Como as grandes
guerras começam — e os riscos que corremos em 2025
A Europa passa
atualmente por um de seus conflitos mais
devastadores em décadas.
Ao mesmo tempo, o
Leste Asiático, apesar de não estar em guerra, também não vive um momento
exatamente pacífico, com disputas territoriais e brigas por influência.
E uma guerra brutal
entre Israel e Hamas disseminou uma onda
de violência e instabilidade em todo o Oriente Médio, que agora vê um
momento de pausa graças a um acordo de cessar-fogo.
Com tudo isso,
analistas, lideranças militares e governos ao redor do mundo já começam a falar
na possibilidade de um conflito expandido, de proporções globais, entre as
principais alianças atuais.
E, segundo
especialistas consultados pela BBC News Brasil, muito disso está ligado à memória
das duas guerras mundiais anteriores.
Historiadores
afirmam que a forma como ambos os conflitos começaram e se desenvolver nos
deixam pistas para interpretar o momento atual e até antecipar a possibilidade
de uma nova guerra.
Um olhar atento às
circunstâncias que levaram o mundo a duas guerras globais revelam pelo menos
seis fatores que aumentam o risco de conflitos regionais se ampliarem através
de continentes. A BBC News Brasil explica aqui cada um deles.
·
Nacionalismo
e imperialismo
Para Juliette Pattinson,
historiadora e professora de Estudos da Guerra da King's College de Londres, um
dos fatores comuns à 1ª e 2ª guerras — e que também foi central para dar início
a diversos outros conflitos — é a emergência de sentimentos nacionalistas e
imperialistas dentro dos Estados.
"Muitos
territórios ou países recém-formados têm a tendência de querer se afirmar no
cenário mundial, formar um império ou crescer militarmente", disse à BBC
News Brasil.
"E todo esse
nacionalismo e imperialismo pode levar a suspeitas mútuas entre países, o que
realmente aumenta a tensão. E em muitos casos há uma sensação de que a honra
nacional está em jogo."
No caso da 1ª
Guerra Mundial, a historiadora cita como exemplo o sentimento de competição
entre as grandes potências europeias da época, como Alemanha, França,
Grã-Bretanha, Rússia e Áustria-Hungria.
Antes da guerra
explodir em 1914, esses impérios, que se apoiavam em colônias ao redor do
mundo, viam outros países tomando novos territórios como uma ameaça.
O avanço da
Alemanha e da Áustria-Hungria pelo controle de países como Bósnia e Marrocos,
por exemplo, foi visto como um movimento muito agressivo pelos seus
adversários. A expansão da Sérvia também gerava muita preocupação.
O que aconteceu a
seguir é o que consta em todos os livros de história: duas grandes alianças,
conhecidas como Tríplice Entente (entre França, Rússia e Grã-Bretanha) e
Tríplice Aliança (Alemanha, Áustria-Hungria e Itália), se formaram e passaram a
se enfrentar em diferentes frentes de batalha.
Já durante a 2ª
Guerra Mundial, os sentimentos nacionalistas e imperialistas dos governos da
Alemanha nazista, da Itália de Benito Mussolini e do Japão foram cruciais para
estourar o conflito.
Historiadores
apontam que eventos como invasão da Polônia, da União Soviética e de outras
regiões da Europa Oriental pelos alemães, a expansão da influência italiana no
Norte da África e nos Bálcãs, e a invasão da China e conquista de colônias
europeias no Sudeste Asiático pelo Japão foram, em grande parte, consequência
do crescimento dessas ideologias.
Pattinson também
acredita que a personalidade dos líderes envolvidos foi chave para que os
conflitos se expandissem.
Segundo ela,
personagens como o imperador Wilhelm 2º da Alemanha na primeira guerra e Hitler
e Mussolini na segunda são lembrados como indivíduos ambiciosos que tiveram
papel central em lançar seus países para a guerra.
"Esses
indivíduos ambiciosos não tinham pessoas ao seu redor para desaconselhá-los ou
brecar suas visões expansionistas", diz.
·
Revisionismo
da ordem global
O segundo fator
comum tem uma relação direta com o anterior. Segundo especialistas, Estados e
lideranças envolvidos em guerras mundiais tendem a compartilhar um certo desejo
de alterar o balanço de poder na ordem mundial.
"Podemos
perceber em muitas guerras o equilíbrio de poder sendo perturbado ou a ascensão
de uma potência percebida como responsável por tentar mudar o status quo",
diz Richard Caplan, professor de Relações Internacionais da Universidade de
Oxford.
O equilíbrio de
poder é um conceito que faz parte de várias teorias das Relações
Internacionais. De forma geral, se acredita que a paz é mais provável quando há
uma estabilidade.
Mas quando esse
equilíbrio é desafiado, seja por uma potência ascendente que quer mais poder ou
por alianças que tentam conter o que veem como uma ameaça, as tensões aumentam
e os conflitos podem ocorrer.
E segundo os
estudiosos do tema, grandes guerras tendem a provocar mudanças na distribuição
de poder, dando origem a uma nova ordem na qual os vencedores acabam mais poderosos.
Após a 1ª Guerra,
por exemplo, os impérios que dominavam a Europa desmoronaram, novas nações
foram criadas e o poder foi redistribuído, com a ascensão dos Estados Unidos. A
Alemanha, considerada a grande perdedora do conflito, foi obrigada a aceitar as
condições impostas pelos vencedores no Tratado de Versalhes.
Mas os termos do
pacto geraram ressentimentos profundos, criando um terreno fértil para o
autoritarismo de Hitler e, eventualmente, a eclosão da Segunda Guerra.
O conflito que
acabou em 1945 terminou por consolidar a hegemonia de duas grandes potências
globais: os Estados Unidos e a União Soviética (URSS). Elas emergiram como
vencedoras e influenciaram diretamente a reorganização mundial.
Posteriormente,
essa bipolaridade deu início à Guerra Fria.
·
Vários
focos de conflitos
Guerras mundiais
ainda tendem a começar quando existem múltiplos focos de tensão ou conflitos ao
redor do mundo, dizem analistas.
Antes de 1914, por
exemplo, as Guerras dos Bálcãs aumentaram as rivalidades entre as grandes
potências. Foi depois desses conflitos que a Sérvia emergiu como um Estado mais
poderoso e se tornou a principal rival do Império Austro-Húngaro.
Ao mesmo tempo, a
Rússia via os Bálcãs como estratégicos para obter vantagem militar, o que
também elevou as tensões com a Áustria-Hungria.
Outros conflitos
que precederam a Primeira Guerra foram a guerra entre Rússia e Japão por
territórios como a Manchúria e a Coreia entre 1904 e 1905. Além da constante
competitividade entre Alemanha e Grã-Bretanha.
No caso da 2ª
Guerra, historiadores apontam os desfechos da primeira guerra mundial e a
abertura de diversos fronts como eventos que criaram um ambiente
propício para o conflito.
David Stevenson,
professor de História Internacional na London School of Economics, explica que
durante a 2ª Guerra os pontos de tensão se encontravam principalmente na Europa
Oriental.
"As fronteiras
leste e oeste da Alemanha eram um foco de tensão, assim como a grande crise
sobre a Tchecoslováquia em 1938. Depois há a crise da Polônia em 1939, que é o
verdadeiro gatilho que dá início à guerra mundial", diz.
O Sudeste Asiático
também chegou a ser considerado ponto de tensão, com confrontos entre os EUA e
o Japão na então Indochina Francesa, hoje o Vietnã.
"O que vemos
foi uma combinação de uma corrida armamentista com uma série de crises
diplomáticas", resume Stevenson.
·
Alianças
E todos esses focos
de conflito foram permeados e ditados pelas alianças que se construíram nos
períodos pré-guerra.
Na 1ª Guerra, a
Tríplice Entente foi formada como resposta às ambições da Tríplice Aliança,
criada oficialmente em maio de 1882.
Entre os membros da
Entente, a França buscava revanche pela derrota na guerra que 40 anos antes que
resultou na perda da Alsácia-Lorena para a recém-formada Alemanha, enquanto a
Grã-Bretanha temia a crescente ameaça naval e militar alemã.
Já os russos
estavam interessados em expandir sua influência nos Bálcãs e manter uma
política de apoio aos eslavos. E quando a Áustria-Hungria declarou guerra à
Sérvia, um aliado consolidado da Rússia, o país não teve outra escolha que não
se envolver no conflito também.
Quando se trata da
2ª Guerra, as alianças se estruturaram em dois blocos principais: o Eixo e os
Aliados.
O primeiro foi
integrado inicialmente pelo Japão, pela Alemanha de Hitler e pela Itália de
Mussolini. As três potências compartilhavam ideologias expansionistas,
militaristas e anticomunistas.
Posteriormente,
Hungria, Romênia, Eslováquia e Bulgária também se uniram ao grupo.
O segundo bloco
tinha como membros principais Reino Unido, França, União Soviética e Estados
Unidos.
Apesar de terem
governos e objetivos bastante diferentes naquele momento, as potências se
uniram em defesa de suas soberanias e para derrotar o fascismo e o imperialismo
do Eixo, dizem os historiadores.
Outros países, como
Canadá, Austrália e o Brasil, também se uniram aos Aliados ao longo da guerra.
Corrida
armamentista
E enquanto todo o
cenário de focos de tensão e alianças ia se formando, outro fator importante e
que costuma preceder muitas guerras também se desenvolvia: uma corrida
armamentista.
"Os grandes
países europeus como Alemanha, França, Rússia e Áustria-Hungria quase dobram
seus gastos com armamentos entre 1905 e 1914", diz David Stevenson sobre o
cenário que se formava antes da 1ª Guerra Mundial. "Os gastos foram de
cerca de 2,5% do PIB desses países para até 5%."
Já na década de
1930, a corrida armamentista foi ainda mais intensa, segundo o historiador.
"Os gastos com
armas alemãs, por exemplo, quase dobraram em cinco anos. Quando chegamos a 1938
ou 1939, a Grã-Bretanha, a Alemanha e a França estão gastando mais de 20% do
seu PIB em defesa, em despesas militares."
·
Gatilhos
e oportunismo
Além dos fatores de
caráter estrutural e de longo prazo, especialistas também afirmam que fatores
dinâmicos e eventos-gatilho costumam ter peso no início de guerras.
Entre os eventos
específicos que já geraram declarações de guerra no passado estão ataques,
assassinatos, falhas em negociações diplomáticas e até acidentes ou percepções
equivocadas sobre quais são as verdadeiras intenções dos envolvidos.
Na 1ª Guerra o
grande evento gatilho foi o assassinato do arquiduque Franz Ferdinand, herdeiro
do trono da Áustria-Hungria, em 28 de junho de 1914. Ele foi baleado por um
nacionalista sérvio que achava que a Sérvia deveria controlar a Bósnia em vez
da Áustria.
Após a morte, a
Áustria-Hungria declarou guerra à Sérvia, levando Rússia, Alemanha e
Grã-Bretanha a se envolverem, seguindo o sistema de alianças em vigor na época.
Já o estopim da 2ª
Guerra Mundial é identificado pelos historiadores como a invasão da Polônia
pela Alemanha nazista em 1º de setembro de 1939.
Esse ato de
agressão fez com que Grã-Bretanha e a França declarassem guerra contra a
Alemanha em 3 de setembro de 1939, marcando o início do conflito.
Mas segundo
Juliette Pattinson, da King's College de Londres, eventos específicos também
podem ser explorados e usados como motivo quando já existe a vontade de ir para
a guerra.
"A disposição
de ir para a guerra é um fator que não podemos esquecer", diz a historiadora.
"Antes da 1ª Guerra Mundial, por exemplo, havia uma série estrategistas
que passaram anos pensando sobre a guerra. Quando viram a oportunidade de
colocar seus planos em ação, decidiram testar."
O que o passado
sugere sobre o futuro?
Mas quais desses
fatores estão presentes na conjuntura internacional de hoje — e o que isso
significa para o nosso futuro?
Os especialistas
consultados pela BBC Brasil concordam que é difícil fazer essa avaliação
enquanto ainda estamos vivendo os eventos. Toda a análise feita sobre a 1ª e 2ª
guerras só é possível porque existe um distanciamento de tempo.
Mas os
historiadores e analistas disseram que muitos dos fatores presentes nesses dois
grandes conflitos também podem ser identificados atualmente.
Um dos pontos mais
claros é justamente o desenrolar de vários conflitos ao mesmo tempo. Além da
guerra na Ucrânia e dos confrontos no Oriente Médio, há cada vez mais disputas
territoriais no Mar do Sul da China, além de impasses em torno da independência
de Taiwan e do arsenal nuclear da Coreia do Norte.
O Sudão também
enfrenta um conflito devastador e regiões como o Sahel e o Chifre da África
sofrem com insurgências e conflitos armados.
E em todos esses
casos é possível identificar a influência das grandes alianças e potências de
hoje.
Uma das divisões
mais evidentes é entre os Estados Unidos e seus aliados ocidentais, de um lado,
e a China e a Rússia, de outro.
"Essa
cooperação mais estreita entre China, Rússia, Coreia do Norte e Irã, que vimos
particularmente em referência à guerra na Ucrânia e suprimento de armas, é uma
das coisas mais sinistras que eu diria haver nos últimos cinco anos",
opina David Stevenson, da London School of Economics.
O historiador
identifica ainda o crescimento dos sentimentos nacionalistas e imperialistas,
assim como uma tendência a querer alterar o equilíbrio de poder vigente —
especialmente por parte da Rússia e seus aliados.
O russo Vladimir
Putin e o chinês Xi Jinping, por exemplo, falam constantemente de sua
"visão para uma nova ordem mundial" e do "objetivo de formar um
mundo mais justo e multipolar".
Também não podemos
ignorar o fato de que os gastos com defesa estão subindo há alguns anos. Em
2023, por exemplo, as despesas militares mundiais cresceram 6,8%, alcançando o
maior aumento percentual desde 2009.
Os analistas
apontam, porém, a necessidade de pensar em todos os momentos da história em que
muitas dessas características também se formaram e, apesar de tudo apontar para
a possibilidade de uma guerra expandida, nada aconteceu.
Na Guerra Fria, por
exemplo, além de todos os demais fatores, os historiadores identificam diversos
momentos de grande tensão que poderiam ter servido como gatilhos para um
conflito armado, mas que felizmente nunca aconteceu.
A crise dos mísseis
de Cuba (quando EUA e União Soviética estiveram à beira de um conflito nuclear
pela tentativa de instalações de mísseis soviéticos em Cuba, em 1962) é apenas
um exemplo de uma situação que poderia ter saído do controle e gerado mais
violência.
"É muito
difícil avaliar e mensurar a seriedade do risco atual, mas diria que existe um
risco plausível", afirmou Richard Caplan, da Universidade de Oxford.
O especialista
destaca a situação na Ucrânia como especialmente delicada.
"A maior
preocupação é que a Rússia faça com seus outros países vizinhos o que fez com a
Ucrânia", diz Caplan, que teme que uma situação como essa possa significar
um confronto direto entre Moscou e a Organização do Tratado do Atlântico Norte
(Otan) — a aliança militar composta por 32 países, incluindo os EUA, Reino Unido,
França e Alemanha.
Já o acordo de
cessar-fogo entre Hamas e Israel foi recebidas com otimismo — mas também
cautela — pela comunidade internacional.
A situação no
Oriente Médio segue frágil e os acordos entre as duas partes que interromperam
conflitos anteriores foram, em várias ocasiões abalados por desentendimentos e
acabaram rompidos.
O cronograma e a
complexidade do cessar-fogo atual também indicam que até mesmo um pequeno
incidente pode se transformar em uma grande ameaça à paz.
O novo governo dos
Estados Unidos, com Donald Trump à frente da Casa Branca, também significa
novas incógnitas sobre o futuro das relações internacionais.
A sugestão
apresentada pelo republicano de que os Estados Unidos poderiam
"assumir o controle" da Faixa de Gaza e tomar "posse" do
território, reassentando
sua população em outro lugar, foi recebida com surpresa e repúdio.
Segundo analistas,
a proposta do presidente Trump poderá sinalizar a maior mudança na política
americana para o Oriente Médio das últimas décadas.
Ao mesmo tempo, em
seus primeiros dias no cargo, o republicano afirmou que a Rússia enfrentará
"altos níveis de taxas, tarifas e sanções" se o presidente Vladimir
Putin não acabar com a guerra na Ucrânia.
Trump mantém
antipatia expressa pela Otan e, em sua primeira passagem pela Casa Branca
colocou em prática fortes políticas pró-Israel. Seu governo também assumiu
posição linha-dura em relação ao Irã.
Tudo isso, segundo
críticos, pode causar um efeito desestabilizador, especialmente no Oriente
Médio.
Fonte: BBC News
Brasil
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