A praia selvagem
brasileira que virou 'cemitério' de lixo asiático
Espremida pelo Parque
das Dunas, em Natal (RN), a praia do Segredo chama a atenção por sua beleza selvagem.
Mas, olhando mais
de perto, revela-se outro segredo menos atraente: suas areias se transformaram
em um "cemitério" de lixo asiático.
Em uma caminhada de
poucos minutos pela praia em dezembro, a reportagem da BBC News Brasil
encontrou dezenas de embalagens de produtos fabricados em países como China, Indonésia, Cingapura, Emirados Árabes Unidos, Malásia e Coreia do Sul.
Os itens mais
comuns eram garrafas de bebidas não alcoólicas, produtos de limpeza e
recipientes de óleo de motor.
Quase todas as
embalagens eram de plástico, mas também havia
algumas de lata, como um removedor de tinta.
A maioria dos itens
foi produzida em anos recentes e tinha as embalagens quase intactas.
Ladeada por imensas
dunas, a praia do Segredo fica em uma região central de Natal, mas é menos
frequentada do que outras praias mais urbanizadas da capital potiguar, como a
de Ponta Negra.
Em alguns trechos,
ela lembra uma praia deserta. No entardecer de uma terça-feira, embalagens com
cores vivas se destacavam na praia em meio à areia clara e à vegetação de
restinga.
Não havia apenas
itens asiáticos entre as embalagens — também foram achados produtos fabricados
no Brasil, nos Estados Unidos e em países africanos.
Mas, entre as
embalagens em melhor estado — e que permitiam a identificação de sua origem —,
as de produtos asiáticos eram a maioria, com folga.
Qual a explicação?
Em julho de 2024,
um estudo feito pela empresa de celulose Verocel também detectou uma grande
quantidade de lixo estrangeiro em praias do município de Belmonte, no sul da
Bahia.
Na ocasião, foram
retirados 140 kg de lixo plástico das areias em cinco semanas.
"A análise dos
resíduos revelou uma predominância de garrafas plásticas provenientes da
Ásia", aponta o estudo.
Mas como produtos
fabricados em países do outro lado do mundo foram parar em praias brasileiras?
Para Alexander
Turra, professor do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (USP)
e especialista em poluição marinha, a hipótese mais provável é o descarte de
lixo por navios.
Segundo o Banco
Mundial, o transporte marítimo responde por cerca de 90% do comércio global, e
a Ásia abriga 20 dos 30 portos mais movimentados do mundo.
O tráfego de navios
entre o Brasil e a Ásia é intenso: o Brasil compra muitos produtos
industrializados de países asiáticos e vende uma grande quantidade de
matérias-primas.
"Esses navios
transportam pessoas, e essas pessoas consomem produtos que muitas vezes são
jogados no mar", diz Turra.
"E aí vem tudo
o que estava na embarcação e que foi comprado no porto de origem, que pode ser
em Singapura, Vietnã, China… onde for."
O lixo costuma ser
descartado perto dos portos onde os navios vão atracar e chega às praias levado
por correntes marítimas, diz o pesquisador.
Segundo Turra, o
descarte de lixo por navios estrangeiros afeta grande parte do litoral
brasileiro, mas é mais visível em praias remotas ou que não são limpas com
frequência.
Municípios de
regiões portuárias também são mais vulneráveis — é o caso de Natal, que abriga
um dos principais portos do Nordeste.
Problemas do lixo
no mar
Alexander Turra diz
que o lixo gera uma série de impactos nas praias e na vida marinha.
"Um deles é no
turismo: quem vai querer visitar uma praia cheia de lixo?"
A poluição também
ameaça animais que fiquem presos nas embalagens ou as engulam.
"E com isso
tem a possibilidade de morrerem asfixiados ou de terem uma falsa sensação de
saciedade, definhando ao longo do tempo", diz o pesquisador.
"Sem contar os
prejuízos para a navegação, porque esses produtos danificam motores, hélices e
sistemas de refrigeração."
A degradação do
lixo plástico em partículas
minúsculas (microplástico) também cria riscos à saúde humana, uma vez que
peixes que ingerem essas partículas podem ser consumidos por humanos.
<><> Qual
a solução?
Turra diz que,
desde 1972, resoluções internacionais proíbem o descarte de lixo não orgânico
no mar (já o descarte de lixo orgânico é permitido sob certas condições).
Ainda assim,
segundo ele, muitos navios violam as regras — e por diferentes motivos.
O primeiro, diz o
pesquisador, é que muitas embarcações ainda não separam o lixo orgânico do lixo
plástico, descartando todos os resíduos no mar para evitar o mau cheiro.
O segundo é que,
para recolher o lixo dos navios, os portos cobram uma taxa que varia conforme a
quantidade do material coletado.
Muitos navios optam
por jogar o lixo no mar para economizar no pagamento dessas taxas, segundo o
pesquisador.
A solução, diz
Turra, seria cobrar uma taxa fixa, que não dependesse da quantidade de lixo.
Outra medida seria
fiscalizar e multar navios que não separem o lixo orgânico do não orgânico.
<><> Quais
os órgãos responsáveis?
Contatada pela BBC,
a Associação de Donos de Navios Asiáticos (ASA, na sigla em inglês) disse considerar
"altamente deplorável" o descarte de lixo na costa brasileira e
promover "práticas de navegação ambientalmente responsáveis".
A ASA diz
representar 52% da frota de navios mercantes do mundo.
"Nossos
membros operam suas embarcações estritamente de acordo com os regulamentos
internacionais sobre despejo de resíduos", afirmou a organização.
A ASA disse, no
entanto, que não necessariamente os produtos asiáticos encontrados em praias
brasileiras foram descartados por navios asiáticos, uma vez que embarcações de
todos os continentes podem aportar e se abastecer em portos da Ásia.
"Embora
existam alguns operadores irregulares de navios no mundo, a ASA age para que as
leis e regulamentações prevaleçam", afirmou o órgão.
<><> E
no Brasil?
No Brasil, a missão
de combater a poluição em praias e águas costeiras cabe a diferentes órgãos de
governo.
O órgão responsável
por definir diretrizes sobre taxas e tarifas em portos é a Agência Nacional de
Transportes Aquaviários (Antaq), ao passo que a regulação do setor portuário
está a cargo do Ministério de Portos e Aeroportos.
A Antaq não
respondeu aos questionamentos da BBC. Já o ministério disse que os portos
brasileiros seguem "as melhores práticas globais" sobre gestão do
lixo.
Questionado sobre a
proposta de estabelecimento de uma taxa fixa para o descarte de lixo por
navios, o ministério disse que as normas atuais sobre tarifas seguem
"critérios técnicos e econômicos", mas que mantém "diálogo com
agentes do setor para identificar oportunidades de aprimoramento dentro do
marco regulatório existente".
O Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) é o
órgão federal responsável pela proteção ambiental em praias e zonas costeiras.
O Ibama não
respondeu à BBC se adota medidas contra o descarte de lixo por navios, mas
disse que "a competência para efetuar a limpeza rotineira das praias é
municipal".
"Considerando
que Natal é uma cidade turística e bem estruturada administrativamente, essa
manutenção deve ser realizada com a frequência necessária", afirmou o
órgão.
A BBC News Brasil
então questionou a Secretaria do Meio Ambiente de Natal sobre a frequência com
que a praia do Segredo é limpa e se há outras iniciativas para combater o lixo
estrangeiro em praias do município.
Mas o órgão não respondeu
e sugeriu que as perguntas fossem feitas à Urbana, empresa responsável pela
limpeza pública do município, que também não se pronunciou.
A Marinha, que tem
a atribuição de fiscalizar navios em águas brasileiras, disse que
"fiscaliza nossos mares e rios de forma ininterrupta e, quando toma
conhecimento de infrações ambientais de sua competência, promove a instauração
de processo administrativo ambiental, a fim de punir os infratores".
Segundo a Marinha,
mudanças legais no início dos anos 2000 ampliaram as punições para embarcações
que poluam o mar, "com multas que podem chegar até R$ 50 milhões".
<><> Coordenação
federal
Para a professora
de Direito Marítimo Ingrid Zanella, da Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE), o Ibama e a Marinha têm o dever de coordenar o combate à poluição
marinha, articulando-se com órgãos municipais e estaduais competentes.
"A resposta
deve ser conjunta, cada um dentro de suas atribuições, mas cabe aos órgãos da
União ampliar a fiscalização e a punição aos infratores", diz Zanella.
A professora diz
que a poluição marinha é hoje tratada como prioridade por agências ambientais
globais, mas que o Brasil ainda não dá ao tema a importância devida.
Ela reconhece, no
entanto, que é complexo combater o descarte ilegal na costa brasileira.
"Temos uma
costa enorme e dificuldade em identificar quais são os navios que estão
descartando, mas precisamos buscar novas tecnologias para tentar rastrear esse
lixo", ela diz.
¨ Lixo eletrônico, a nova e perigosa fonte de riqueza
para organizações criminosas internacionais
É possível ver, a
quilômetros de distância, nuvens de fumaça espessas saindo do lixão de
Agbogbloshie.
O ar no vasto
depósito de resíduos a céu aberto, a oeste da capital de Gana, Acra, é altamente
tóxico. Quanto mais perto você chega, mais difícil fica respirar — e sua visão
começa a ficar embaçada.
Ao redor dessa
fumaça, há dezenas de homens esperando tratores descarregarem pilhas de cabos
para atear fogo nelas. Outros sobem em uma montanha de lixo tóxico e derrubam
aparelhos de televisão, computadores e peças de máquinas de lavar, e os
incineram.
Eles estão
extraindo metais valiosos, como cobre e ouro, do lixo elétrico e eletrônico —
conhecido como e-waste (em inglês) —, grande parte do qual chegou a
Gana vindo de países ricos.
"Não estou
bem", diz o jovem trabalhador Abdulla Yakubu, cujos olhos ficam vermelhos
e lacrimejantes enquanto queima cabos e plástico.
"O ar, como
vocês podem ver, está muito poluído, e tenho que
trabalhar aqui todos os dias, então isso definitivamente afeta a nossa saúde."
Abiba Alhassan, mãe
de quatro filhos, trabalha perto do local de incineração separando garrafas
plásticas usadas — e tampouco é poupada da fumaça tóxica.
"Às vezes, é
muito difícil até respirar, meu peito fica pesado e me sinto muito mal",
diz ela.
O lixo eletrônico é
o fluxo de resíduos que mais cresce no mundo, com 62 milhões de toneladas
geradas em 2022, um aumento de 82% em relação a 2010, de acordo com um
relatório da Organização das Nações Unidas (ONU).
É a
"eletronização" das nossas sociedades que está principalmente por
trás do aumento do lixo eletrônico — desde smartphones, computadores e
alarmes inteligentes até automóveis com
dispositivos eletrônicos instalados, cuja demanda está em constante
crescimento.
As remessas anuais
de smartphones, por exemplo, mais do que dobraram desde 2010, atingindo 1,2
bilhão em 2023, de acordo com um relatório da ONU sobre Comércio e
Desenvolvimento deste ano.
<><> Item
apreendido com mais frequência
A ONU diz que
apenas cerca de 15% do lixo eletrônico mundial é reciclado — por isso,
empresas inescrupulosas estão tentando descarregá-lo em outros lugares, muitas
vezes por meio de intermediários que, em seguida, traficam os resíduos para
fora do país.
Esses resíduos são
difíceis de reciclar devido à sua composição complexa, incluindo substâncias
químicas tóxicas, metais, plásticos e elementos que não podem ser facilmente
separados e reciclados.
Mesmo os países
desenvolvidos não possuem infraestruturas adequadas de gerenciamento de lixo
eletrônico.
Investigadores da
ONU afirmam que estão observando um aumento significativo no tráfico de lixo
eletrônico de países desenvolvidos e economias emergentes em rápida ascensão. O
lixo eletrônico é agora o item apreendido com mais frequência, sendo
responsável por um em cada seis de todos os tipos de apreensão de resíduos a
nível mundial, segundo a Organização Mundial de Alfândega.
Autoridades do
porto de Nápoles, na Itália, mostraram ao Serviço Mundial da BBC como os
traficantes declaravam incorretamente e escondiam o lixo eletrônico, que,
segundo eles, representava cerca de 30% de suas apreensões.
Eles mostraram o
escaneamento de um contêiner com destino à África, que transportava um carro.
Mas quando os funcionários do porto abriram o contêiner, havia peças quebradas
de veículos e lixo eletrônico empilhado dentro dele, com óleo vazando de alguns
deles.
"Você não
empacota seus bens pessoais desta forma, grande parte disso é destinada ao
despejo", diz Luigi Garruto, investigador do Escritório Europeu de Combate
à Fraude (Olaf), que colabora com autoridades portuárias em toda a Europa.
<><> Táticas
de tráfico sofisticadas
No Reino Unido, as
autoridades dizem que também estão observando um aumento no tráfico de lixo
eletrônico.
No porto de
Felixstowe, Ben Ryder, porta-voz da Agência Ambiental do Reino Unido, afirmou
que os resíduos eram muitas vezes declarados erroneamente como reutilizáveis —
mas, na realidade, eram "decompostos para a obtenção de metais preciosos
e, na sequência, queimados ilegalmente após chegarem ao destino" em países
como Gana.
Segundo ele, os
traficantes também tentam esconder o lixo eletrônico triturando-o e
misturando-o com outras formas de plástico que podem ser exportadas com a
documentação correta.
Um relatório
anterior da Organização Mundial de Alfândega mostrou que houve um aumento de
quase 700% no tráfico de veículos motorizados fora de uso — uma enorme fonte de
lixo eletrônico.
Mas os
especialistas dizem que tais apreensões e casos registrados são apenas a ponta
do iceberg.
Embora não haja um
estudo global abrangente que rastreie todo o lixo eletrônico traficado para
fora do mundo desenvolvido, o relatório de lixo eletrônico da ONU mostra que
os países do Sudeste
Asiático ainda são um destino importante.
Mas, como alguns
desses países agora estão reprimindo o tráfico de resíduos, investigadores da
ONU e ativistas dizem que mais lixo eletrônico está chegando aos países
africanos.
Na Malásia, as
autoridades apreenderam 106 contêineres de lixo eletrônico perigoso de maio a
junho de 2024, de acordo com Masood Karimipour, representante regional do
Escritório da ONU de Combate às Drogas e ao Crime no Sudeste Asiático e no
Pacífico.
Mas os traficantes
muitas vezes enganam as autoridades com novas táticas de contrabando, e os
governos não conseguem alcançá-los suficientemente rápido, dizem investigadores
da ONU.
"Quando os
navios que transportam resíduos perigosos, como lixo eletrônico, não conseguem
descarregá-los facilmente em seu destino habitual, eles desligam seu farol quando
estão no meio do mar para não serem detectados", conta Karimapour.
"E a remessa
ilegal é despejada no mar como parte de um modelo de negócio de atividade
criminosa organizada."
"Há um número
enorme de grupos e países lucrando com esse empreendimento criminoso a nível
global."
<><> Substâncias
químicas muito preocupantes
Quando o lixo
eletrônico é queimado ou descartado, o plástico e os metais que ele contém
podem ser muito perigosos para a saúde humana e ter efeitos negativos no meio ambiente, afirmou um
relatório recente da Organização Mundial da Saúde (OMS).
A OMS adverte que
em muitos países receptores também há reciclagem informal de lixo eletrônico, o
que significa que pessoas não treinadas, incluindo mulheres e crianças, estão
fazendo o trabalho sem equipamentos de proteção e sem a infraestrutura
adequada, e estão expostas a substâncias tóxicas como o chumbo.
A Organização
Internacional do Trabalho (OIT) e a OMS estimam que milhões de mulheres e
crianças que trabalham no setor informal de reciclagem podem ser afetadas.
As organizações
também alertam que a exposição durante o desenvolvimento fetal e a infância
pode causar distúrbios relacionados ao neurodesenvolvimento e ao neurocomportamento.
A partir de janeiro
de 2025, o tratado global sobre resíduos, a Convenção da Basileia, vai exigir
que os exportadores declarem todo o lixo eletrônico — e obtenham permissão dos
países destinatários. Os investigadores esperam que isso acabe com algumas das
brechas que os traficantes têm usado para transportar esse tipo de resíduo pelo
mundo.
Mas há alguns
países, incluindo os EUA — um grande exportador de lixo eletrônico — que não
ratificaram a Convenção da Basileia —, uma das razões pelas quais ativistas
dizem que o tráfico de lixo eletrônico continua.
"Enquanto
começamos a reprimir, os EUA estão enviando cada vez mais caminhões pela
fronteira com o México", afirma Jim Puckett, diretor executivo da Basel
Action Network, organização que faz campanha para acabar com o comércio de
produtos tóxicos, incluindo o lixo eletrônico.
Enquanto isso, no
lixão de Agbogbloshie, em Gana, a situação está piorando a cada dia.
Abiba diz que gasta
quase metade do dinheiro que ganha com a coleta de resíduos em medicamentos
para lidar com as condições resultantes do trabalho no lixão.
"Mas ainda
estou aqui porque este é o meu meio de sobrevivência e da minha família."
A Autoridade
Tributária e o Ministério do Meio Ambiente de Gana não responderam a vários
pedidos de comentários.
Fonte: BBC News
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