sábado, 8 de fevereiro de 2025

Regionalização da produção de TV nas capitais cresce, mas não convence

Em 2009, o Observatório do Direito à Comunicação, projeto do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, lançou uma pesquisa que focou em um dos problemas do modelo de TV historicamente implementado no Brasil: a falta de regionalização da produção. O estudo indicou um baixo nível de regionalização nas produções das emissoras de TV nas 11 capitais estudadas: apenas 10,83% da programação semanal em média.

Quinze anos depois, com a adaptação e atualização da metodologia empregada no levantamento de 2009, o coletivo Intervozes revisita o mercado de televisão em novo estudo que aponta um salto na produção local média das emissoras de TV para 15,47% da programação semanal produzida localmente, incluindo emissoras afiliadas a redes públicas e comerciais. Isso representa, em média, 26 horas locais por semana por emissora.

A pesquisa estudou a programação de 59 emissoras geradoras, localizadas em todas as regiões brasileiras, nas cidades de Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Curitiba, Brasília, Cuiabá, Belém, Salvador, Recife, Natal e Fortaleza. Em 2009, foram analisados 58 canais de TV nessas mesmas capitais.As emissoras analisadas pertencem ou são filiadas às grandes redes nacionais da Globo, Record, SBT, Band e TV Brasil/TV Cultura-SP. O estudo ainda analisou três emissoras afiliadas à Rede TV. Contudo, não foi possível obter acesso à grade de programação local da RedeTV! para as demais cidades e suas próprias afiliadas.

Em termos gerais, a maior parte dessa programação local consiste em conteúdos jornalísticos, 37,17%, e policialescos, 31,5%. É preocupante o grande percentual de programas com apelos policiais na programação, sendo o segundo maior gênero encontrado na pesquisa. O Intervozes tem denunciado diversos casos de desrespeito aos Direitos Humanos nesse tipo de programa, como os que ocorreram na Paraíba.

O terceiro tipo de conteúdo mais frequente foi classificado como de gêneros diversos, com 9,58% do total. Esse grupo inclui programas de entrevistas de temática livre, debates, automóveis, turismo, direitos e cidadania, relacionamentos e atrações destinadas a um determinado público (jovens ou pessoas idosas).

Mas o crescimento registrado na pesquisa ainda é inferior à principal proposta de regulamentação da regionalização na programação de emissoras de TV brasileiras, engavetada há 10 anos no Congresso Nacional. O projeto de Lei 256/1991, da deputada Jandira Feghali (PCdoB/RJ), previa que a programação regional deveria corresponder a 30% da grade televisiva. Embora tenha sido aprovado na Câmara dos Deputados em 2003, o projeto não venceu o lobby dos radiodifusores e terminou arquivado em 2014, após 23 anos de tramitação.

É importante relembrar que a regionalização da programação está prevista no Capítulo V da Constituição Federal, sobre a Comunicação Social:

Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios: II – regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei;  

Mesmo com o amplo debate em torno do antigo PL 251/1991, esse preceito constitucional nunca foi regulamentado pelo Congresso Nacional, que permanece omisso em relação à necessidade de adequação da legislação de radiodifusão para atender aos princípios constitucionais. O setor ainda é regido pelo anacrônico Código Brasileiro de Telecomunicações, de 1962.

·        Emissoras Comerciais

Em 2024, os dados da pesquisa apontam que as 46 emissoras de TV ligadas às grandes redes comerciais têm ampliado os espaços destinados à produção local em suas grades semanais. Os programas locais ocupam agora, em média, 27,5 horas semanais por cada emissora, ou 16,43% do total da grade desses canais. Em comparação, em 2009 esse número era de 9,14%.

Nas emissoras privadas, os principais gêneros encontrados também foram o jornalismo e os programas policiais, com 41,24% e 36,66%, respectivamente. Seguidos de conteúdos esportivos, 6,75%, e de entretenimento, 6,35%, nas grades de programação.

Nesse cenário, uma das emissoras mais destacadas foi a TV Cidade, de Fortaleza, afiliada à Rede Record, que dedica 26,54% da sua grade com atrações locais. A programação inclui programas jornalísticos, esportivos e de gêneros diversos, mas a maior parte da programação local é dominada por programas policiais, que abocanham quase 38 horas semanais na grade da emissora. Isso sem considerar a percepção de que as reportagens “policialescas” têm influenciado a linguagem dos telejornais “tradicionais” em diversas cidades. Esse fato amplia o espaço das narrativas com viés policial no jornalismo das TVs abertas.

O fenômeno também é evidente em outra afiliada da Record, a TV Guararapes, localizada no Recife. A emissora destina 25,15% de sua grade a programas locais, com mais de 30 horas semanais dedicadas aos policialescos.

O destaque negativo é o SBT Pará, com apenas 5,21% da programação regionalizada, se restringindo a um jornal local de segunda à sexta, de 21 minutos. A Band Brasília e a emissora Pantanal, afiliada à RedeTV!, também apresentam baixos índices de produção regional, com 7,14% e 7,74%, respectivamente.

·        Emissoras Públicas

Enquanto isso, os ataques às emissoras públicas nos últimos anos refletiram diretamente na sua programação regional. Esses canais passaram de 25,5% da grade para produções locais em 2009 para apenas 12,08% em 2024, menos de 20,3 horas semanais por cada emissora, em média.

A crise enfrentada pela TVE do Rio Grande do Sul é um exemplo dessa situação. Em 2016, a Fundação Piratini, que administrava os veículos públicos estaduais, começou a ser extinta. Tanto a TVE quanto a Rádio Cultura passaram a ser controladas diretamente pela assessoria de imprensa do governo do estado, desmantelando toda a estrutura pública gaúcha. Hoje, a TVE-RS tem um índice de regionalização de 15,48%, ante 22,82% em 2009.

Nessas emissoras, o principal gênero encontrado foi os classificados como diversos, chegando a 34,16%, impulsionado pelos programas turísticos da TV Paraná Turismo, que, desde 2019, mudou seu foco para divulgação desse setor.
O jornalismo aparece como segundo gênero mais frequente na programação destas emissoras públicas, com 17,62%, seguido de programas culturais, que representam 17,4%.

Chama atenção a ausência de programação local da TV Brasil, emissora gerida pela Empresa Brasil de Comunicação (EBC), em Brasília e no Rio de Janeiro. Nessas cidades, não há produção de nenhuma atração local, nem mesmo jornalística – toda a programação realizada pela emissora federal de TV nessas duas cidades é dedicada à grade de programação da rede nacional, indicado que elas funcionam como cabeça de rede. Mas já houve programação destinada a própria região anos atrás, como os telejornais locais. Desde 2016, a EBC vem sendo desestruturada, culminando até mesmo nos estudos para privatização durante o governo de Jair Bolsonaro. Neste atual momento, a emissora está em lenta recuperação, mas a programação local não parece ser prioridade, apesar de anunciar investimentos de R$ 110 milhões em editais para a compra de produção independente, mas não foi anunciada nenhuma reserva regional – o edital ainda não foi publicado.

Por outro lado, outras emissoras públicas se destacam positivamente. A Rede Minas regionaliza 32,74% da sua programação. Entre os destaques estão as produções culturais, com 15 horas semanais de atrações musicais e shows gravados. Outro destaque é a própria TV Paraná Turismo, com 30,65% de programação local, dedicada principalmente à promoção dos pontos turísticos do estado.

No Nordeste, o destaque é a TV Futuro, de Natal, afiliada da TV Cultura, com quase 20% de sua programação regionalizada. Essa emissora, apesar de estar em uma rede pública, é de uma Fundação privada e seu conteúdo reproduz a programação das outras emissoras comerciais, o que mostra a complexidade do campo público. Em Natal, ainda temos a TVU, da UFRN, afiliada à rede da TV Brasil, que tem um baixo índice de regionalização, alcançando apenas 6,85%. Outro destaque da região é a TV Ceará, que retransmite parte da programação da TV Cultura e da TV Brasil, tendo alcançado 19,64% de programação local, contra 15,97% em 2009. A TVE-BA, uma emissora tradicional da região, também teve uma queda em seu índice de regionalização, marcando 12,30% em 2024 em comparação com 14,78% em 2009.

·        A pesquisa

Nos dois estudos, de 2009 e 2024, são classificadas como produção regional ou local os programas realizados no estado da emissora que os veicula, direcionados à população da cidade de origem da emissora. Assim, diferencia-se a produção regional dos conteúdos produzidos para exibição nacional de emissoras chamadas de “cabeças de rede”, como a Globo e a TV Brasil, que, mesmo produzindo em suas sedes no Rio de Janeiro e em Brasília, por exemplo, destinam a maior parte de seu conteúdo à exibição em rede.

O estudo de 2024 contabilizou, ao todo, 1.533 horas semanais de programação regional nas emissoras avaliadas. Os dados foram coletados entre os meses de outubro a novembro de 2024.

Os resultados desta pesquisa são importantes para retomar a discussão sobre o cumprimento do preceito constitucional da regionalização. O sistema de mídia brasileiro precisa ser revisto conforme os princípios da nossa democracia, e isso traz à tona o modelo monopólico das redes nacionais existentes no país. A pluralidade da nossa mídia é diretamente afetada por essa baixa produção regional de conteúdo.

É inconcebível que após 36 anos da promulgação da Constituição, esse e outros dispositivos constitucionais da comunicação social não estejam regulamentados. A pesquisa completa está prevista para ser lançada pelo Intervozes em março de 2025.

 

Fonte: Por Alex Pegna Hercog, Ana Veloso, Gésio Passos, Iano Flávio e Luciano Gallas, no Le Monde

 

 

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