sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

A praia selvagem brasileira que virou 'cemitério' de lixo asiático

Espremida pelo Parque das Dunas, em Natal (RN), a praia do Segredo chama a atenção por sua beleza selvagem.

Mas, olhando mais de perto, revela-se outro segredo menos atraente: suas areias se transformaram em um "cemitério" de lixo asiático.

Em uma caminhada de poucos minutos pela praia em dezembro, a reportagem da BBC News Brasil encontrou dezenas de embalagens de produtos fabricados em países como ChinaIndonésiaCingapuraEmirados Árabes UnidosMalásia e Coreia do Sul.

Os itens mais comuns eram garrafas de bebidas não alcoólicas, produtos de limpeza e recipientes de óleo de motor.

Quase todas as embalagens eram de plástico, mas também havia algumas de lata, como um removedor de tinta.

A maioria dos itens foi produzida em anos recentes e tinha as embalagens quase intactas.

Ladeada por imensas dunas, a praia do Segredo fica em uma região central de Natal, mas é menos frequentada do que outras praias mais urbanizadas da capital potiguar, como a de Ponta Negra.

Em alguns trechos, ela lembra uma praia deserta. No entardecer de uma terça-feira, embalagens com cores vivas se destacavam na praia em meio à areia clara e à vegetação de restinga.

Não havia apenas itens asiáticos entre as embalagens — também foram achados produtos fabricados no Brasil, nos Estados Unidos e em países africanos.

Mas, entre as embalagens em melhor estado — e que permitiam a identificação de sua origem —, as de produtos asiáticos eram a maioria, com folga.

Qual a explicação?

Em julho de 2024, um estudo feito pela empresa de celulose Verocel também detectou uma grande quantidade de lixo estrangeiro em praias do município de Belmonte, no sul da Bahia.

Na ocasião, foram retirados 140 kg de lixo plástico das areias em cinco semanas.

"A análise dos resíduos revelou uma predominância de garrafas plásticas provenientes da Ásia", aponta o estudo.

Mas como produtos fabricados em países do outro lado do mundo foram parar em praias brasileiras?

Para Alexander Turra, professor do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em poluição marinha, a hipótese mais provável é o descarte de lixo por navios.

Segundo o Banco Mundial, o transporte marítimo responde por cerca de 90% do comércio global, e a Ásia abriga 20 dos 30 portos mais movimentados do mundo.

O tráfego de navios entre o Brasil e a Ásia é intenso: o Brasil compra muitos produtos industrializados de países asiáticos e vende uma grande quantidade de matérias-primas.

"Esses navios transportam pessoas, e essas pessoas consomem produtos que muitas vezes são jogados no mar", diz Turra.

"E aí vem tudo o que estava na embarcação e que foi comprado no porto de origem, que pode ser em Singapura, Vietnã, China… onde for."

O lixo costuma ser descartado perto dos portos onde os navios vão atracar e chega às praias levado por correntes marítimas, diz o pesquisador.

Segundo Turra, o descarte de lixo por navios estrangeiros afeta grande parte do litoral brasileiro, mas é mais visível em praias remotas ou que não são limpas com frequência.

Municípios de regiões portuárias também são mais vulneráveis — é o caso de Natal, que abriga um dos principais portos do Nordeste.

Problemas do lixo no mar

Alexander Turra diz que o lixo gera uma série de impactos nas praias e na vida marinha.

"Um deles é no turismo: quem vai querer visitar uma praia cheia de lixo?"

A poluição também ameaça animais que fiquem presos nas embalagens ou as engulam.

"E com isso tem a possibilidade de morrerem asfixiados ou de terem uma falsa sensação de saciedade, definhando ao longo do tempo", diz o pesquisador.

"Sem contar os prejuízos para a navegação, porque esses produtos danificam motores, hélices e sistemas de refrigeração."

A degradação do lixo plástico em partículas minúsculas (microplástico) também cria riscos à saúde humana, uma vez que peixes que ingerem essas partículas podem ser consumidos por humanos.

<><> Qual a solução?

Turra diz que, desde 1972, resoluções internacionais proíbem o descarte de lixo não orgânico no mar (já o descarte de lixo orgânico é permitido sob certas condições).

Ainda assim, segundo ele, muitos navios violam as regras — e por diferentes motivos.

O primeiro, diz o pesquisador, é que muitas embarcações ainda não separam o lixo orgânico do lixo plástico, descartando todos os resíduos no mar para evitar o mau cheiro.

O segundo é que, para recolher o lixo dos navios, os portos cobram uma taxa que varia conforme a quantidade do material coletado.

Muitos navios optam por jogar o lixo no mar para economizar no pagamento dessas taxas, segundo o pesquisador.

A solução, diz Turra, seria cobrar uma taxa fixa, que não dependesse da quantidade de lixo.

Outra medida seria fiscalizar e multar navios que não separem o lixo orgânico do não orgânico.

<><> Quais os órgãos responsáveis?

Contatada pela BBC, a Associação de Donos de Navios Asiáticos (ASA, na sigla em inglês) disse considerar "altamente deplorável" o descarte de lixo na costa brasileira e promover "práticas de navegação ambientalmente responsáveis".

A ASA diz representar 52% da frota de navios mercantes do mundo.

"Nossos membros operam suas embarcações estritamente de acordo com os regulamentos internacionais sobre despejo de resíduos", afirmou a organização.

A ASA disse, no entanto, que não necessariamente os produtos asiáticos encontrados em praias brasileiras foram descartados por navios asiáticos, uma vez que embarcações de todos os continentes podem aportar e se abastecer em portos da Ásia.

"Embora existam alguns operadores irregulares de navios no mundo, a ASA age para que as leis e regulamentações prevaleçam", afirmou o órgão.

<><> E no Brasil?

No Brasil, a missão de combater a poluição em praias e águas costeiras cabe a diferentes órgãos de governo.

O órgão responsável por definir diretrizes sobre taxas e tarifas em portos é a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), ao passo que a regulação do setor portuário está a cargo do Ministério de Portos e Aeroportos.

A Antaq não respondeu aos questionamentos da BBC. Já o ministério disse que os portos brasileiros seguem "as melhores práticas globais" sobre gestão do lixo.

Questionado sobre a proposta de estabelecimento de uma taxa fixa para o descarte de lixo por navios, o ministério disse que as normas atuais sobre tarifas seguem "critérios técnicos e econômicos", mas que mantém "diálogo com agentes do setor para identificar oportunidades de aprimoramento dentro do marco regulatório existente".

O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) é o órgão federal responsável pela proteção ambiental em praias e zonas costeiras.

O Ibama não respondeu à BBC se adota medidas contra o descarte de lixo por navios, mas disse que "a competência para efetuar a limpeza rotineira das praias é municipal".

"Considerando que Natal é uma cidade turística e bem estruturada administrativamente, essa manutenção deve ser realizada com a frequência necessária", afirmou o órgão.

A BBC News Brasil então questionou a Secretaria do Meio Ambiente de Natal sobre a frequência com que a praia do Segredo é limpa e se há outras iniciativas para combater o lixo estrangeiro em praias do município.

Mas o órgão não respondeu e sugeriu que as perguntas fossem feitas à Urbana, empresa responsável pela limpeza pública do município, que também não se pronunciou.

A Marinha, que tem a atribuição de fiscalizar navios em águas brasileiras, disse que "fiscaliza nossos mares e rios de forma ininterrupta e, quando toma conhecimento de infrações ambientais de sua competência, promove a instauração de processo administrativo ambiental, a fim de punir os infratores".

Segundo a Marinha, mudanças legais no início dos anos 2000 ampliaram as punições para embarcações que poluam o mar, "com multas que podem chegar até R$ 50 milhões".

<><> Coordenação federal

Para a professora de Direito Marítimo Ingrid Zanella, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o Ibama e a Marinha têm o dever de coordenar o combate à poluição marinha, articulando-se com órgãos municipais e estaduais competentes.

"A resposta deve ser conjunta, cada um dentro de suas atribuições, mas cabe aos órgãos da União ampliar a fiscalização e a punição aos infratores", diz Zanella.

A professora diz que a poluição marinha é hoje tratada como prioridade por agências ambientais globais, mas que o Brasil ainda não dá ao tema a importância devida.

Ela reconhece, no entanto, que é complexo combater o descarte ilegal na costa brasileira.

"Temos uma costa enorme e dificuldade em identificar quais são os navios que estão descartando, mas precisamos buscar novas tecnologias para tentar rastrear esse lixo", ela diz.

¨      Lixo eletrônico, a nova e perigosa fonte de riqueza para organizações criminosas internacionais

É possível ver, a quilômetros de distância, nuvens de fumaça espessas saindo do lixão de Agbogbloshie.

O ar no vasto depósito de resíduos a céu aberto, a oeste da capital de Gana, Acra, é altamente tóxico. Quanto mais perto você chega, mais difícil fica respirar — e sua visão começa a ficar embaçada.

Ao redor dessa fumaça, há dezenas de homens esperando tratores descarregarem pilhas de cabos para atear fogo nelas. Outros sobem em uma montanha de lixo tóxico e derrubam aparelhos de televisão, computadores e peças de máquinas de lavar, e os incineram.

Eles estão extraindo metais valiosos, como cobre e ouro, do lixo elétrico e eletrônico — conhecido como e-waste (em inglês) —, grande parte do qual chegou a Gana vindo de países ricos.

"Não estou bem", diz o jovem trabalhador Abdulla Yakubu, cujos olhos ficam vermelhos e lacrimejantes enquanto queima cabos e plástico.

"O ar, como vocês podem ver, está muito poluído, e tenho que trabalhar aqui todos os dias, então isso definitivamente afeta a nossa saúde."

Abiba Alhassan, mãe de quatro filhos, trabalha perto do local de incineração separando garrafas plásticas usadas — e tampouco é poupada da fumaça tóxica.

"Às vezes, é muito difícil até respirar, meu peito fica pesado e me sinto muito mal", diz ela.

O lixo eletrônico é o fluxo de resíduos que mais cresce no mundo, com 62 milhões de toneladas geradas em 2022, um aumento de 82% em relação a 2010, de acordo com um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU).

É a "eletronização" das nossas sociedades que está principalmente por trás do aumento do lixo eletrônico — desde smartphones, computadores e alarmes inteligentes até automóveis com dispositivos eletrônicos instalados, cuja demanda está em constante crescimento.

As remessas anuais de smartphones, por exemplo, mais do que dobraram desde 2010, atingindo 1,2 bilhão em 2023, de acordo com um relatório da ONU sobre Comércio e Desenvolvimento deste ano.

<><> Item apreendido com mais frequência

A ONU diz que apenas cerca de 15% do lixo eletrônico mundial é reciclado — por isso, empresas inescrupulosas estão tentando descarregá-lo em outros lugares, muitas vezes por meio de intermediários que, em seguida, traficam os resíduos para fora do país.

Esses resíduos são difíceis de reciclar devido à sua composição complexa, incluindo substâncias químicas tóxicas, metais, plásticos e elementos que não podem ser facilmente separados e reciclados.

Mesmo os países desenvolvidos não possuem infraestruturas adequadas de gerenciamento de lixo eletrônico.

Investigadores da ONU afirmam que estão observando um aumento significativo no tráfico de lixo eletrônico de países desenvolvidos e economias emergentes em rápida ascensão. O lixo eletrônico é agora o item apreendido com mais frequência, sendo responsável por um em cada seis de todos os tipos de apreensão de resíduos a nível mundial, segundo a Organização Mundial de Alfândega.

Autoridades do porto de Nápoles, na Itália, mostraram ao Serviço Mundial da BBC como os traficantes declaravam incorretamente e escondiam o lixo eletrônico, que, segundo eles, representava cerca de 30% de suas apreensões.

Eles mostraram o escaneamento de um contêiner com destino à África, que transportava um carro. Mas quando os funcionários do porto abriram o contêiner, havia peças quebradas de veículos e lixo eletrônico empilhado dentro dele, com óleo vazando de alguns deles.

"Você não empacota seus bens pessoais desta forma, grande parte disso é destinada ao despejo", diz Luigi Garruto, investigador do Escritório Europeu de Combate à Fraude (Olaf), que colabora com autoridades portuárias em toda a Europa.

<><> Táticas de tráfico sofisticadas

No Reino Unido, as autoridades dizem que também estão observando um aumento no tráfico de lixo eletrônico.

No porto de Felixstowe, Ben Ryder, porta-voz da Agência Ambiental do Reino Unido, afirmou que os resíduos eram muitas vezes declarados erroneamente como reutilizáveis — mas, na realidade, eram "decompostos para a obtenção de metais preciosos e, na sequência, queimados ilegalmente após chegarem ao destino" em países como Gana.

Segundo ele, os traficantes também tentam esconder o lixo eletrônico triturando-o e misturando-o com outras formas de plástico que podem ser exportadas com a documentação correta.

Um relatório anterior da Organização Mundial de Alfândega mostrou que houve um aumento de quase 700% no tráfico de veículos motorizados fora de uso — uma enorme fonte de lixo eletrônico.

Mas os especialistas dizem que tais apreensões e casos registrados são apenas a ponta do iceberg.

Embora não haja um estudo global abrangente que rastreie todo o lixo eletrônico traficado para fora do mundo desenvolvido, o relatório de lixo eletrônico da ONU mostra que os países do Sudeste Asiático ainda são um destino importante.

Mas, como alguns desses países agora estão reprimindo o tráfico de resíduos, investigadores da ONU e ativistas dizem que mais lixo eletrônico está chegando aos países africanos.

Na Malásia, as autoridades apreenderam 106 contêineres de lixo eletrônico perigoso de maio a junho de 2024, de acordo com Masood Karimipour, representante regional do Escritório da ONU de Combate às Drogas e ao Crime no Sudeste Asiático e no Pacífico.

Mas os traficantes muitas vezes enganam as autoridades com novas táticas de contrabando, e os governos não conseguem alcançá-los suficientemente rápido, dizem investigadores da ONU.

"Quando os navios que transportam resíduos perigosos, como lixo eletrônico, não conseguem descarregá-los facilmente em seu destino habitual, eles desligam seu farol quando estão no meio do mar para não serem detectados", conta Karimapour.

"E a remessa ilegal é despejada no mar como parte de um modelo de negócio de atividade criminosa organizada."

"Há um número enorme de grupos e países lucrando com esse empreendimento criminoso a nível global."

<><> Substâncias químicas muito preocupantes

Quando o lixo eletrônico é queimado ou descartado, o plástico e os metais que ele contém podem ser muito perigosos para a saúde humana e ter efeitos negativos no meio ambiente, afirmou um relatório recente da Organização Mundial da Saúde (OMS).

A OMS adverte que em muitos países receptores também há reciclagem informal de lixo eletrônico, o que significa que pessoas não treinadas, incluindo mulheres e crianças, estão fazendo o trabalho sem equipamentos de proteção e sem a infraestrutura adequada, e estão expostas a substâncias tóxicas como o chumbo.

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a OMS estimam que milhões de mulheres e crianças que trabalham no setor informal de reciclagem podem ser afetadas.

As organizações também alertam que a exposição durante o desenvolvimento fetal e a infância pode causar distúrbios relacionados ao neurodesenvolvimento e ao neurocomportamento.

A partir de janeiro de 2025, o tratado global sobre resíduos, a Convenção da Basileia, vai exigir que os exportadores declarem todo o lixo eletrônico — e obtenham permissão dos países destinatários. Os investigadores esperam que isso acabe com algumas das brechas que os traficantes têm usado para transportar esse tipo de resíduo pelo mundo.

Mas há alguns países, incluindo os EUA — um grande exportador de lixo eletrônico — que não ratificaram a Convenção da Basileia —, uma das razões pelas quais ativistas dizem que o tráfico de lixo eletrônico continua.

"Enquanto começamos a reprimir, os EUA estão enviando cada vez mais caminhões pela fronteira com o México", afirma Jim Puckett, diretor executivo da Basel Action Network, organização que faz campanha para acabar com o comércio de produtos tóxicos, incluindo o lixo eletrônico.

Enquanto isso, no lixão de Agbogbloshie, em Gana, a situação está piorando a cada dia.

Abiba diz que gasta quase metade do dinheiro que ganha com a coleta de resíduos em medicamentos para lidar com as condições resultantes do trabalho no lixão.

"Mas ainda estou aqui porque este é o meu meio de sobrevivência e da minha família."

A Autoridade Tributária e o Ministério do Meio Ambiente de Gana não responderam a vários pedidos de comentários.

 

Fonte: BBC News

 

 

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