritário, envolve riscos. Disse isso uma
vez e quase me mataram. Espero que isso não volte a ocorrer.
Narrei acima um fato. Que cada um interprete como quiser. Como disse
antes, muitas pessoas rejeitam os fatos da realidade e só querem ouvir o que
corresponde às suas crenças. Isso é comum na direita, mas também ocorre na
esquerda, infelizmente. Os novos ventos soprados pelo avanço da extrema direita
no Ocidente, com sua mensagem neofascista e sua revolução cultural, acabam
afetando uma parte da população, inclusive alguns segmentos da esquerda.
Resistir é preciso.
Fonte: A Terra é
Redonda
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