sábado, 8 de fevereiro de 2025

“A saída dos EUA da OMS favorece a China e afunda os países pobres do mundo”, afirma Giovanni Rezza

“A saída dos Estados Unidos da Organização Mundial da Saúde (OMS) representaria um duro golpe para a saúde global. Quem pagaria as consequências seriam tanto os países mais pobres, que precisam de ajuda, quanto os países industrializados, devido à inevitável perda de poder na identificação e no controle de agentes patógenos emergentes que poderiam dar origem a novas pandemias”. Giovanni Rezza, professor de Higiene e Saúde Pública da Universidade Vita-Salute San Raffaele, em Milão, e ex-diretor geral de Prevenção em saúde do Ministério da Saúde, fala sobre esse tema.

<><> Eis a entrevista.

·        Professor, acredita que Donald Trump está falando sério?

Trump nunca escondeu sua aversão à OMS e, em alguns aspectos, eu entendo e compartilho algumas de suas críticas. Mas também é verdade que, mesmo no passado, os EUA estiveram prestes a deixar a organização, mas depois houve um repensamento...

·        Acredita que a decisão de Trump é uma jogada de poder?

Obviamente não podemos ter certeza. Mas não se pode descartar a possibilidade de que essa manobra faça parte de uma estratégia que visa aumentar, de forma totalmente legítima, o peso que os Estados Unidos têm dentro da OMS. Portanto, espero que seja uma espécie de cabo de guerra, e é razoável que um país doador reivindique papel decisivo. Mas, ao mesmo tempo, não descarto a possibilidade de que os EUA tenham realmente chegado a um ponto sem retorno. Certamente, as consequências para a OMS e seus países membros serão bem fortes. Não podemos esquecer que os EUA são os principais financiadores da OMS e isso deve significar alguma coisa.

·        Quais poderiam ser as consequências da saída dos EUA?

A perda de poder da OMS afetaria principalmente os países mais fracos, onde a pesquisa e os sistemas de saúde são particularmente sustentados justamente pela organização. Graças à OMS, importantes programas humanitários foram criados nos países mais pobres, em guerra e vítimas de desastres naturais.

Estamos falando de programas de nutrição, prevenção e assim por diante. Interrupções ou desacelerações também poderiam inviabilizar os esforços para erradicar algumas doenças infecciosas com efeitos negativos em outros países do mundo.

·        Sem os EUA na OMS, a gestão de uma possível futura pandemia seria mais difícil?

A redução de poder da OMS não beneficiaria nem a prevenção nem a gestão de uma pandemia. Mesmo que a OMS tenha cometido muitos erros no passado, continua sendo um ponto de referência importante para os países do mundo. É provável que a cooperação da OMS com as principais agências dos EUA, como os CDC, continuaria por meio de acordos bilaterais. É impensável imaginar que os CDC fiquem de fora do monitoramento das infecções emergentes, mas há o risco de que essa cooperação seja reduzida. E a pandemia do Covid-19 deveria nos lembrar que os esforços globais devem ser intensificados e não reduzidos.

·        Mas a importância dos EUA é puramente uma questão econômica?

A questão econômica tem seu peso, mas não se trata apenas de dinheiro. Se os planos de Trump viessem a se concretizar nesse sentido, o principal investidor na OMS provavelmente passaria a ser a China. Isso significa que a OMS não apenas terá que enfrentar uma redução substancial de fundos, mas também que um país como a China ganhará mais influência. E a China, embora esteja mudando profundamente e melhorando seu desempenho, no passado foi muito criticada pelos estadunidenses pela falta de transparência em algumas de suas operações.

·        As críticas de Trump à OMS são infundadas ou tem algum fundamento?

Acredito que não são totalmente infundadas. Por exemplo, é verdade que, nas decisões da OMS e na alocação de cargos, não é apenas o mérito pessoal que entra em jogo, mas também os equilíbrios geopolíticos.

Não é nenhum mistério o fato de que o peso de vários lobbies poderosos paira sobre a OMS. E também é verdade que a gestão de certas crises sanitárias ao longo do tempo não viram brilhar a organização, principalmente por causa do temor das consequências econômicas de determinadas escolhas. Além disso, há o nó do ‘tratado pandêmico’ e o temor compartilhado por muitos países de que possa minar a soberania nacional. Portanto, concordo que é necessária uma reforma da OMS, que continua sendo um órgão do qual precisamos. Certas crises sanitárias são de âmbito global e é necessária a coordenação de um órgão supranacional que possa indicar uma estratégia comum.

Basta pensar na recente gestão no Congo do que parecia ser uma doença de origem desconhecida. Naquele caso, a OMS desempenhou um papel importante na coordenação dos esforços dos vários órgãos envolvidos.

Portanto, é bom esperar que a OMS se acerte com Trump de uma vez por todas? “Certamente, a esperança é que se chegue a um acordo e que algo de bom resulte de todo essa discussão, como uma reforma da OMS capaz de melhorar a transparência e a capacidade de ação da organização. Pode e deve ser melhorada, e é melhor que isso aconteça em um contexto de pacífica cooperação internacional, que inclua os Estados Unidos.  

 

¨      O sentido e o impacto da retirada dos Estados Unidos da OMS. Por Deisy Ventura, no Jornal da USP

Cumprindo uma promessa de campanha, o presidente Donald Trump anunciou a retirada dos Estados Unidos da Organização Mundial da Saúde (OMS) já nas primeiras horas do seu novo mandato. Com isto, busca completar o que começou em julho de 2020, ao final de seu primeiro governo, quando já havia notificado oficialmente o abandono da organização. Derrotado por Joe Biden nas eleições presidenciais, Trump teve sua iniciativa revertida no início de 2021.

Do ponto de vista jurídico, a notificação de retirada levaria um ano para produzir os seus efeitos. No entanto, não estamos diante de um simples afastamento, e sim de uma ruptura estrondosa. Trump anunciou igualmente: a suspensão imediata de qualquer forma de financiamento ou apoio do governo norte-americano à OMS; a ordem de retorno à Washington dos servidores ou contratados dos Estados Unidos que desempenhem alguma função na organização; e a retirada das negociações do acordo sobre pandemias, e também recusará as emendas ao Regulamento Sanitário Internacional recentemente adotadas.

Sendo os Estados Unidos um dos principais financiadores da OMS, com o perdão pela analogia, é claro que não estamos diante de uma separação amigável, e sim de um divórcio litigioso, daqueles que incluem disputas pela partilha dos bens e pela guarda dos filhos. Esta ruptura necessita ser interpretada em ao menos três dimensões.

Em primeiro lugar, a mais evidente: sair da OMS faz parte de um amplo e vigoroso ataque ao multilateralismo, sendo anunciada a ruptura de outros compromissos internacionais, entre eles os relativos a mudanças climáticas, também abandonados no primeiro mandato de Trump. Sob o pretexto de defender a soberania nacional absoluta – no caso, a dos Estados Unidos, eis que a dos demais países é por eles aviltada de forma sistemática, tanto por republicanos como por democratas –, é bastante conhecida e comentada a aversão de Trump e de suas bases de apoio à cooperação multilateral e às organizações internacionais, personagens frequentes de mentiras deslavadas e dos enredos de teorias conspiratórias. Em setembro de 2020, por exemplo, a Casa Branca afirmou, em nota oficial, que a OMS não havia demonstrado independência em relação ao Partido Comunista Chinês, entre outras pérolas. Na verdade, a ferrenha oposição das extremas direitas ao sistema da Organização das Nações Unidas (ONU) está relacionada principalmente à promoção de direitos individuais e coletivos pelo sistema onusiano, que são contestados por alianças transnacionais conservadoras.

Em segundo lugar, é preciso reconhecer as especificidades da OMS. Coordenadora da atuação internacional em matéria de saúde, sua essência é a defesa das evidências científicas como base para a tomada de decisão e a elaboração de políticas de saúde. É fácil entender que, composta de 194 Estados-membros com notável heterogeneidade política, religiosa e cultural, cujos interesses ela é obrigada a compatibilizar, outra linguagem que não fosse a científica não seria possível nem desejável.

Longe de ser perfeita, porém, a OMS é imprescindível. Por meio de seus comitês de especialistas, órgãos e parcerias, ela fomenta, produz e difunde evidências científicas, cumprindo missões que vão da elaboração de lista de medicamentos essenciais à classificação internacional das doenças, passando por padrões que cotidianamente funcionam como parâmetros para sistemas e profissionais de saúde, legisladores, pesquisadores, entidades sociais, mídias etc.

Ora, para aqueles que pretendem impor as suas visões de mundo e os seus interesses pessoais à coletividade, nada poderia ser mais inconveniente do que a atuação da OMS. Quando trazidos para o terreno das evidências científicas, extremistas como o presidente Trump buscam desqualificar os cientistas e pesquisadores, ou forjar evidências que sirvam aos seus objetivos políticos imediatos. Esta prática recorrente gera falsas controvérsias científicas que, mesmo quando desmentidas, causam estragos difíceis de reverter, entre eles morte e adoecimento evitáveis, autoridades sanitárias desacreditadas e populações confusas. Neste plano, operam publicações predatórias, ausência de regulação adequada da difusão de informações, impunidade de quem atenta contra a saúde pública etc.

Infelizmente, pela emoção que é capaz de causar e pelo hermetismo da linguagem científica, a saúde funciona como um nervo exposto, com potenciais sensibilidade e irradiação que se prestam perfeitamente à propaganda ideológica e à desinformação. A posição da OMS em favor da completa descriminalização do aborto, com amplo fundamento científico, é um exemplo cabal do quanto evidências podem contrariar ambições políticas e religiosas baseadas em preconceitos e crenças que não podem ser impostos à coletividade. Do mesmo modo, os ataques às pessoas trans causam danos inestimáveis a elas e ao conjunto da sociedade, com importantes repercussões sobre a sua integridade física e mental.

A politização da resposta à covid-19 nos Estados Unidos é outro exemplo fundamental. As recomendações da OMS foram apresentadas pela base de Trump como ameaças à forma de vida, à liberdade, à segurança e à economia norte-americanas, ou seja, como o contrário do que elas de fato foram. As conferências de imprensa da OMS funcionaram como pedras no sapato do presidente, pois fortaleciam as autoridades sanitárias independentes e todos aqueles que buscavam conter a propagação da doença, enquanto Trump recomendava a ingestão de desinfetantes e defendia tratamentos sem eficácia comprovada como forma de incitar a população ao contágio.

Entre as críticas inesquecíveis à OMS, recordo a da consultora do alto escalão governamental, Kellyanne Conway, a mesma que apresentou mentiras do presidente como “fatos paralelos”, que declarou: “Isto é covid-19, não covid-1, pessoal. Seria de esperar que as pessoas encarregadas dos fatos e números da OMS estivessem sabendo disso”, jogando com o nome da doença para dar a entender que aquele seria o seu décimo nono surto, quando, como sabemos, 2019 é o ano em que o vírus foi reconhecido.

A abordagem da pandemia que se afirma nos Estados Unidos é um risco não apenas para o país, mas também para o mundo. Vale recordar que, em 2017, Trump eliminou o órgão de preparação para emergências de saúde que havia sido criado por Barak Obama. Já anunciou que fechará igualmente órgão similar criado por Biden. Em entrevista à revista Time, Trump afirmou que a preparação para pandemias não compensa porque as doenças são muito variadas e produtos de saúde podem ficar obsoletos, sendo melhor esperar que as crises aconteçam para avaliar o que se pode fazer.

Isto nos leva à terceira dimensão importante da análise, que é a institucional e regulatória. Tendo o controle do Parlamento, é provável que o segundo mandato de Trump consiga minar salvaguardas legais e institucionais que contribuíram para minimizar o impacto negativo de seu primeiro mandato. A defesa da redução do papel regulador do Estado, supostamente corrupto e ineficiente, é fachada para os interesses de gigantes da indústria, que sonham com a eliminação de regras e mecanismos de vigilância que priorizam a saúde da população em detrimento do lucro.

No discurso da vitória eleitoral, o presidente anunciou Robert Kennedy Jr. como importante colaborador de seu governo, e pediu que ele “sacudisse” as instituições sanitárias e remodelasse os programas nacionais de saúde, em especial a regulação de alimentos e remédios. Agitador antivacina e negacionista contumaz, Kennedy Jr. vem lutando há anos para que o flúor seja retirado da água tratada, entre outros desserviços à saúde.

Por certo, Trump enfrentará a resistência de governos locais e atores sociais, e também de setores dos poderes Legislativo e Judiciário. Mas um movimento de massas, a exemplo do que sustenta o presidente, que exerça uma oposição aguerrida à agenda extremista, parece estar distante.

É à luz dessas três dimensões que deve ser lida a notícia divulgada em primeira mão pelo grande jornalista Jamil Chade, que fez uma brilhante cobertura da campanha eleitoral norte-americana de 2024, e da mesma forma oferece uma leitura única da posse do novo presidente. Segundo Jamil, Trump anunciou que vai “identificar parceiros confiáveis e transparentes dos Estados Unidos e internacionais para assumir as atividades necessárias anteriormente realizadas pela OMS”, e que a Estratégia de Segurança da Saúde Global dos EUA de 2024 deve ser substituída assim que possível.

Assim, mais do que a retirada dos Estados Unidos da OMS, há a consolidação de um polo rival no cenário internacional, já presente no primeiro mandato de Trump, e agora fortalecido. As alianças conservadoras transnacionais encontrarão no presidente um ativista experiente, que domina os meandros do Estado, conhecedor de todo o potencial de caos e desinformação que uma pandemia pode trazer. Naquilo que vem sendo chamado de neoliberalismo epidemiológico, manifestado entre outras formas pelo uso da imunidade de rebanho por contágio como resposta à covid-19 – cientificamente falsa e, ainda que fosse verdadeira, eticamente inaceitável pelo número avassalador de mortes evitáveis que causa. Deixar que as epidemias avancem pode se afirmar como uma estratégia extremista para que os mais vulneráveis, na qualidade de indesejados, sejam eliminados.

O poderio econômico, político e militar dos Estados Unidos se traduz na capacidade de estabelecer iniciativas de cooperação em saúde com países de média e baixa renda orientadas por valores antagônicos aos da OMS. Trump pode induzir ao desrespeito a direitos conquistados, à frente deles os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, das populações LGBTQIA+ e dos migrantes e refugiados, além de direitos relacionados ao meio ambiente e à proteção dos povos originários. Também está clara a sua capacidade de organizar, financiar e promover a desinformação em saúde em escalas inéditas, considerando o lugar de honra reservado aos grandes empresários do setor da tecnologia na nova gestão.

Assim, com 42 emergências em curso no mundo, sendo 17 delas em grau máximo, a OMS enfrenta um duro golpe, no momento em que mais precisa ser fortalecida. A redução do financiamento da organização, tão comentada, embora muito importante, está longe de ser o único impacto negativo do retorno de Trump ao poder.

Cresce, então, a importância de países como o Brasil no cenário da saúde global. Nossas tarefas são muitas. Mas isto é assunto para uma outra coluna.

 

Fonte: Entrevista para Valentina Arcovio, em La Stampa - tradução de Luisa Rabolini

 

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