“A saída dos EUA da
OMS favorece a China e afunda os países pobres do mundo”, afirma Giovanni Rezza
“A saída
dos Estados Unidos da Organização Mundial da Saúde (OMS)
representaria um duro golpe para a saúde global. Quem pagaria as
consequências seriam tanto os países mais pobres, que precisam de ajuda, quanto
os países industrializados, devido à inevitável perda de poder na identificação
e no controle de agentes patógenos emergentes que poderiam dar origem a novas
pandemias”. Giovanni Rezza, professor de Higiene e Saúde Pública da Universidade
Vita-Salute San Raffaele, em Milão, e ex-diretor geral de Prevenção em saúde do
Ministério da Saúde, fala sobre esse tema.
<><> Eis
a entrevista.
·
Professor,
acredita que Donald Trump está falando sério?
Trump nunca
escondeu sua aversão à OMS e, em alguns aspectos, eu entendo e
compartilho algumas de suas críticas. Mas também é verdade que, mesmo no
passado, os EUA estiveram prestes a deixar a organização, mas depois
houve um repensamento...
·
Acredita
que a decisão de Trump é uma jogada de poder?
Obviamente não
podemos ter certeza. Mas não se pode descartar a possibilidade de que essa
manobra faça parte de uma estratégia que visa aumentar, de forma totalmente
legítima, o peso que os Estados
Unidos têm
dentro da OMS. Portanto, espero que seja uma espécie de cabo de guerra, e é
razoável que um país doador reivindique papel decisivo. Mas, ao mesmo tempo,
não descarto a possibilidade de que os EUA tenham realmente chegado a um ponto
sem retorno. Certamente, as consequências para a OMS e seus países membros
serão bem fortes. Não podemos esquecer que os EUA são os principais
financiadores da OMS e isso deve significar alguma coisa.
·
Quais
poderiam ser as consequências da saída dos EUA?
A perda de poder
da OMS afetaria principalmente os países mais fracos, onde a pesquisa
e os sistemas de saúde são particularmente sustentados justamente
pela organização. Graças à OMS, importantes programas humanitários foram
criados nos países mais pobres, em guerra e vítimas de desastres naturais.
Estamos falando de
programas de nutrição, prevenção e assim por diante. Interrupções ou
desacelerações também poderiam inviabilizar os esforços para erradicar algumas
doenças infecciosas com efeitos negativos em outros países do mundo.
·
Sem
os EUA na OMS, a gestão de uma possível futura pandemia seria mais difícil?
A redução de poder
da OMS não beneficiaria nem a prevenção nem a gestão
de uma pandemia.
Mesmo que a OMS tenha cometido muitos erros no passado, continua sendo um ponto
de referência importante para os países do mundo. É provável que a cooperação
da OMS com as principais agências dos EUA, como os CDC, continuaria por
meio de acordos bilaterais. É impensável imaginar que os CDC fiquem de fora do
monitoramento das infecções emergentes, mas há o risco de que essa cooperação
seja reduzida. E a pandemia do Covid-19 deveria nos lembrar que os
esforços globais devem ser intensificados e não reduzidos.
·
Mas
a importância dos EUA é puramente uma questão econômica?
A questão econômica
tem seu peso, mas não se trata apenas de dinheiro. Se os planos
de Trump viessem a se concretizar nesse sentido, o principal
investidor na OMS provavelmente passaria a ser a China. Isso significa
que a OMS não apenas terá que enfrentar uma redução substancial de fundos, mas
também que um país como a China ganhará mais influência. E a China, embora
esteja mudando profundamente e melhorando seu desempenho, no passado foi muito
criticada pelos estadunidenses pela falta de transparência em algumas de suas
operações.
·
As
críticas de Trump à OMS são infundadas ou tem algum fundamento?
Acredito que não
são totalmente infundadas. Por exemplo, é verdade que, nas decisões da OMS e na
alocação de cargos, não é apenas o mérito pessoal que entra em jogo, mas também
os equilíbrios geopolíticos.
Não é nenhum
mistério o fato de que o peso de vários lobbies poderosos paira sobre
a OMS. E também é verdade que a gestão de certas crises
sanitárias ao
longo do tempo não viram brilhar a organização, principalmente por causa do
temor das consequências econômicas de determinadas escolhas. Além disso, há o
nó do ‘tratado pandêmico’ e o temor compartilhado por muitos países de que
possa minar a soberania nacional. Portanto, concordo que é necessária uma
reforma da OMS, que continua sendo um órgão do qual precisamos. Certas crises
sanitárias são de âmbito global e é necessária a coordenação de um órgão
supranacional que possa indicar uma estratégia comum.
Basta pensar na
recente gestão
no Congo do
que parecia ser uma doença de origem desconhecida. Naquele caso, a OMS
desempenhou um papel importante na coordenação dos esforços dos vários órgãos
envolvidos.
Portanto, é bom
esperar que a OMS se acerte com Trump de uma vez por todas?
“Certamente, a esperança é que se chegue a um acordo e que algo de bom resulte
de todo essa discussão, como uma reforma da OMS capaz de melhorar a
transparência e a capacidade de ação da organização. Pode e deve ser melhorada,
e é melhor que isso aconteça em um contexto de pacífica cooperação
internacional, que inclua os Estados Unidos.
¨ O sentido e o
impacto da retirada dos Estados Unidos da OMS. Por Deisy Ventura, no Jornal da USP
Cumprindo uma
promessa de campanha, o presidente Donald Trump anunciou a retirada
dos Estados
Unidos da Organização
Mundial da Saúde (OMS) já nas primeiras horas do seu novo mandato. Com
isto, busca completar o que começou em julho de 2020, ao final de seu primeiro
governo, quando já havia notificado oficialmente o abandono da organização.
Derrotado por Joe Biden nas eleições
presidenciais, Trump teve sua iniciativa revertida no início de 2021.
Do ponto de vista
jurídico, a notificação de retirada levaria um ano para produzir os seus
efeitos. No entanto, não estamos diante de um simples afastamento, e sim de uma
ruptura estrondosa. Trump anunciou igualmente: a suspensão imediata
de qualquer forma de financiamento ou apoio do governo norte-americano
à OMS; a ordem de retorno à Washington dos servidores ou
contratados dos Estados Unidos que desempenhem alguma função na
organização; e a retirada das negociações do acordo sobre pandemias, e também
recusará as emendas ao Regulamento Sanitário Internacional recentemente
adotadas.
Sendo
os Estados Unidos um dos principais financiadores da OMS, com o
perdão pela analogia, é claro que não estamos diante de uma separação amigável,
e sim de um divórcio litigioso, daqueles que incluem disputas pela partilha dos
bens e pela guarda dos filhos. Esta ruptura necessita ser interpretada em ao
menos três dimensões.
Em primeiro lugar,
a mais evidente: sair da OMS faz parte de um amplo e
vigoroso ataque ao multilateralismo, sendo anunciada a ruptura de outros
compromissos internacionais, entre eles os relativos a mudanças
climáticas,
também abandonados no primeiro mandato de Trump. Sob o pretexto de
defender a soberania nacional absoluta – no caso, a dos Estados Unidos,
eis que a dos demais países é por eles aviltada de forma sistemática, tanto por
republicanos como por democratas –, é bastante conhecida e comentada a aversão
de Trump e de suas bases de apoio à cooperação multilateral e às
organizações internacionais, personagens frequentes de mentiras deslavadas e
dos enredos de teorias conspiratórias. Em setembro de 2020, por exemplo,
a Casa Branca afirmou, em nota oficial, que a OMS não havia
demonstrado independência em relação ao Partido Comunista Chinês, entre
outras pérolas. Na verdade, a ferrenha oposição das extremas direitas ao
sistema da Organização das Nações Unidas (ONU) está relacionada principalmente
à promoção de direitos individuais e coletivos pelo sistema onusiano, que são
contestados por alianças transnacionais conservadoras.
Em segundo lugar, é
preciso reconhecer as especificidades da OMS. Coordenadora da atuação
internacional em matéria de saúde, sua essência é a defesa das evidências
científicas como base para a tomada de decisão e a elaboração de políticas de
saúde. É fácil entender que, composta de 194 Estados-membros com notável
heterogeneidade política, religiosa e cultural, cujos interesses ela é obrigada
a compatibilizar, outra linguagem que não fosse a científica não seria possível
nem desejável.
Longe de ser
perfeita, porém, a OMS é imprescindível. Por meio de seus comitês de
especialistas, órgãos e parcerias, ela fomenta, produz e difunde evidências
científicas, cumprindo missões que vão da elaboração de lista de medicamentos
essenciais à classificação internacional das doenças, passando por padrões que
cotidianamente funcionam como parâmetros para sistemas e profissionais de
saúde, legisladores, pesquisadores, entidades sociais, mídias etc.
Ora, para aqueles
que pretendem impor as suas visões de mundo e os seus interesses pessoais à
coletividade, nada poderia ser mais inconveniente do que a atuação da OMS.
Quando trazidos para o terreno das evidências científicas, extremistas como o
presidente Trump buscam desqualificar os cientistas e pesquisadores,
ou forjar evidências que sirvam aos seus objetivos políticos imediatos. Esta
prática recorrente gera falsas controvérsias científicas que, mesmo quando
desmentidas, causam estragos difíceis de reverter, entre eles morte e
adoecimento evitáveis, autoridades sanitárias desacreditadas e populações
confusas. Neste plano, operam publicações predatórias, ausência de regulação
adequada da difusão de informações, impunidade de quem atenta contra
a saúde pública etc.
Infelizmente, pela
emoção que é capaz de causar e pelo hermetismo da linguagem científica, a saúde
funciona como um nervo exposto, com potenciais sensibilidade e irradiação que se
prestam perfeitamente à propaganda ideológica e à desinformação.
A posição da OMS em favor da completa descriminalização do aborto,
com amplo fundamento científico, é um exemplo cabal do quanto evidências podem
contrariar ambições políticas e religiosas baseadas em preconceitos e crenças
que não podem ser impostos à coletividade. Do mesmo modo, os ataques às pessoas
trans causam danos inestimáveis a elas e ao conjunto da sociedade, com
importantes repercussões sobre a sua integridade física e mental.
A politização
da resposta à covid-19 nos Estados Unidos é outro exemplo
fundamental. As recomendações da OMS foram apresentadas pela base
de Trump como ameaças à forma de vida, à liberdade, à segurança e à
economia norte-americanas, ou seja, como o contrário do que elas de fato foram.
As conferências de imprensa da OMS funcionaram como pedras no sapato
do presidente, pois fortaleciam as autoridades sanitárias independentes e todos
aqueles que buscavam conter a propagação da doença, enquanto Trump recomendava
a ingestão de desinfetantes e defendia tratamentos sem eficácia comprovada como
forma de incitar a população ao contágio.
Entre as críticas
inesquecíveis à OMS, recordo a da consultora do alto escalão
governamental, Kellyanne Conway, a mesma que apresentou mentiras do
presidente como “fatos paralelos”, que declarou: “Isto é covid-19, não
covid-1, pessoal. Seria de esperar que as pessoas encarregadas dos fatos e
números da OMS estivessem sabendo disso”, jogando com o nome da
doença para dar a entender que aquele seria o seu décimo nono surto, quando,
como sabemos, 2019 é o ano em que o vírus foi reconhecido.
A abordagem da
pandemia que se afirma nos Estados Unidos é um risco não apenas para
o país, mas também para o mundo. Vale recordar que, em
2017, Trump eliminou o órgão de preparação para emergências de saúde
que havia sido criado por Barak Obama. Já anunciou que fechará igualmente
órgão similar criado por Biden. Em entrevista à revista Time, Trump
afirmou que a preparação para pandemias não compensa porque as doenças são
muito variadas e produtos de saúde podem ficar obsoletos, sendo melhor esperar
que as crises aconteçam para avaliar o que se pode fazer.
Isto nos leva à
terceira dimensão importante da análise, que é a institucional e regulatória.
Tendo o controle do Parlamento, é provável que o segundo mandato
de Trump consiga minar salvaguardas legais e institucionais que
contribuíram para minimizar o impacto negativo de seu primeiro mandato. A
defesa da redução do papel regulador do Estado, supostamente corrupto e
ineficiente, é fachada para os interesses de gigantes da indústria, que sonham
com a eliminação de regras e mecanismos de vigilância que priorizam a saúde da
população em detrimento do lucro.
No discurso da
vitória eleitoral, o presidente anunciou Robert
Kennedy Jr. como
importante colaborador de seu governo, e pediu que ele “sacudisse” as
instituições sanitárias e remodelasse os programas nacionais de saúde, em
especial a regulação de alimentos e remédios. Agitador antivacina e
negacionista contumaz, Kennedy Jr. vem lutando há anos para que o
flúor seja retirado da água tratada, entre outros desserviços à saúde.
Por
certo, Trump enfrentará a resistência de governos locais e atores
sociais, e também de setores dos
poderes Legislativo e Judiciário. Mas um movimento de massas, a
exemplo do que sustenta o presidente, que exerça uma oposição aguerrida à
agenda extremista, parece estar distante.
É à luz dessas três
dimensões que deve ser lida a notícia divulgada em primeira mão pelo grande
jornalista Jamil Chade, que fez uma brilhante cobertura da campanha
eleitoral norte-americana de 2024, e da mesma forma oferece uma leitura única
da posse do novo presidente. Segundo Jamil, Trump anunciou que
vai “identificar parceiros confiáveis e transparentes dos Estados
Unidos e internacionais para assumir as atividades necessárias
anteriormente realizadas pela OMS”, e que a Estratégia de Segurança
da Saúde Global dos EUA de 2024 deve ser substituída assim que
possível.
Assim, mais do que
a retirada dos Estados Unidos da OMS, há a consolidação de um
polo rival no cenário internacional, já presente no primeiro mandato
de Trump, e agora fortalecido. As alianças conservadoras
transnacionais encontrarão no presidente um ativista experiente, que
domina os meandros do Estado, conhecedor de todo o potencial de caos e
desinformação que uma pandemia pode trazer. Naquilo que vem sendo
chamado de neoliberalismo
epidemiológico,
manifestado entre outras formas pelo uso da imunidade de rebanho por contágio
como resposta à covid-19 – cientificamente falsa e, ainda que fosse
verdadeira, eticamente inaceitável pelo número avassalador de mortes evitáveis
que causa. Deixar que as epidemias avancem pode se afirmar como uma estratégia
extremista para que os mais vulneráveis, na qualidade de indesejados, sejam
eliminados.
O poderio
econômico, político e militar dos Estados Unidos se traduz na
capacidade de estabelecer iniciativas de cooperação em saúde com países de
média e baixa renda orientadas por valores antagônicos aos da OMS. Trump
pode induzir ao desrespeito a direitos conquistados, à frente deles
os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, das populações LGBTQIA+ e
dos migrantes e refugiados, além de direitos relacionados ao meio ambiente
e à proteção dos povos originários. Também está clara a sua capacidade de
organizar, financiar e promover a desinformação em saúde em escalas inéditas,
considerando o lugar de honra reservado aos grandes empresários do setor da
tecnologia na nova gestão.
Assim, com 42
emergências em curso no mundo, sendo 17 delas em grau máximo,
a OMS enfrenta um duro golpe, no momento em que mais precisa ser
fortalecida. A redução do financiamento da organização, tão comentada, embora
muito importante, está longe de ser o único impacto negativo do retorno
de Trump ao poder.
Cresce, então, a
importância de países como o Brasil no cenário da saúde global.
Nossas tarefas são muitas. Mas isto é assunto para uma outra coluna.
Fonte: Entrevista
para Valentina Arcovio, em La
Stampa
- tradução de Luisa Rabolini
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