Gabriela Leite: Escola e SUS diante da
epidemia de transtornos mentais
Como os adultos, também as crianças e adolescentes
enfrentam um mau momento no que diz respeito a sua saúde mental. Em
levantamento realizado pelo Ministério da Saúde, divulgado na semana passada,
constatou-se, em 10 anos, um aumento de 1.575% no
atendimento, no SUS, de crianças entre 10 e 14 anos por sofrerem de ansiedade.
Entre os adolescentes de 15 a 19 anos, o aumento foi de 4.423% – alcançando o
número de 53.514 atendimentos em 2024, mais de seis por hora.
Mas o sistema de saúde está pronto para atender a essa
demanda? Um grupo de pesquisadores foi atrás de respostas, e sintetizou suas
conclusões em artigo recém-publicado
na revista Cadernos de Saúde Pública (CSP),
parceira editorial do Outra Saúde. Entrevistaram genitores de crianças de 3 a 16
anos que foram atendidos no serviço psicológico de uma policlínica ligada ao
SUS, em uma cidade média sudestina, que carece de uma unidade de Centro de
Atenção Psicossocial Infantojuvenil (Caps-IJ).
Entre as conquistas e dificuldades enfrentadas pelas
mães e pais, captadas pela pesquisa, chama a atenção o papel que a escola
desempenha nesse processo de entendimento de transtornos mentais. Trata-se,
segundo o artigo, de um “fenômeno contemporâneo”, que vem com “uma maior
compreensão das relações entre possíveis problemas de aprendizagem e questões
psicológicas, neurológicas e problemas no desenvolvimento”.
Em entrevista a este boletim, Iagor Brum Leitão, um dos pesquisadores responsáveis pelo
artigo, da Universidade Federal do Espírito Santo, complementa: “A escola é um
importante espaço social habitado pelas crianças e adolescentes. Por isso, além
de ser um ambiente de aprendizado, também se torna um lugar onde não só sinais
de sofrimento psíquico se expressam, mas também são percebidos”.
·
Escola e medicalização
Mas se a escola é um local importante para a descoberta
de possíveis transtornos de crianças e adolescentes, ela também pode ser, em
certos aspectos, disseminadora de uma perspectiva medicalizante. Ou seja, a compreensão de
distúrbios que podem ter origens diversas, inclusive sociais e familiares,
apenas do ponto de vista médico, “compreendidos através de uma estrutura médica
e tratados exclusivamente com intervenções médicas”, nas palavras de Iagor.
O artigo ressalta a questão: “O crescente aumento do
discurso neurocientífico na educação pode levar a uma interpretação rígida de
comportamentos desviantes de normas como sinais de transtornos, incentivando a
busca precoce por diagnósticos e intervenções médicas mesmo quando esses
comportamentos poderiam ser parte de um desenvolvimento normal ou uma resposta
contextual”.
Nesse contexto, há alguns diagnósticos que se sobrepõem
e chamam a atenção dos pesquisadores, inclusive nas entrevistas feitas na saúde
mental da policlínica. Prevalecem as suspeitas de Transtorno do Espectro Autista
(TEA) e Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). Embora seja
uma tendência que se confirma em estudos de diversos países, os autores do
artigo fazem questão de problematizar essa prevalência.
Segundo os pesquisadores, essa maior frequência de
diagnósticos pode ser consequência da “ênfase na biologia como base para esses
diagnósticos”, além da inclusão dos transtornos no mais recente Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5). Esses dois fatores
“podem estar contribuindo para uma cultura de hiperdiagnóstico e levando a um
aumento das demandas e dos encaminhamentos de crianças e adolescentes”. O
artigo frisa: essa situação pode contribuir para aumentar o estigma de pessoas com os
transtornos.
Iagor esclarece que a percepção puramente medicalizante
é equivocada: tanto a escola quanto a sociedade podem ser causadoras dos
sofrimentos psíquicos. “[Eles] não decorrem de problemas apenas no indivíduo,
na criança, no adolescente. Questões como dinâmicas familiares conflituosas,
vulnerabilidades socioeconômicas, racismo, homofobia, exposição à violência,
maus-tratos e, inclusive, o próprio ambiente escolar – seus métodos
pedagógicos, relações de poder, relações interpessoais e experiências de
pertencimento social – também impactam diretamente”, reflete o pesquisador.
E a comunidade escolar, por vezes, encontra a saída da
medicalização para esses problemas, reproduzindo lógicas de “enquadramento e
normalização” – mas isso acontece por estar inserida em uma estrutura social
mais ampla, que reforça essa tendência. É o que acrescenta Iagor: “Muitas
escolas não se sentem preparadas para lidar com a diversidade e complexidade
das questões de saúde mental, o que pode levar à percepção de que esse tipo de
demanda está além de suas funções pedagógicas”. Apelar à psiquiatria, por vezes, é o
caminho mais viável.
·
A Saúde deve tomar a
dianteira
No entanto, o artigo recusa o caminho fácil de jogar a
culpa no ensino básico. “A escola, por definição, tem o mandato da educação,
não o da saúde ou da saúde mental […] ainda que não possa se furtar da
responsabilidade de ser também espaço de [sua] promoção”, frisa Iagor. A
questão é que o ambiente escolar não está preparado para lidar com essa onda de
transtornos mentais, que gera uma grande demanda do sistema de saúde.
“O fortalecimento da relação entre escolas e serviços
de saúde mental infantojuvenil requer um esforço conjunto”, discute o artigo.
Mas, segundo seus autores, é responsabilidade da Saúde fazer esse movimento.
Para Iagor, muitas vezes os serviços de atendimento também agem de forma
reducionista, “sem se articular com a escola ou compreender melhor o seu
contexto”, ou, em outras palavras, “sem fortalecer um laço de
corresponsabilização”.
Na opinião do pesquisador, a escola não deve ser apenas
um local de encaminhamento, mas que seja capaz de ela própria ser espaço para
“acolhimento, reflexão, promoção de saúde, de pertencimento e reconhecimento
social”. Para estreitar a relação entre o ambiente escolar e os serviços de
saúde, estes precisam ter um papel proativo para, por exemplo, oferecer
“espaços de diálogo e de qualificação não verticalizada para educadores”.
Iagor sugere ações baseadas na “intersetorialidade,
corresponsabilização, fortalecimento de vínculos e aproveitamento dos recursos
e características do território”. Ele exemplifica algumas possibilidades:
promoção de fóruns sobre saúde mental infantojuvenil, rodas de conversas com
estudantes ou familiares, projetos integrados entre UBSs e escolas e grupos
terapêuticos. Mas construir um olhar ampliado sobre a saúde mental e buscar
respostas para além da medicalização só será possível com investimento e
articulação, alerta ele.
·
UBSs devem ser mais que
centros de encaminhamento
Além da questão das escolas no atendimento de crianças
e adolescentes que enfrentam sofrimento psíquico, também as Unidades Básicas de
Saúde (UBS) precisam estar melhor preparadas. Este é um alerta que os
pesquisadores fazem a partir das experiências recolhidas nas entrevistas que
realizaram. Eles perceberam um papel “menos ativo” dos postos de saúde no
cuidado direto dos jovens.
É inegável que haja uma escassez de profissionais
diretamente ligados à saúde mental nas UBSs. Esse é um elemento que foi
percebido também nas entrevistas feitas no estudo, e essa falta traz efeitos
significativos. Mas os pesquisadores alertam: os postos de saúde precisam fazer
muito mais do que o simples encaminhamento para especialistas.
Trata-se, segundo eles, de “uma falta de compreensão
por parte das equipes sobre sua capacidade de conduzir atividades relacionadas
ao cuidado em saúde mental infantojuvenil”. Iagor completa: “Como serviços da
Atenção Básica, são projetados como uma porta de entrada preferencial do SUS,
pois estão inseridas nos territórios e próximas às famílias”, ou seja, é
possível ir além do tratamento por especialistas de forma individual.
O pesquisador dá exemplos de experiências que
demonstram esse potencial, como o de uma UBS que realizou oficinas de massagens
para bebês e rodas de conversa sobre saúde mental infantil. Uma outra unidade,
que estabeleceu parceria com profissionais de educação física e lideranças
comunitárias, “criou atividades esportivas para crianças e adolescentes em
situação de vulnerabilidade”.
“Então o cuidado envolve, além das ações de
‘tratamento’, as de acolhimento, escuta ativa, promoção à saúde, atividades em
grupo, orientação familiar, ações territoriais e intersetoriais, discussões em
equipe sobre casos, bem como toda uma construção de pertencimento, de lugar
social positivo”, completa Iagor. São ações, lembra ele, que não necessitam de
profissionais de psicologia ou médicos para serem realizadas.
¨ COP-30: o que propor para a saúde da
Amazônia. Por Túlio Batista Franco
Em novembro de 2025, será realizada no Pará a 30ª
Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30). Trata-se de um
encontro anual que reúne líderes mundiais, cientistas, representantes de ONGs,
empresas e outros grupos interessados na questão, para discutir e tomar
decisões sobre questões relacionadas às mudanças climáticas. No Brasil, é
imperativo que inclua representantes de todas as comunidades tradicionais da
Amazônia, os Povos-Floresta .
Lamentavelmente, nem mesmo um evento da magnitude da
COP30, que tem como foco principal a promoção de políticas e ações para reduzir
emissões de gases de efeito estufa, adaptar-se às mudanças climáticas,
financiar ações climáticas e proteger a biodiversidade, entre outros tópicos –
ou seja, tentar “adiar o fim do mundo”, como nos diz Krenak –, foi capaz de
arrefecer a política colonialista e de invisibilização do governo do Pará para
com as comunidades tradicionais, inclusive os povos indígenas.
Tem causado grande indignação em amplos setores o fato
de que a Secretaria de Estado de Educação do Pará (Seduc) tenha aprovado no
final do ano passado a Lei 10.820/2024, que alterou a
carreira do magistério no estado e abriu caminho para a troca do ensino
presencial por educação à distância (EAD) em escolas de áreas remotas,
incluindo comunidades indígenas. A nova lei não considera a cultura oral dos
indígenas, onde muitos se comunicam no idioma do seu povo, e as interações pela
oralidade são fundamentais para o processo de aprendizagem. Reivindicando a
revogação desta Lei, representantes de diversos povos indígenas têm ocupado a
Seduc em Belém desde janeiro de 2025, exigindo a revogação da lei e a
exoneração do secretário de educação.
Parafraseando Krenak, “a COP30 já começou”, com a
mobilização dos indígenas contra a invisibilidade, pelo compartilhamento de
decisões, transparência, e o seu direito à educação com qualidade. E esta é a
questão fundamental: a COP30 deverá incluir os povos-floresta, entre eles os
indígenas, nas discussões da Cúpula do Clima. Isto significa incluir na
Conferência o acumulado de milhares de anos em que este povo tem de
conhecimento da região, por habitar a Amazônia e com ela conviver. Neste
contexto, além do clima, é importante discutir diversas questões que afligem os
povos que moram na floresta, como por exemplo, o acesso a serviços de saúde.
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Os desafios enfrentados pelos povos indígenas
De acordo com o Censo Demográfico de 2022 do IBGE, a
população indígena na Amazônia Legal, que inclui estados como Amazonas, Acre,
Rondônia, Roraima, Pará, Maranhão, Amapá, Tocantins e Mato Grosso, é de
aproximadamente 867.919 pessoas. Isso representa cerca de 51,2% da população
indígena total do Brasil, que é de 1,7 milhão de pessoas.
A Amazônia Legal é a região com a maior concentração de
indígenas no país. O estado do Amazonas, por exemplo, tem a maior população
indígena, com cerca de 490.9 mil, o que representa 29% do total do Brasil.
Os povos indígenas da Amazônia falam mais de 180
línguas diferentes, pertencentes a diversas famílias linguísticas. Essa
diversidade é um testemunho da riqueza cultural da região. Cada povo possui
suas próprias tradições, cosmovisões e práticas de manejo ambiental, que
contribuem para a conservação da biodiversidade.
As comunidades indígenas enfrentam enormes problemas,
como as ameaças a seus territórios, feitas principalmente pelo avanço do desmatamento,
garimpo ilegal, agropecuária e grandes obras de infraestrutura (como estradas e
hidrelétricas), que colocam em risco os territórios e os modos de vida dos
povos-floresta, inclusive indígenas; a falta de reconhecimento, isto é,
uma certa invisibilização pelo poder público, que se soma ao fato de que muitas
comunidades ainda lutam pela demarcação de suas terras, um processo que
enfrenta resistência política e econômica; a precariedade da saúde e
educação, serviços em que ainda há dificuldades de acesso e são limitados em
muitas comunidades, agravando desigualdades e vulnerabilidades; e, claro,
as mudanças climáticas, que causam devastadores impactos ambientais, como
secas prolongadas e incêndios florestais, que afetam a toda população da floresta.
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Um programa de cuidados intermediários para os HPPs
No que se refere ao acesso a serviços de saúde, uma boa
solução se encontra na possibilidade de otimizar uma espetacular rede já
existente, de Hospitais de Pequeno Porte (até 50 leitos), amplamente difundidos
principalmente em pequenos municípios, garantindo alta capilaridade nos
territórios. Hoje eles são subutilizados, menos de 30% da sua capacidade
operacional.
É o que busquei discutir em contribuição para o
livro A Saúde Coletiva na Amazônia (que
pode ser baixado gratuitamente): “De acordo com o
Ministério da Saúde, na Região Norte do Brasil há 435 HPP’s que disponibilizam
9.292 leitos, equivalente a 71,8% do total de hospitais na região, sendo que
destes 303, detendo 7.071 leitos, representando 63,9% do total, pertencem à
Rede SUS (CNES, 2019). O paradoxo com o qual lidamos neste contexto, diz respeito
ao fato de que embora necessitando de equipamentos e recursos na rede de saúde,
estes hospitais apresentaram uma taxa de ocupação de apenas 23% para o ano de
2018 (SIH/SUS, 2018). Ao mesmo tempo consomem a maior parte dos recursos da
saúde nos pequenos municípios”.
O que se propõe é que essa rede de HPPs pode muito bem
abrigar um Programa de Cuidados Intermediários, que se situa entre a Atenção
Básica e Hospitalar, conectado aos serviços de referência nos territórios, Rede
Básica, o que aumenta sua capacidade de atendimento, e oportuniza produzir um
cuidado territorial robusto, resolutivo, operando de forma compartilhada com as
medicinas tradicionais indígenas, e de outros povos que habitam a floresta.
Tudo isto com participação comunitária, como é da tradição do SUS.
Esse debate deve compor a pauta política da COP30, como
soluções viáveis de organização da rede de serviços públicos, de baixo
investimento e alto impacto, porque vai utilizar-se de uma rede já existente
para implantação.
Colocamos aqui essas questões como disparadoras de um
debate necessário e urgente, no âmbito da saúde, e das questões que afligem as
comunidades amazônicas, em especial os indígenas, diante de uma oportunidade
importante de intervenção na região, como a COP30.
Fonte: Outra Saúde

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