Mercado de carbono beneficiará os
povos tradicionais?
A convocação de Darysa Yanomami ecoa clara e forte:
“Quero que vocês, brancos, escutem minhas palavras e defendam nossa floresta”.
Uma das autoras do livro Diários Yanomami:
Testemunhos da destruição da floresta, Darysa fez o pedido durante o lançamento
da obra, em julho do ano passado.
Maior floresta tropical do planeta, a Amazônia é muito
procurada por desenvolvedores de projetos de carbono. Não à toa. Eles buscam se
instalar no território justamente por causa das árvores, que têm alto potencial
de armazenamento de carbono. Mas, assim como o Brasil não era “terra virgem”
quando os europeus desembarcaram na costa, o bioma amazônico é lar de muitas
comunidades, que somam mais de 28 milhões de habitantes e que nem sempre têm
seus direitos e modos de vida respeitados diante da corrida pelo “novo ouro”, o
carbono.
Em dezembro de 2024, o presidente Luiz Inácio Lula da
Silva sancionou a lei que cria o Sistema Brasileiro
de Comércio de Emissões (SBCE). O mercado regulado de carbono estabelece regras
de compensação para os setores que mais emitem gases de efeito estufa (GEE) e
vincula a necessidade de cumprimento das salvaguardas socioambientais, mas
deixou o agronegócio de fora. Sozinho, o setor
é responsável por 74% das emissões, de acordo com pesquisa realizada
pela plataforma Sistema de Estimativa de Emissão de Gases Estufa (SEEG) e
divulgada pelo Observatório do Clima em novembro. Esse percentual engloba as
emissões de metano pelos animais e as mudanças de uso da terra.
“Como o setor agropecuário foi excluído das obrigações
que a lei instituiu, principalmente em relação à limitação das emissões,
seguirá agindo como atualmente, o que gera pressão em alguns territórios tradicionais
em relação a desmatamento e grilagem, por exemplo, afetando diretamente o dia a
dia das comunidades”, afirma Ciro Brito, analista sênior de Políticas do Clima
no Instituto Socioambiental (ISA).
Os modos de vida das comunidades tradicionais integram
o conceito das salvaguardas socioambientais. Elas são ações que se propõem a
monitorar os riscos e evitar o impacto negativo de investimentos públicos ou
privados aos ecossistemas e às comunidades locais, povos indígenas e populações
tradicionais. As partes interessadas, em particular povos indígenas e
comunidades locais, devem ter participação plena e efetiva na elaboração de
projetos de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (REDD+)
em seus territórios.
As salvaguardas foram propostas durante a COP16 de
2010, em Cancún. Desde então, os desenvolvedores de projeto de carbono precisam
identificar e abordar potenciais impactos ambientais e sociais negativos como
parte de uma avaliação de risco detalhada antes de iniciar o projeto. O problema
é que, na prática, isso nem sempre acontece.
Há diversos casos de violações das salvaguardas
socioambientais em projetos de carbono. O Joio já publicou relatos nas
reportagens da série Faroeste Carbono e em outras,
como a denúncia de um projeto em um território quilombola em
Abaetetuba, no Pará, em que a empresa Amazon Carbon não consultou as comunidades
antes de iniciar o projeto, tendo seguido em frente sem o aval de boa parte das
famílias.
O ponto de partida para a garantia das salvaguardas é a
consulta livre e previamente informada das comunidades, prevista pela
Organização Internacional do Trabalho (OIT). A nova lei estabelece que essa
consulta precisa ser feita nos termos do plano de consulta local, quando
houver, e que a comunidade não pode arcar com os custos desse processo.
O que se vê em muitos projetos hoje é a supressão dessa
etapa por parte dos desenvolvedores, em geral sob a alegação de que não podem
arcar com esse custo. Agora, haverá obrigatoriedade de realizar e arcar com as
consultas. De acordo com a lei, o processo terá a participação e a supervisão
do Ministério dos Povos Indígenas, da Funai e das câmaras específicas do
Ministério Público Federal (MPF).
“O Ministério
Público vai precisar ser muito sábio e contar com a ajuda de profissionais do
setor para compor essa metodologia. Porque existem metodologias que podem ser
uma casca de banana na construção dos protocolos comunitários de consulta
prévia e informada”, defende Carlos Ramos, pesquisador do Instituto Amazônico
de Agriculturas Familiares da Universidade Federal do Pará (UFPA). O receio é
de que o desenho do processo não seja feito totalmente pelas comunidades, por
limitação de custos por parte do desenvolvedor, por exemplo, o que deixaria
brechas para interferências pelas partes financiadoras.
Há entidades que afirmam que não houve participação das
comunidades na elaboração da lei, especialmente considerando que os povos
indígenas e comunidades tradicionais são grupos muito diversos e heterogêneos.
Isso faria com que o processo de idas e vindas do texto no Congresso Nacional
não tivesse considerado a premissa da consulta às comunidades, como as
salvaguardas do próprio texto da lei prevêem.
“Eles podem opinar de diferentes modos e em diferentes
posicionamentos sobre o mercado regulado de carbono. O que é importante
destacar é que não houve uma participação devida desses povos e comunidades no
processo de elaboração e aprovação da lei. Uma lei cuja aplicação praticamente
depende de territórios conservados, ou seja, territórios tradicionalmente
ocupados”, pontua Pedro Martins, educador da organização FASE Amazônia.
·
Como fica a distribuição de
recursos e o pagamento às comunidades?
Com a regulação, os grandes emissores, fora o agro, vão
precisar compensar suas emissões por meio de créditos de carbono gerados em
projetos próprios ou pela compra de créditos de outros projetos, como os que já
acontecem na Amazônia, sejam públicos ou privados. Essas iniciativas podem ser
programas de REDD+ e também de restauração, como a implementação de sistemas
agroflorestais (SAF).
Os créditos de carbono serão reconhecidos como
Certificados de Redução ou Remoção Verificada de Emissões (CRVEs), que indicam
a quantidade de carbono removido da atmosfera. Cada certificado equivale a 1
tonelada de carbono equivalente (tCO2e). O CRVE é, portanto, a moeda do mercado
regulado de carbono.
O texto prevê que no mínimo 5% dos recursos do SBCE
deverá ser destinado a povos indígenas e comunidades tradicionais, mas ainda
não foi definido como isso vai funcionar. Esses recursos virão do pagamento de
eventuais multas aplicadas a empresas que descumprirem a lei e de convênios
celebrados com entidades e empresas públicas ou privadas. “A regulamentação
tratará sobre como essa porcentagem será destinada, mas há evidências de que
seja na linha de pagamentos por serviços ambientais”, avalia Ciro Brito.
Outro ponto da lei que toca nas salvaguardas é a
determinação de que projetos de remoção de gases de efeito estufa devem
garantir 50% dos CRVEs às comunidades tradicionais, enquanto projetos de “REDD+
abordagem de mercado”, comercializados no mercado voluntário, terão garantia de
70%. “O mercado voluntário está crescendo e, como o SBCE deve levar alguns anos
para ser implementado, há tendência desse mercado continuar crescendo nesses
próximos anos”, diz Brito.
Natali Silveira, coordenadora de projetos de Cadeias
Florestais do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola
(Imaflora), diz que a delimitação dessas porcentagens mínimas tem prós e
contras. “Estabelecer um valor mínimo pode ser positivo na questão de ter um
valor a ser seguido, mas pode limitar a possibilidade de negociação sobre a
repartição dos benefícios, principalmente pensando em territórios que possuem
uma capacidade de realizar projetos sem a necessidade de envolver um parceiro
desenvolvedor, que ficaria com parte dos créditos.”
<><> Como irá funcionar o mercado
regulado de carbono
⦁ Empresas que emitem mais de 25 mil toneladas de dióxido de carbono
(CO2) precisarão compensar
suas emissões.
⦁ A compensação pode acontecer por meio da redução de emissões, para
ficar abaixo do limite determinado pelo governo para cada setor com as Cotas
Brasileiras de Emissões (CBEs), ou pela compra de créditos de carbono.
⦁ As empresas que reduzirem as suas emissões abaixo da quantidade
permitida de CBEs poderão comercializar o excedente. Ou seja, quem não atingir
o teto de emissões vai poder vender o “saldo” para outras empresas.
⦁ Quem emitir acima do previsto pelas CBEs, deverá compensar as emissões pela
aquisição de CBEs no mercado, pela geração de créditos de carbono em projetos
próprios ou pela compra de créditos de terceiros.
⦁ Os créditos de carbono gerados fora das CBEs serão reconhecidos como
Certificados de Redução ou Remoção Verificada de Emissões (CRVEs).
⦁ CBEs e CRVEs são as moedas do mercado regulado de carbono. Cada cota
ou certificado equivale a 1 tonelada de carbono equivalente (tCO2e).
⦁ O Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE) deve arrecadar
recursos com a cobrança de multas e encargos, além de possíveis convênios ou
acordos com entidades e empresas públicas e privadas.
Além das terras indígenas e de comunidades tradicionais,
outras unidades de conservação integral ou de uso sustentável com plano de
manejo poderão ser objeto de programas de geração de CRVEs. Projetos
desenvolvidos em assentamentos da reforma agrária e em florestas públicas sem
destinação também devem entrar no âmbito do mercado regulado.
·
Está por vir o “arcabouço
legal” do carbono?
Apesar da existência da Comissão Nacional para REDD+
(CONAREDD+), que tem competência para estabelecer o cumprimento de
salvaguardas, o Brasil ainda não tem regras federais para projetos e programas
de REDD+ e outras iniciativas de armazenamento de carbono. O país segue as
recomendações internacionais do Acordo de Paris, que no artigo 5º incentiva a
adoção de medidas para implementar e apoiar atividades de redução de emissões
por desmatamento e degradação, inclusive por meio de pagamentos por resultados,
além de destacar a importância do reforço dos estoques de carbono das florestas
nos países em desenvolvimento.
Sem regulação para o setor – o que pode acontecer com a
implementação do SBCE –, governos estaduais têm liberdade de montar seus
projetos e programas, inclusive com parcerias com a iniciativa privada. São os
chamados programas de REDD+ jurisdicional. Além desses, há os projetos de REDD+
privados e os de reflorestamento.
Qualquer que seja a modalidade, projetos de carbono
costumam apresentar problemas em termos de consulta prévia, livre e informada a
povos e comunidades tradicionais. A expectativa é de que a regulação do mercado
estabeleça metodologias de certificação do carbono, para evitar casos de dupla
contagem e assegurar as salvaguardas socioambientais.
“A gente não tinha uma regra geral, e agora temos a
oportunidade de ter essa regra de salvaguardas e fortalecer espaços e
instâncias importantes, como a CONAREDD+”, diz Gabriela Savian, diretora
adjunta de Políticas Públicas do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia
(IPAM).
No contexto paraense, por exemplo, o Ministério Público
Federal (MPF) e o Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) já acompanham as
negociações do Sistema Jurisdicional de REDD+ estadual, para que não beneficie
grandes proprietários rurais e seja redistribuído entre a agricultura familiar
e os povos e comunidades tradicionais. Os órgãos também apuram denúncias sobre
irregularidades em projetos do mercado voluntário de carbono, e emitiram
uma nota técnica, em 2023, com
recomendações a respeito da proteção dos direitos dos povos e comunidades
tradicionais no mercado voluntário de carbono.
Do ponto de vista jurídico, o SBCE pode vir a ser um
aliado ao criar metodologias que ajudam no monitoramento dos contratos de
projetos de carbono. “O REDD+ entra no mercado regulado como uma oportunidade
de criar segurança jurídica a esses créditos de carbono que já eram gerados no
Brasil desde 2010”, pondera Gabriela Savian.
Para Ciro Brito, o SBCE pode ser um sistema que apoia o
cumprimento de salvaguardas socioambientais diante das graves violações de
direitos territoriais de comunidades tradicionais e povos indígenas por conta
de projetos de REDD+. “Mas também pode se limitar a ser um mecanismo que
aumentará a integridade dos créditos gerados a partir do REDD+”,
avalia.
·
Políticas de redução de
emissões
Uma crítica levantada por representantes da sociedade
civil é que o SBCE não se conecta às demais políticas e programas federais de
redução de emissões. Não há conexão direta à NDC do Brasil, à Política Nacional
sobre Mudança do Clima (PNMC) ou à Estratégia Nacional para REDD+. “A gente
entende que, na implementação, o SBCE vai ter que estar atrelado às estratégias
do Brasil de redução de emissões”, afirma a diretora adjunta do IPAM.
Na lei de pagamento por serviços ambientais, que ainda
não foi regulamentada, um dos serviços que podem gerar pagamento é o carbono. E
a resolução nº 3 da CONAREDD+ reconhece o mercado voluntário de carbono desde
2020. A questão que permanece em aberto é se todas essas recomendações vão
encontrar um denominador comum a partir da criação do SBCE.
O aparente consenso entre os especialistas é que,
apesar de o mercado regulado ter o potencial de promover projetos de REDD+ e de
restauração florestal, é importante que ele não seja um mecanismo-fim na
questão urgente de redução das emissões de gases de efeito estufa. Compensar
emissões não é a mesma coisa que reduzi-las. Portanto, se o SBCE não for
atrelado a políticas de transição energética e medidas eficazes de combate ao
desmatamento e às emissões de GEE pelo agronegócio não foram implementadas, o
Brasil deve seguir patinando na ambição climática.
<><> Glossário
>>>> Certificados de Redução ou
Remoção Verificada de Emissões (CRVEs):
São créditos de carbono gerados em projetos públicos e
privados, que podem ser comercializados no mercado regulado. Empresas que
precisam compensar suas emissões poderão comprar CRVEs. Cada certificado
equivale a 1 tonelada de CO2.
>>>> Comissão Nacional para
REDD+ (CONAREDD+):
A CONAREDD+ coordena e monitora a Estratégia Nacional
para REDD+ do Brasil, além de determinar os requisitos para o pagamentos por
resultados na redução de emissões de gases do efeito estufa (GEE). A comissão
também tem competência para estabelecer o cumprimento de salvaguardas de REDD+.
Ela é formada por dez representantes do governo federal, quatro dos Estados,
dois representantes da sociedade civil e outros dois de povos indígenas e
comunidades tradicionais, além de um para academia e um para o setor privado.
>>> Dupla contagem de carbono:
A dupla contagem ocorre quando um mesmo crédito de
carbono é contabilizado pelo “vendedor” e pelo “comprador” nos seus inventários
de emissões. O mercado de carbono foi estabelecido pelo Acordo de Paris, em
2015, e prevê que um país que emite menos GEE fica com um saldo, os chamados
créditos de carbono, que podem ser vendidos aos países que emitem mais. O mesmo
comércio vale para empresas. Na prática, é como se quem vendesse um crédito
assumisse a dívida de emissões do comprador, correspondente à quantidade
negociada de carbono. Portanto, a dupla contagem acontece quando tanto
geradores de créditos quanto os compradores registram a redução de emissões de
carbono nos seus inventários, o que leva a um falso número no saldo global de
emissões.
>>> NDC:
A Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC, na sigla
em inglês) é o documento que estabelece as metas de redução de emissões de
gases de efeito estufa de cada país. A atual NDC do Brasil inclui os objetivos
de reduzir as emissões de gases de efeito estufa em 53% até 2030 e de zerar as
emissões líquidas até 2050.
>>>> Política Nacional de
Pagamento por Serviços Ambientais (PNPSA):
Aprovada em 2021, a lei que regulamenta a PNPSA ainda
não foi implementada. A proposta é criar um mecanismo que remunera quem promove
ações de proteção da natureza, como povos indígenas, quilombolas e comunidades
tradicionais. Um grande desafio para o governo é conseguir integrar sistemas de
informação, para poder monitorar e sistematizar dados ambientais, viabilizando
os pagamentos.
>>>> Política Nacional sobre
Mudança do Clima (PNMC):
A PNMC foi instituída em 2009 para ser a base da
política climática brasileira, oficializando o compromisso do país em reduzir
suas emissões de GEE até 2020. Os objetivos originais incluíam a redução de 80%
do desmatamento na Amazônia e de 40% no Cerrado, percentuais que não foram
atingidos. A PNMC está em atualização pelo governo federal.
>>>> Redução de Emissões de
Desmatamento e Degradação Florestal (REDD+):
O REDD+ é um mecanismo criado no âmbito da
Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) para
incentivar a redução das emissões de gases de efeito estufa provenientes do
desmatamento e da degradação florestal em países em desenvolvimento. Os países
recebem pagamentos de fundos internacionais por conservar estoques, fazer o
manejo sustentável de florestas e aumentar os estoques de carbono florestal.
>>>> REDD+ jurisdicional:
São programas nacionais, estaduais ou municipais de
redução de emissões por desmatamento e degradação florestal, com aumento de estoques
de carbono por regeneração natural em vegetação nativa. Diferente dos projetos
isolados e locais, que acontecem hoje no mercado voluntário, o REDD+
jurisdicional é aplicado em áreas definidas administrativamente. Assim, os
estados podem construir os seus programas de REDD+, dentro da sua jurisdição,
se comprometendo com uma meta de redução do desmatamento. Atualmente, recebem
pagamentos internacionais por resultados e podem ter convênios com entidades.
Fonte:
Por Lorena Tabosa, em O Joio e o Trigo
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