Alienação dos golpistas fardados
No ano de 2022 e no
início de 2023, figuras proeminentes do governo Jair Bolsonaro, saudosistas de
1964, lideraram diversas articulações com um segmento das Forças Armadas para
tumultuar a transição de poder ao candidato eleito, Luiz Inácio Lula da Silva,
com o objetivo de impedi-lo de exercer o cargo desde o início do mandato.
De acordo com o
relatório elaborado pela Polícia Federal, o chamado Gabinete Institucional de
Gestão da Crise, comandado pelos generais Heleno e Braga Netto, assumiria
imediatamente a direção do país e definiria as diretrizes do governo. A
suposição predominante era de que, em data posterior, o poder seria devolvido
ao então presidente. O planejamento incluía a prisão de integrantes do Poder
Judiciário, o fechamento do Congresso Nacional e o assassinato de Lula, Alckmin
e Alexandre de Moraes.
Felizmente, essa
tentativa de golpe de Estado não alcançou o sucesso almejado pelos sediciosos.
Segundo o mencionado relatório, o fracasso ocorreu devido a falta de apoio por
parte dos comandantes do Exército, da Aeronáutica e do Alto Comando do
Exército. Apenas o comandante da Marinha se mostrou disposto a colocar seus
subordinados para atuarem a favor da insurgência. Mencione-se a figura do então
comandante da Aeronáutica o qual asseverou que o ensaio golpista possivelmente
teria se consumado se o comandante do Exército tivesse oferecido o esteio
almejado.
Para obter maior
clareza sobre tal evento, é preciso recorrer à Ciência Política,
particularmente em relação aos seus saberes pertinentes às modalidades dos
golpes. Encontra-se nela exposta a existência de dois tipos. O primeiro,
denominado de golpe moderno, refere-se à destituição ilegal de um governante
pelos fardados, a qual se caracteriza pela retirada expedita dele do poder e a
colocação de militares para o exercício da gestão do Estado, de forma
ditatorial e com permanência por vários anos. O segundo, chamado golpe
pós-moderno, ocorre de salientes pressões exercidas pelos militares para forçar
a renúncia do governante visado. Seu lugar não é ocupado por militares e sim
por outros políticos civis que seguem dirigindo seus países de acordo com as
normas democráticas. Pelas características expostas, parece que a intenção dos
insurgentes se voltava para a aplicação de um golpe de Estado moderno.
Com base nos
registros históricos, verifica-se que, em nosso país, todos os golpes aplicados
anteriormente se enquadram no modelo moderno, e o atual não fugiria à regra,
mantendo essa tradição. Essas inadmissíveis e condenáveis formas de intervenção
na política alternaram-se várias vezes com outra igualmente intolerável e
execrável: o emprego do chamado poder moderador, considerado superior aos
poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, com o objetivo de exercer um papel
de mediação e equilíbrio entre eles. Além disso, revezaram-se com um terceiro
mecanismo, também inaceitável e reprovável, que pode ser denominado conduta
rebelde, ou seja, a resistência ao poder estabelecido ou a contestação de uma
autoridade legítima, como ocorreu na Revolta de Jacareacanga e na Revolta de
Aragarças, ambas durante o governo de Juscelino Kubitschek.
A tentativa de
barrar o andamento do governo Lula revelou duas peculiaridades marcantes. A
primeira foi a incompetência dos golpistas, evidenciada por uma série de
falhas: o fracasso do atentado a bomba no aeroporto de Brasília, a divulgação
de cenas do vandalismo ocorrido na Praça dos Três Poderes nas redes sociais, a
descoberta da minuta do golpe na casa de Anderson Torres, a tentativa de
comprometer o juiz Alexandre de Moraes por meio de um senador, a contratação de
um hacker para tentar um fragante, as inúmeras trocas de mensagens entre os
envolvidos, que ficaram registradas em celulares e computadores, as diversas
reuniões com dezenas de participantes gravadas por câmeras e sistemas de áudio
e, sobretudo, a incapacidade de conquistar o apoio da cúpula das Forças
Armadas.
Tais ações
explicitam a outra peculiaridade, qual seja, a doidivana, ignóbil e impudica
desenvoltura das condutas manifestadas por eles, com o firme apoio de um
elevado conjunto de insurgentes que permaneceu acampado na frente dos
quartéis. Eles
se autodenominavam patriotas em razão de, ferrenhamente, se
conceberem como salvadores do país, particularmente pela reversão da suposta
fraude eleitoral e com o emprego de qualquer tipo de ação. Adotaram um senso de
urgência catastrofista pois imaginavam a proximidade do fim e da destruição do
Brasil pela implantação do comunismo, realizaram apelos a seres extraterrestres
e fizeram súplicas a entidades transcendentes. Desenvolveram um afeto de
esperança messiânica sustentado na intervenção militar e assumiram a postura de
tomar a história pelas próprias mãos. Aparenta ser razoável pensar então que
agiram como voluntaristas insensatos ou pessoas crentes de que a vontade
humana, isto é, a faculdade de querer, de escolher, de praticar livremente
certos atos é muito mais relevante do que a razão, de que é possível adotar
convicções e atitudes proposicionais de acordo com essa força interior
impulsionadora e de que é viável tomar decisões e agir em função dela mesmo
diante de dificuldades e desafios.
É bem possível que
a desinibição e a agilidade desses golpistas, especialmente os fardados, tenham
a ver com acontecimentos do passado. Com efeito, os sediciosos uniformizados de
épocas anteriores nunca receberam qualquer tipo de punição. Aqueles que
exerceram o poder moderador foram recompensados pelo sucesso de suas ações. E
os revoltosos, bem como outros instauradores do regime ditatorial que durou
mais de vinte anos, receberam a láurea da anistia. Ademais, em diversas
ingerências na política, receberam o apoio de segmentos privilegiados da
sociedade, inclusive de governantes e parlamentares. Pode-se supor, ainda, que
possuíam uma dose elevada de confiança e nutriam ardorosamente o sonho do êxito
da insurreição.
Outrossim, é
preciso acrescentar que o perfil dos insurgentes contribuiu muito para o
andamento das ações porquanto eram amotinados de extrema direita. Assim sendo,
nele se encontram diversos e peculiares traços de personalidade, tais como a
busca de certezas em questões sociais e políticas; o apego aos valores
tradicionais ladeado pela resistência a mudanças e a preferência por soluções
simplórias para problemas complexos. Junto a esses atributos acompanha uma
postura em relação à democracia caracterizada pela oscilação e ambiguidade,
haja vista que em determinadas condições podem valorizá-la superficialmente
para alcançar seus objetivos políticos e noutras podem rejeitar seus princípios
caso entrem em conflito com suas concepções ideológicas. A enaltecem na forma
que consideram conveniente, além de direcionarem críticas às instituições que
dela fazem parte, particularmente os tribunais e a imprensa, quando não se
alinham com suas agendas.
A ojeriza às
incertezas, a adesão ao consagrado, a contraposição às metamorfoses e a
simpatia pela simplicidade são condutas próprias de pessoas retrógradas e,
portanto, sujeitas ao adentramento num estado de alienação. Observe-se que este
estado precisa ser devidamente explicitado para poder relacioná-lo aos
golpistas. Segundo a Etimologia, a “alienação” tem origem no
latim alienare cujo sentido é de tornar alguém alheio a alguém. Algumas
menções que se seguem, auxiliam bastante na melhora do entendimento.
Nos escritos de
Platão encontra-se a alegoria da caverna, usada por ele para mostrar a
existência de um mundo ilusório, das pessoas que vivem no interior de uma
caverna iluminada por luz de fogueira, as quais conduzem sua existência
apoiadas nos saberes do senso comum. A existência de um mundo verdadeiro,
daqueles que vivem fora dela iluminados pela luz solar, orientadas por
conhecimentos mais genuínos tais como o filosófico e o científico. Na Psicologia
significa um estado de apartação do indivíduo de si mesmo, de outros ou da
sociedade. No pensamento marxista diz respeito à desunião que os trabalhadores
sentem em relação ao processo de trabalho, ao produto de seu trabalho e de sua
própria essência por causa do sistema capitalista. Na Sociologia é entendida
como a sensação de isolamento ou falta de pertencimento a um grupo ou
comunidade. Embora sejam exemplos singulares e divergentes, todos se aproximam
em uma característica marcante, qual seja, uma desconexão que emerge em certos
momentos no transcorrer do tempo. Desta forma, pode ser dito que uma
pessoa alienada é alguém que traz dentro de si uma afincada predisposição ao
estranhamento, ao distanciamento de si, de outrem, de situações e de coisas.
Os golpistas
fardados podem ser vistos como sujeitos que no cotidiano usam predominantemente
os limitados saberes empíricos, se apoiam nas noções vulgares, valorizam os
parcos juízos partilhados nos grupos que integram, consomem notícias falsas,
acolhem a desinformação, bem como inclinam-se para o lado da pós-verdade a qual
minimiza o flanco objetivo da veridicidade e maximiza sua banda subjetiva com
vistas a enunciá-la e a modelá-la de acordo com os seus interesses,
pensamentos, desejos e intenções. Assim sendo, é possível dizer que eles são
pessoas desconectadas e divorciadas dos conhecimentos considerados verídicos
sobre diversos aspectos da realidade social em movimento, impedidores do
surgimento de compreensões distorcidas, e que a ignorância alusiva a eles
colaborou sobremaneira para os atos que externalizaram. Porém, se os retinham
não concederam a eles a relevância merecida. Destarte, é possível encará-los
então como indivíduos fortemente inclinados para o lado da alienação devido,
provavelmente, carecerem ou deixarem de lado concepções atualizadas e
fidedignas sobre as Forças Armadas, a democracia e o cenário internacional.
Em relação às
Forças Armadas cabe dizer inicialmente que desde a década de oitenta do século
passado, quando seus integrantes cederam às fortes pressões e encerraram o
período ditatorial, até os dias que correm, sofreram um continuado processo de
renovação, porque diversas gerações de pessoas adentraram em suas fileiras e os
remanescentes da ditadura se encaminharam para a reserva. Consequentemente,
novos modos de pensar, sentir e agir certamente emergiram e avançaram,
particularmente na esfera política. É válido supor que os benfazejos influxos
da democracia que se espargiram pelo país tenham atingido os fardados,
contribuindo para o afastamento de concepções execráveis e incompatíveis ao
regime democrático, tais como os atos revoltosos, o uso do poder moderador e a
aplicação de golpes de Estado. A favor dessa suposição tem-se as sucessivas
décadas de comportamento militar voltado para as tarefas previstas em lei, a
qual começou a ser minada com a assunção
de Bolsonaro ao cargo presidencial. É válido recordar que nesse lapso
enfrentaram constrangimentos decorrentes da diminuição do prestígio social, da
submissão a chefias civis no Ministério da Defesa, da atuação da Comissão
Nacional da Verdade e da convivência com governantes petistas, que devem ter
provocado sensações expiatórias influenciadoras de suas condutas.
Houve o
ressuscitamento do falecido anticomunismo, encarado como algo semelhante a um
arquétipo do inconsciente coletivo, mas ele não afetou os colegas da caserna
conforme o desejado porque não possuía mais o poder mobilizador. O general
Heleno, que gostava de utilizá-la disse nas redes sociais que os bolsonaristas
estavam tentando evitar a volta do comunismo. A vitória de Petro na Colômbia
levou o deputado Eduardo Bolsonaro alertar os eleitores brasileiros sob a
expansão dos países cobertos com os símbolos da foice e do martelo. Em seguida,
a deputada Zambelli mencionou o alerta de Eduardo para reforçar a lembrança.
Na campanha
eleitoral, Jair Bolsonaro discursou várias vezes contra a presença e o avanço
do comunismo. Sem dúvida, o uso dessas falas estava fadado a não mostrar
eficiência alguma, porque a ameaça comunista foi uma ocorrência do passado
inserida no contexto da Guerra Fria, que se encerrou na década de noventa e
provocou a derrocada da União Soviética. Na atualidade, apenas alguns países
pouco expressivos tentam seguir a cartilha comunista tais como Vietnã, Cuba e
Coreia do Norte. A China possui o partido comunista, mas adota uma economia de
mercado. Ademais, sabe-se que nunca existiu um país genuinamente comunista,
isto é, fiel à doutrina elaborada por Marx e Lênin. O que realmente acontece, é
que nos dias atuais vicejam movimentos progressistas defensores da justiça
econômica, da equidade racial e da sustentabilidade ambiental; emergem
manifestações favoráveis à economia solidária, que prioriza a cooperação e a
autogestão; aparecem críticas aos excessos do capitalismo, especialmente a
desigualdade crescente e a exploração do trabalho; partidos que se identificam
como socialistas democráticos defendem a combinação de uma economia de mercado
com políticas sociais robustas garantidoras da concretização de direitos.
Os uniformizados e
os vanguardistas paisanos da insurreição, ambos certamente alienados, também
devem ignorar ou não se importar com o poderoso e irrefreável processo de
civilinização que acomete as Forças Armadas há muito tempo, o qual provoca a
instauração de concepções civis e faz a aproximação entre os militares e
civis. Esse acometimento apesar de estar trazendo contribuições positivas
tem provocado outras interferências. Uma delas se refere à terceirização, que
se encontra em estágio bastante avançado, pois as atividades em hospitais,
ranchos, limpezas e reparação de equipamentos, dentre outras, estão sendo
realizadas por empresas externas. Embora, tenha a capacidade de liberar os
aquartelados para se dedicarem a funções essenciais e favorecer a obtenção de
maior eficiência em operações, ela pode dificultar a integração entre os
militares e os trabalhadores contratados e tornar possível a ocorrência de uma
afetação no espírito de corpo.
Considerando que os
contratados não possuem os mesmos níveis de treinamento e disciplina que os
funcionários de uniforme podem emergir diferenças perceptíveis como divisões
dentro da tropa. Por sua vez, a intelecção de que certas incumbências
consideradas como relevantes estão sendo terceirizadas, tem a possibilidade de
engendrar o sentimento de que certas capacidades caminham rumo à desvalorização
e o entendimento de que se encontra manifestando uma falta de confiança em
determinadas habilidades, ambos confrangedores do moral da tropa. Infere-se,
portanto, que a terceirização tem o potencial de fragilizar a prontidão e a
coesão nas fileiras que são imprescindíveis no momento da sua mobilização
voltada para aplicação de um golpe de Estado.
Outra, se refere
aos militares temporários cuja quantidade é elevada e continua crescendo. Com
efeito, o número de cabos, sargentos e oficiais enquadrados nessa categoria já
chega a mais da metade do contingente total. A contratação deles é atrativa
porque atende aos requerimentos das organizações bélicas, possuem direitos
reduzidos e são menos onerosos. No entanto, a conduta deles é diferente dos
efetivos. Enquanto estes revelam um senso de lealdade mais forte e uma
identificação mais profunda com a missão ou a finalidade constitucional das
Forças Armadas, os temporários inclinam-se a focar em suas obrigações
contratuais e na duração do seu serviço. Devido o preparo mais adequado,
treinamento mais extenso e experiência armazenada, os efetivos exibem
capacidade de liderança e reações congruentes frente a situações de pressão que
são raras entre os temporários. Os efetivos podem estar motivados pelo senso de
dever, carreira e benefícios de longo prazo, enquanto os temporários podem
estar motivados por recompensa financeira ou ganho de experiência profissional.
Efetivos encaminham-se rumo à formação de vínculos robustos com seus colegas ao
longo do tempo, a qual beneficia a coesão grupal. Dependendo da duração do
serviço os temporários podem apresentar dificuldades de integração e embaraços
nessas relações. Isto posto, não fica difícil de perceber que os militares
temporários apresentam um perfil singular, mais próximo da silhueta paisana e
afastado da imagem convencional própria dos efetivos.
Portanto, é a
formação alongada, a vivência acumulada, a atitude de comprometimento, a adoção
efetiva de valores consuetudinários, a perenidade do comportamento uniforme e a
duradoura submissão à hierarquia, próprias dos efetivos, auxiliam sobremaneira
o ato de liderar a tropa, pois está frequentemente respondendo de forma
imediata e conjunta ao brado do comandante. Embora essa conduta coletiva
automática ainda seja válida para algumas operações militares, é possível, que
isto, não venha a acontecer no momento da aplicação de um golpe de Estado por
causa da sua ilegalidade, implicações e consequências. Apareceriam dissidências
arruinadoras. Veja-se que na ditadura implantada em 1964, milhares de fardados
ficaram na oposição e foram objeto de perseguições e punições. Obviamente, tal
conduta, seria muito mais difícil de emergir no grupo prevalente dos
temporários.
Uma terceira
envolve a presença das mulheres militares que vem aumentando no decorrer do
tempo e já constituem um grande grupo haja vista que somente na Força Aérea,
nos últimos anos, mais de cinquenta por cento dos incorporados como temporários
foram do sexo feminino, em diversas áreas tais como na administração,
enfermagem, nutrição e radiologia. Atualmente, somam dez por cento do
contingente das três armas. Vale observar que, o comportamento profissional das
mulheres apresenta determinadas particularidades além das mencionadas
anteriormente. Elas têm que enfrentar atitudes machistas e pelejas contra seus
colegas masculinos, se esforçam em criar um ambiente de trabalho mais
respeitoso e colaborativo, se mostram compromissadas com um exercício
profissional sólido e com desempenhos vistosos, apesar de muitas terem que
conciliá-lo com as obrigações familiares, e quando assumem posições de chefia
tendem a valorizar a inclusão e a diversidade de expectativas na tomada de
decisões. Portanto, são funcionárias totalmente focadas em seus afazeres
diários e dedicadas às tarefas domésticas.
Esse perfil laboral
não predispõe a atender chamamentos golpistas, pois envolver-se em uma aventura
política contribui para a perturbação do cotidiano que é carregado de
exigências. Aliás, vale supor que as mesmas, além de se negarem a participar,
poderiam exibir condutas de antagonismo, porquanto em outros países isto já
aconteceu. A título de ilustração mencione-se que no Camboja, em 1997, com o
acirramento dos conflitos entre partidos políticos emergiu um golpe de Estado,
e muitas fardadas não só o rejeitaram como manifestaram atos de resistência e
apoio as forças democráticas. Do mesmo modo ocorreu no Egito em 2013,
resultando na deposição do presidente Mohamed Morsi. Servidoras uniformizadas
se opuseram a ele, enfrentaram a onda repressiva, criticaram as ações do
governo castrense e se envolveram com movimentos sociais.
A democracia
brasileira é outra área a ser examinada, indica que o bando de insurgentes
fardados a deixou de lado. De fato, parece que eles se encontram alijados de
conhecimentos fidedignos sobre a consolidação do nosso regime democrático que
começou em 1985 com a eleição de Tancredo Neves para a presidência da
república. Logo a seguir, em 1988 foi promulgada uma nova Constituição que
fixou direitos civis, políticos e sociais, a divisão de poderes com suas
estruturas de freios e contrapesos, a criação de mecanismos de controle
institucional como o Ministério Público independente e os Tribunais de Contas.
Em 1989, ocorreu a primeira eleição direta com o envolvimento de partidos
políticos assentados e atuantes. Três anos adiante aconteceu o impeachment de
Collor, que demonstrou o vigor do Congresso Nacional e do Poder Judiciário. Nas
décadas seguintes, manifestou-se a alternância pacífica no poder por meio de
eleições diretas e regulares bem como emergiram avanços significativos no combate
à pobreza e à desigualdade social. Outro impeachment se concretizou em 2016,
contra Dilma Rousseff, com a preservação de ordem constitucional, apesar da
suposição de que se tratou de uma urdida manobra parlamentar.
Mencione-se que as
atuações do poder judiciário, das instituições de controle, da imprensa e da
sociedade civil ajudaram sobremaneira o processo de asseguramento da
estabilidade democrática. Outrossim, deve ser ressaltado a relevante
participação popular através da democracia direta em dois plebiscitos, um em
2011 sobre a divisão do Estado do Pará e outro em 2014 a respeito da criação de
distritos no município de Campinas; em dois referendos, sendo um em 2005
pertinente a armas de fogo e outro em 2010 alusivo ao fuso horário vigente no Estado
do Acre e em três projetos de iniciativa popular, isto é, o de crimes hediondos
em 1994, o da ficha limpa em 2010 e o de combate à corrupção em 2016. Cite-se
ainda a pujança dos inúmeros movimentos sociais que pipocaram pelo país, tais
como o das diretas já, o da defesa do Sistema Único de Saúde, o da luta pelo
reconhecimento de terras indígenas, o da luta pelas prerrogativas da comunidade
LGBTQIA+ e os protestos de junho, quando milhões de pessoas foram às ruas
bramir contra o aumento das tarifas de transporte. E uma nova mobilização
popular poderia ter surgido contra o golpe caso ele tivesse vingado, haja
vista, que isto aconteceu em outros lugares tais como no Sudão em 2021
contrária à junta militar e na Turquia em 2016 que ajudou a frustrar os planos
dos insurgentes. Complete-se com uma pesquisa recente de opinião a qual aponta
que aproximadamente setenta por cento da população prefere o regime democrático
a qualquer outra forma de governo.
Igualmente não
atentaram para o fato de que a poderosa burguesia industrial do passado,
tradicional aliada em golpes, perdeu a posição de liderança para a burguesia
financeira que a qualquer momento pode retirar os ativos financeiros aplicados
e enviá-los para outros países isentos de crises sociais e políticas. Ao seu
lado predomina também o crescente setor de serviços. Além disso, o elevado
grupo de operários do passado se contraiu bastante por causa da automação, seus
sindicatos enfraqueceram muito e sua facção agitadora, outrora objeto de
repressão, caminha rumo ao desaparecimento. O empreendedorismo cresce de forma
rápida e os profissionais movidos por aplicativos aumentam a cada dia que
passa.
Do mesmo modo que a
democracia, o cenário internacional parece ser desconhecido ou rejeitado pela
súcia dos revéis. Certamente dessabem que a globalização neoliberal está
favorecendo a contenção do funcionamento dos Estados Nacionais. A autonomia e a
soberania deles, se fragilizam na medida em que o tempo passa. Assim sendo, seu
papel de agente do desenvolvimento econômico e sua função de garantir a coesão
e a integração social e nacional também estão se fragilizando. Quase todas as
nações do planeta encontram-se bastante atreladas entre si por força da
assinatura de documentos internacionais. O nosso país constitui um caso típico,
porquanto é signatário de muitas dezenas de acordos, tratados, convenções e
protocolos bilaterais e multilaterais que condicionam ostensivamente sua
conduta tanto no âmbito interno, quanto no externo. Dentre a elevada quantidade
de convênios podem ser citados o Acordo de Paris sobre mudança climática, o
Pacto de São José relacionado a direitos humanos, o Tratado de Não Proliferação
de Armas Nucleares, o Mercosul, o Acordo de Livre Comércio do Sul, o Acordo de
Facilitação do Comércio da OMC e o Acordo de Cooperação Econômica com a União
Africana.
Essa contínua
proximidade age como um poderoso freio a qualquer iniciativa unilateral que
possa vir a colocar em risco os compromissos assumidos por meio das resoluções,
especialmente a aplicação de um golpe de Estado. Ademais muitos países
comprometidos com o vigor e a perenidade do regime democrático costumam reagir
incisivamente contra qualquer tentativa de supressão da democracia ou de
desferimento de sérios danos a ela, inclusive com a aplicação de sanções como
os casos de Cuba e Venezuela, vítimas de longevos escarmentos econômicos
aplicados pelos Estados Unidos e nações europeias. No ano de 2009, no
transcorrer do golpe em Honduras, a Organização dos Estados Americanos
suspendeu a ajuda militar e econômica. No golpe acontecido na Guiné em
2021, a União Europeia proibiu viagens e bloqueou os ativos do país. Nesse ano,
aconteceu em Myanmar e os Estados Unidos restringiram o acesso a bens e
recursos financeiros. Quanto ao Brasil, ninguém levou em conta a fala do
presidente Biden no mês de julho de 2022, em uma reunião entre os chefes da
pasta de Defesa do Brasil e dos Estados Unidos, na qual sinalizou aos militares
que eles não teriam o respaldo de Washington caso optassem por uma aventura
golpista. E ressalte-se que, a corja dos beócios, planejava utilizar adidos
militares alocados em diversos países para explicar e justificar o emprego do
golpe com vistas a aplacar a ira da comunidade internacional, quiçá apoiada na
tola crença de que daria certo.
Os ineptos
insurgentes uniformizados já se encontram na órbita da justiça e certamente
serão processados e punidos com muitos anos de prisão. Prevê-se que, no
decorrer do tempo poderão obter amenização das penas, com base na lei de
execução penal, por meio da participação em cursos. Tendo em vista essa
possibilidade, a título de colaboração apresentamos uma proposta direcionada a
esse abrandamento. Sugerimos que os futuros aprisionados realizem um extenso
curso de atualização composto de três unidades, quais sejam, Filosofia da
Ciência, com o estudo dos tópicos relativos a concepções de realidade, tipos de
conhecimento, refutação de teorias e significado de verdade. Teoria Política,
com a abordagem dos assuntos pertinentes a Estados Nacionais, globalização,
formas de governo, ideologias, cidadania e democracia. Forças Armadas, com o
exame dos temas concernentes à finalidade das instituições castrenses, relações
entre civis e fardados, processo de civilinização e ética militar. Tão
importante quanto a diminuição do tempo de prisão é a expectativa desse curso
contribuir significativamente para a redução do atrofiamento das suas
faculdades intelectivas, a atenuação da acentuada incultura e o desengate do
estado de alienação que se revela muito prejudicial às suas vidas.
Fonte: Por Antônio
Carlos Will Ludwig, no Le Monde
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