O surpreendente
motivo pelo qual o sabor da sua cerveja está mudando
O sabor da cerveja
é criado por uma sinfonia complexa de compostos químicos de três ingredientes:
lúpulo, levedura e cevada maltada.
Mas, agora,
as mudanças climáticas estão
ameaçando a produção de dois deles: a cevada e o lúpulo.
Mirek Trnka,
pesquisador da Academia de Ciências do Instituto de Pesquisa de Mudanças
Globais da República Tcheca, e seus colegas afirmam que as culturas
tradicionais das quais as cervejarias dependem para fabricar cerveja — chamadas
de lúpulos nobres — vão se tornar "mais difíceis de cultivar".
A pesquisa de Trnka
mostra que a produção de lúpulos nobres diminuiu 20% desde a década de 1970 em
algumas das maiores regiões produtoras de lúpulo da Europa.
Os ácidos alfa são
o principal composto do lúpulo nobre que confere à cerveja seu sabor amargo
característico, e o estudo de Trnka conclui que os níveis de ácidos alfa vão
diminuir em 31% até 2050.
Será que a cerveja
está enfrentando uma crise existencial? Há algo que possa ser feito para
garantir seu sabor no futuro?
A cerveja, uma das
bebidas favoritas no mundo e a bebida alcoólica mais popular em termos de
volume, faz parte da sociedade desde que a humanidade descobriu a agricultura.
Evidências de
bebidas alcoólicas fermentadas à base de grãos foram encontradas em lugares tão
distantes quanto Jiahu, um sítio arqueológico neolítico na China que data de
pelo menos 5700 a.C., e em sociedades andinas pré-colombianas, como a cultura
Moche, do século 2 ao 8 d.C.
No Oriente Próximo,
textos e selos cuneiformes da Mesopotâmia retratam a cerveja sendo consumida.
Na verdade, há evidências da fabricação de cerveja em todos os continentes do
mundo antigo.
Quer se tratasse de
milho, arroz ou cereais, os primeiros agricultores aprenderam que a fermentação
de grãos poderia produzir uma bebida com efeitos intoxicantes.
A cerveja era
tratada como um "lubrificante social" para as pessoas no mundo
antigo, assim como é nos pubs e bares ao redor do mundo atualmente.
·
Revolução
Industrial
Inicialmente, o
lúpulo era adicionado como conservante, não como aromatizante.
"Descobriu-se
durante a Idade Média que o lúpulo adicionava um benefício antimicrobiano à
cerveja, impedindo que ela estragasse de forma a azedar, o que aumentava o
prazo de validade", explica Thomas Shellhammer, professor de ciência da
fermentação na Universidade Estadual do Oregon, nos EUA.
Antes da Revolução
Industrial e da introdução de fornos e tonéis de aço inoxidável, o lúpulo era
secado no fogo, o que também conferia um forte sabor defumado à cerveja,
acrescenta Shellhammer.
Só foi possível
desenvolver cervejas lupuladas leves do tipo lager após a Revolução Industrial,
e o uso generalizado do aço.
O malte tem aroma e
sabor doce, portanto o lúpulo é fundamental para equilibrar essa doçura com seu
sabor amargo.
"O sabor
aromático do lúpulo se tornou tão importante quanto outros elementos, em vez de
ser apenas funcional para o processo de fabricação da cerveja."
Estas primeiras
cervejas teriam sido mais fracas em termos de álcool, e altamente variáveis em
sabor.
No início da
fabricação da cerveja, um "universo de ervas e especiarias", além do
lúpulo, era usado como aromatizantes e conservantes alternativos, incluindo
flores de urze, brotos de abeto, sálvia, alecrim e zimbro.
As propriedades
antimicrobianas são criadas por alguns compostos do lúpulo chamados ácidos alfa
e ácidos beta, que também são a fonte do sabor amargo da cerveja.
"Durante a
fase de ebulição, os ácidos alfa isomerizam [mudam de forma], se transformando
em outro composto, e essa reconfiguração química os torna mais amargos",
diz Shellhammer.
Cervejas muito
amargas, como as Indian Pale Ales (IPAs), são feitas a partir de lúpulos com
alto teor de ácidos alfa para acentuar o sabor amargo.
A popularidade do
lúpulo realmente disparou após a Revolução Industrial, diz Trnka, porque o
perfil de sabor se destacou em cervejas mais claras e leves.
A consistência com
que as cervejarias podiam fabricar cervejas saborosas com lúpulo fez com que
essa cultura ficasse à frente de outros aromas em termos de popularidade.
·
Tentativa
de solução tecnológica
Em nenhum outro
lugar as cervejas mais leves decolaram tanto quanto na Europa Central,
especialmente nas regiões que hoje fazem parte da República Tcheca, Eslováquia
e Alemanha, onde o estilo lager foi inventado.
Os lúpulos
cultivados ali, chamados de lúpulos nobres, se tornaram muito apreciados por
dar às lagers seu sabor característico.
"Esta é uma
indústria relativamente tradicional", diz Trnka.
"Você obtém
uma premium se cultivar esses lúpulos nobres, essas variedades antigas,
especialmente na República Tcheca, onde isso faz parte de 100 anos de
tradição."
A pesquisa climática
de Trnka e seus colegas se concentrou em variedades nobres de lúpulo.
O aumento das
temperaturas causado
pelas mudanças climáticas antecipou o início da estação de cultivo do lúpulo
nobre na Alemanha e na República Tcheca em 13 dias entre 1970 e 2018, e o
amadurecimento foi antecipado em 20 dias.
As projeções de
Trnka sugerem que, até 2050, a produção de lúpulo nobre vai diminuir entre 4,1%
e 18,4% em comparação com de 1989 a 2018, acompanhada por uma queda semelhante
no teor de ácido alfa, devido ao aumento das temperaturas e às secas mais
frequentes.
Embora alguns
efeitos das temperaturas mais altas e das secas possam ser superados com a
irrigação, diz Shellhammer, em temperaturas muito altas, em torno de 46°C, as
plantas param de crescer, e algumas doenças se desenvolvem em temperaturas mais
altas.
"Mas, se
quisermos cultivar o mesmo lúpulo que nossos antepassados cultivavam no século
19, ou até mesmo antes, esses lúpulos nobres que são tão apreciados para as
lagers leves, pelas quais a República Tcheca é tão famosa, há maneiras de nos
adaptarmos", diz Trnka.
Os produtores de
lúpulo têm algumas opções: transferir o lúpulo para áreas com lençóis freáticos
mais altos, por exemplo, em vales ou perto de córregos, onde a água é mais
facilmente absorvida pelas raízes das plantas; adicionar irrigação por
gotejamento; ou mudar para variedades mais resistentes ao clima.
Todas essas
estratégias foram comprovadamente bem-sucedidas na fabricação de vinho, uma vez
que a vinicultura também está ameaçada pelas mudanças climáticas.
De certa forma,
observa Shellhammer, os fabricantes de cerveja têm mais sorte do que os
produtores de vinho, que dependem apenas de um ingrediente — a uva —, à medida
que podem ajustar a levedura, o malte e o lúpulo para aperfeiçoar o sabor.
Mas nem todas essas
soluções vão ser fáceis de implementar, adverte Chuck Skypeck, diretor técnico
de projetos de fabricação de cerveja da Brewers' Association nos EUA.
A irrigação é mais
comum na América do Norte do que na Europa, e sua introdução é cara, segundo
ele. Trocar de variedade também é algo que é mais fácil falar do que fazer. O
lúpulo é uma cultura perene, o que significa que a planta permanece no solo o
ano todo.
Assim como outras
culturas perenes, como de café ou uva, mudar de variedade exigiria a escavação
de toda a planta, diz ele. A troca de variedades de grãos é muito mais fácil,
pois a cada ano novas culturas são semeadas a partir de sementes.
Mas Shellhammer
acredita que a troca de variedades de lúpulo pode resultar em apenas alguns
anos de redução na produção.
"No noroeste
dos Estados Unidos, conversei com produtores que disseram que poderiam trocar
uma cultura e obter cerca de 75% da produção no primeiro ano", diz ele.
"No caso das
uvas do vinho, você precisa esperar que uma videira inteira cresça e produza —
então é uma empreitada de vários anos."
Skypeck acrescenta
que os programas de melhoramento em vigor na América do Norte e em todas as
principais regiões produtoras de lúpulo estão focados em desenvolver novas
variedades para alterar sabores e aromas, e encontrar variedades que se adaptem
melhor às condições climáticas em constante mudança.
Essas adaptações
incluem estruturas de raízes mais profundas e densas que são mais resistentes à
seca.
Essas novas
variedades estão se mostrando populares entre cervejarias artesanais e
fabricantes de Bitters e Ales.
"Isso
impulsionou muito o movimento da cerveja artesanal e independente nos
EUA", diz ele.
Novas variedades de
lúpulo estão sendo criadas para serem mais resistentes às mudanças climáticas,
de acordo com Skypeck. Mas o desenvolvimento de uma nova variedade de lúpulo do
zero até a produção plena pode levar até 10 anos.
Por exemplo, uma
nova variedade experimental pode apresentar maior resistência ao calor, mas
ainda pode exigir uma quantidade semelhante de água, diz ele.
"Os
fabricantes de cerveja também adotam abordagens diferentes. As cervejarias
artesanais dos EUA raramente usam apenas uma variedade de lúpulo em suas cervejas
— mas, sim, camadas de diferentes sabores e aromas para criar o caráter
diferenciado encontrado em muitas cervejas artesanais. Por outro lado, as
cervejarias alemães tradicionais, mais conservadoras, podem relutar em adotar
novas variedades porque não querem mudar as características das suas cervejas,
que têm sido consistentes há anos."
Christian Ettinger,
fundador da Hopworks Urban Brewery em Portland, nos EUA, diz que uma de suas
cervejas típicas pode conter entre duas e cinco variedades diferentes de
lúpulo, o que oferece à cervejaria a possibilidade de ajustar a receita para
levar em conta as mudanças na colheita.
"Selecionar
lúpulos e fazer previsões é difícil, e exige que você analise planilha por
planilha, ajuste suas receitas e observe seus volumes gerais", ele
explica.
A escassez de água
é um dos principais fatores que contribuem para a baixa produção nos EUA, o que
aumenta o custo do lúpulo, segundo Ettinger.
"A cerveja tem
sido a bebida alcoólica mais popular [no mundo] há 9 mil anos, e parte disso se
deve à sua disponibilidade e preço acessível. Cabe a nós, como cultivadores,
garantir que ela continue sendo acessível."
Ettinger fabrica
cerveja há 30 anos e, neste período, viu como a indústria se ajustou às
mudanças climáticas introduzindo técnicas agrícolas regenerativas, como o
cultivo de cobertura — que envolve o cultivo de outras culturas entre as
plantas de lúpulo para erradicar ervas daninhas, reduzir a erosão e melhorar a saúde
do solo —, e o biochar — que é a adição de matéria orgânica rica em carbono
para melhorar a retenção de água no solo.
"A parte
bonita da sustentabilidade é que você está tentando minimizar sua pegada,
porque isso é melhor para o planeta, e é mais barato — isso te torna mais
eficiente e economicamente competitivo."
Uma tendência
recente nos EUA são as "cervejas de lúpulo fresco", que são
produzidas com lúpulos que celebram a singularidade da colheita daquele ano,
diz Skypeck.
"Há
consumidores que estão interessados em experimentação e variedade."
Quer os
consumidores adotem uma paleta mais variada de cervejas ou se mantenham fiéis
às conhecidas lagers, "não vai ser o fim do mundo", afirma Trnka.
"Ainda vamos
conseguir fabricar cerveja."
Fonte: BBC Future
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