Estivadores relatam turnos
dobrados e acidentes não registrados em Santos
Erguer longas barras de
metal fazia parte do trabalho de Rui Mateus de Almeida Júnior, estivador no
porto de Santos (SP), o maior do país. Ele atuava na peação – a fixação de
contêineres nos navios para evitar deslocamentos em alto-mar. Demitido após
lesionar as duas mãos, Rui enfrenta dificuldades para realizar tarefas simples
e contesta a forma como foi dispensado da empresa.
Rui afirma ter sido vítima
de uma fraude trabalhista da sua ex-empregadora, a Santos Brasil, alegando que
a companhia não reconheceu as lesões como acidente de trabalho e lhe negou a
estabilidade de um ano no emprego. “Eu perdi a força. Se eu pegar um copo
assim, ele escapa da minha mão e eu não sinto”, conta Rui sobre as sequelas que
carrega há quatro anos e limitam sua capacidade profissional.
Assim como ele, outros
estivadores e o sindicato da categoria ouvidos pela Repórter Brasil descrevem uma rotina de risco no porto de Santos, onde a intensa
carga de trabalho e a realização de “turnos dobrados”, com até 12 horas de
duração, são comuns. Apesar da exigência de medidas de segurança, há relatos de
que elas nem sempre são seguidas da forma adequada pelas operadoras dos
terminais.
A ocupação de estivador é a
segunda com mais mortes decorrentes de trabalho no município de Santos, segundo
dados mais recentes da plataforma SmartLab, iniciativa do MPT (Ministério Público do Trabalho) e da OIT
(Organização Internacional do Trabalho) que compila informações oficiais do
INSS (Instituto Nacional do Seguro Social).
Foram quatro óbitos entre 2012
e 2022, atrás apenas da categoria “ajudante de motorista”, com cinco. A
estatística não inclui a mais recente vítima: Cláudio Robert do Nascimento
Nusa, de 49 anos, 17 deles como estivador.
Funcionário da Ecoporto, ele
morreu em janeiro deste ano após ser atingido e arremessado no porão de um
navio por uma carga de madeira. Procurada pela reportagem, a empresa não
respondeu até o fechamento da matéria. O texto será atualizado, se um
posicionamento for enviado.
Já o número total de
acidentes de trabalho com estivadores em Santos oscilou entre 2012 e 2022, com
subidas e descidas ao longo do período. Em nível nacional, os dados apontam uma
tendência de queda, com redução de 50% em dez anos.
Para Bruno José dos Santos,
presidente do Sindestiva (Sindicato dos Estivadores de Santos, São Vicente,
Guarujá e Cubatão), até houve melhorias nas condições de trabalho na última
década , com cursos de formação e atualizações da NR 29, uma norma regulamentadora do governo federal sobre o trabalho portuário.
Entretanto, ele diz que os
dados sobre acidentes são “contestáveis” e denuncia uma suposta “maquiagem dos
números” por parte das empresas, que não emitiriam CAT (Comunicação de Acidente
de Trabalho) para todos os casos.
O dirigente diz que os
riscos não decorrem apenas dos acidentes em si, como batidas e quedas de carga,
mas de uma série de outros problemas, como turnos dobrados, lesões por esforço
repetitivo, doenças mentais e assédio moral.
“Os estivadores movimentam
de uma a duas toneladas a cada período de seis horas. Depois de três, quatro
anos, eles têm lesões nos tendões, nas costas, nos joelhos, em todas as
articulações do corpo”, continua.
Por meio de nota, a Santos
Brasil refuta as acusações e afirma que a função de estivador em um terminal de
contêineres “está estritamente atrelada às atividades de peação e despeação a
bordo do navio, e que toda a movimentação de contêineres é realizada por meio
de guindastes, com tecnologia de ponta”.
A nota diz ainda que a
abertura da CAT ocorre quando o evento é classificado como acidente de trabalho
por profissionais técnicos da área de saúde ocupacional da empresa, “nos termos
da legislação vigente, não havendo espaço para ingerências de qualquer
ordem”.
<><> Ação na
Justiça movida por sindicato aponta perseguição a trabalhadores
Em 2023, o Sindestiva entrou
com uma ACP (ação civil pública) na Justiça do Trabalho contra a Santos Brasil,
com depoimentos de funcionários da empresa sobre os riscos enfrentados. As
operações de movimentação de contêineres por guindastes, por exemplo, estariam
sendo feitas com equipes reduzidas, sem estivadores em todas as posições
necessárias.
Outros depoimentos incluídos
no processo indicam que o trabalho de peação também ocorreria de forma
irregular, sem o uso de equipamentos adicionais, como cesto suspenso e gaiola,
que dão mais segurança quando a operação ocorre em alturas maiores. “Todo esse
sobrepeso suportado pelos trabalhadores tem gerado inúmeros problemas físicos
e, consequentemente, acidentes de trabalho”, afirma um trecho da ação.
Ainda segundo o documento, a
empresa teria passado a assediar moralmente os estivadores que cobravam o
cumprimento das normas de segurança, aplicando advertências a oito deles. O
pedido judicial, que ainda não foi analisado pela Justiça, pede o cumprimento
das normas de segurança e a anulação de sanções disciplinares.
Segundo os trabalhadores
ouvidos pela reportagem, é comum “dobrar o expediente”, o que expõe estivadores
a acidentes. Os contratos de trabalho preveem geralmente a escala 6×2 (seis
dias de trabalho com duas folgas na sequência), em jornadas de, teoricamente,
seis horas. “Mas quase todo dia dobram o turno”, afirma Rui.
“O cara quer dobrar por
causa da renda. Aí ele não quer saber se está cansado”, confirma outro
estivador, funcionário da Santos Brasil, ouvido sob sigilo pela reportagem.
“Para a empresa é bom, porque não vai pagar outro plano de saúde e outros
encargos sociais, só vai dar um aumento no salário”, explica.
“O acidente está por todo
lado, a toda hora, porque tudo no navio é de ferro. Se escorregar aqui e cair
de costas, ou bater o joelho, vai bater em algo de ferro”, conta o trabalhador.
“E, se acontecer, [vão dizer que] não é nada, vão mandar você continuar
trabalhando, mesmo com sangue, joelho inchado.”
Questionada, a Santos Brasil
nega as denúncias, diz ser uma referência em operações portuárias seguras e
cumprir todas as normas de segurança e a legislação trabalhista. “A Santos
Brasil repudia qualquer alegação de atuação negligente para com seus
funcionários e reitera sua conduta ética e transparente e em consonância e
observância da legislação do trabalho”, diz a nota.
A empresa foi questionada
sobre as dobras de expediente e a suposta adoção de equipes reduzidas nas
atividades, mas não respondeu sobre essas perguntas específicas (leia na íntegra).
Atualmente, a Santos Brasil
passa por um processo de transição societária bilionária. Uma fatia de 48% da empresa –
pertencente ao grupo Opportunity, do banqueiro Daniel Dantas – foi vendida em
setembro do ano passado por R$ 6,3 bilhões para o grupo francês CMA CGM, uma
das maiores operadoras globais de portos. A venda está sob análise do Cade
(Conselho Administrativo de Defesa Econômica).
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Subnotificação de acidentes
Um dos problemas mais
destacados pelos trabalhadores é a subnotificação de acidentes. Eles afirmam
que nem todos os casos são comunicados às autoridades, como manda a lei, o que
dificulta o acesso a direitos trabalhistas e previdenciários.
A CAT é um documento enviado
ao INSS que reconhece um trabalhador como vítima de um acidente de trabalho, de
trajeto ou de uma doença ocupacional. A empresa é obrigada a fazer o registro
até o primeiro dia útil após o incidente. Se o empregador não cumprir a
obrigação, o próprio acidentado pode cadastrar a CAT, assim como seus
dependentes, sindicatos, médicos e autoridades.
Sem esse documento, fica
mais difícil para o trabalhador acessar no INSS o auxílio-doença acidentário –
o benefício tem vantagens em relação ao auxílio-doença comum, como a
obrigatoriedade de recolhimento do FGTS durante o período de afastamento e a
estabilidade de 12 meses no emprego após o retorno.
A rigor, a inexistência da
CAT não impede a obtenção dos benefícios, mas dificulta o processo, explica a
procuradora Cirlene Zimmermann, do MPT.
“Quando a CAT é aberta pela
empresa, ela já assume que o acidente de fato aconteceu e que está relacionado
ao trabalho. Quando não é aberta pela empresa, evidentemente vai passar por uma
investigação mais aprofundada [pelo INSS] para verificar se há relação [do
acidente] com o trabalho”, diz a procuradora, responsável pela Codemat
(Coordenadoria Nacional de Defesa do Meio Ambiente do Trabalho e da Saúde do
Trabalhador e da Trabalhadora do MPT).
“Esse documento faz parte do
processo de reconhecimento de um acidente ou adoecimento relacionado ao
trabalho. A partir dele, se inicia um processo de revisão das medidas de
prevenção necessárias naquele ambiente, que de algum modo falharam, a ponto de
acidentar ou adoecer o trabalhador”, continua.
Atualmente, a Santos Brasil
mantém relações e acordos coletivos com todos os sindicatos que representam
outras categorias de funcionários da empresa, com exceção do Sindestiva,
proibido de entrar na companhia.
“Nessa época de ESG que todo
mundo fala, e a parte social, cadê? A parte de proteger os trabalhadores, a
comunidade? Não tem proteção nenhuma. Eles não querem nem assinar acordo”,
contesta o presidente do sindicato.
“A ausência de acordo
coletivo com determinado sindicato não interfere na fiscalização das condições
de trabalho da empresa, uma vez que esta responsabilidade cabe aos entes
estatais como Ministério Público do Trabalho, Delegacia Regional do Trabalho,
Autoridade Portuária etc”, diz a nota da empresa.
Para o MPT, a subnotificação
é “sempre um problema”, “em qualquer setor econômico”, e “para todo o sistema
público de saúde”. “Sem os números reais, há limitação para formulação de
políticas públicas que combatam o problema”, segundo nota da assessoria do
MPT.
A Procuradoria informou que
realiza ações de fiscalização preventivas, mesmo sem receber denúncia, para
verificar as condições de trabalho de empresas portuárias e navios. “Achando
irregularidades, o MPT trabalha para que sejam corrigidas sem que precise
ajuizar ação. E sempre encontra”, diz a nota.
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Movimentação de carga nos portos brasileiros cresceu 40% em uma década
A falta de segurança
relatada pelos trabalhadores ocorre em um momento de franca expansão do setor portuário
brasileiro, que movimenta 95% do comércio internacional (exportações e importações).
Atualmente existem 259 terminais portuários no país, segundo o Cade, sendo 223 de uso privado e 36 públicos
(também chamados de “portos organizados”). Há dez anos, o sistema contava
com 160 no total: 126 privados e
34 públicos.
Nesse período, o volume de
carga transportada aumentou 40%, saltando de 931 milhões de toneladas de
mercadorias, em 2013, para 1,3 bilhão de toneladas em 2023, segundo a Antaq
(Agência Nacional de Transportes Aquaviários).
Em termos financeiros, as
exportações também cresceram 40% no período, saindo de US$ 242 bilhões para US$
339 bilhões (quase R$ 2 trilhões, em valores atuais), segundo o Mdic
(Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços).
O complexo portuário de
Santos responde por 13% das cargas movimentadas no país, mas em valores
financeiros a participação chega a 29%.
Já o número de estivadores
ativos caiu 15%. Em 2013, eram 35 mil trabalhadores (17 mil celetistas e 18 mil
avulsos). Em 2023, o total caiu para 30 mil (9,7 mil celetistas e 20,3 mil
avulsos). Os dados foram levantados pelo Dieese (Departamento Intersindical de
Estatística e Estudos Socioeconômicos), a pedido da Repórter Brasil, com base na RAIS (Relação Anual de Informações Sociais), do Ministério
do Trabalho e Emprego.
Em 2013, a Lei dos Portos permitiu
aos terminais privados a contratação de trabalhadores com carteira assinada, e
não mais apenas como avulsos.
A modalidade de contratação
avulsa é permitida tanto para os terminais privados como públicos. Os serviços e
escalas de trabalho são coordenadas pelos Ogmos (Órgão Gestor de
Mão-de-Obra).
Financiado pelas empresas,
os Ogmos têm a função não só de recrutar e pagar, mas também de treinar as
pessoas que atuam no carregamento de mercadorias nos navios. Os trabalhadores
portuários têm a liberdade de escolher se querem ou não pegar a diária. Por
essa razão, são chamados de “avulsos”.
Apesar de não ter vínculo
empregatício formal com nenhuma das diversas empresas que operam em um porto, o
avulso recebe todos os direitos trabalhistas, de forma proporcional aos dias de
serviço. O cálculo é feito e pago pelo Ogmo.
Os trabalhadores apontam
vantagens na modalidade avulsa, por poderem escolher os dias de descanso e
alternarem as funções exercidas, variando entre os trabalhos mais pesados e os
de menor esforço. Com carteira assinada, os estivadores relatam exercer a mesma
função diariamente, o que pode acarretar mais danos à saúde, caso o serviço
demande mais força, como é o caso da peação.
Fonte: Repórter Brasil
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