sábado, 8 de fevereiro de 2025

A fúria no Oriente Médio com proposta de Trump sobre Gaza: 'Viveremos e morreremos em nossa terra'

Para a maioria dos palestinos que vivem na Faixa de Gaza, já existe uma história dolorosa de deslocamento forçado que está no cerne de sua resposta ao plano do presidente dos EUA, Donald Trump, de assumir o controle do território devastado pela guerra.

Trump disse na terça (4/2) que o país deveria assumir o controle do território e reassentar os palestinos nos países vizinhos.

Um dia depois da fala explosiva de Trump, a secretária de imprensa do governo, Karoline Leavitt minimizou a fala, dizendo que Trump "não se comprometeu a enviar tropas americanas" para Gaza e que os EUA não irá usar dinheiro do contribuinte americano para a reconstrução da faixa.

Moradores de um acampamento de refugiados na cidade central de Deir al-Balah expressaram choque e revolta com a ideia de serem permanentemente reassentados em outro local.

"Mesmo que isso nos custe nossas almas, não deixaremos Gaza", disse à BBC News Mahmoud Bahjat, que é do norte do território.

"Somos contra a decisão de Trump. Ele acabou com a guerra, mas nos deslocar acabaria com nossas vidas."

Por outro lado, muitos israelenses têm expressado satisfação com as ideias radicais da Casa Branca, particularmente os da direita.

Desde que começou o cessar fogo em Gaza — pouco antes da posse de Trump em janeiro — o mundo observa cenas dramáticas de palestinos retornando para o que restou de suas casas.

Famílias palestinas empilharam pertences em carros e carroças puxadas por burros ou caminharam longas distâncias ao longo da estrada costeira, muitas vezes para chegar em seu endereço e encontrar apenas destroços.

Os bombardeios começaram após o ataque do Hamas contra Israel em 7 de outubro de 2023, que deixaram mais de mil mortos, segundo as autoridades israelenses.

De acordo com a ONU, pelo menos 1,9 milhões de pessoas foram deslocadas durante 15 meses de guerra. Isso é cerca de 90% da população de Gaza.

As cenas de palestinos em movimento ecoaram vídeos em preto e branco de 1948 que registraram as evacuações em massa que ocorreram durante os combates antes e depois da criação do estado de Israel.

Mais de 700 mil pessoas foram forçadas a deixar suas casas naquele ano. A maioria dos moradores de Gaza hoje são descendentes dos refugiados de 1948.

De pé entre fileiras de lonas plásticas no campo de Deir al-Balah, Jamalat Wadi diz que sua família já se sacrificou o suficiente e que eles estão determinados a construir uma nova casa.

"Nós aguentamos um ano e meio de guerra. Quando [os militares israelenses] finalmente se retirarem daqui, queremos remover os escombros e viver nesta terra", diz ela.

"Depois de fazer Israel destruir nossas casas em Gaza, os EUA agora estão nos dizendo que Gaza está destruída e que temos que ir embora?", continua.

"Não sairemos de Gaza. Não vamos desistir!"

Uma mulher palestina disse à BBC Árabe que rejeita completamente qualquer sugestão de que os palestinos sejam removidos da faixa de Gaza.

"Nós vamos viver e morrer em nossa terra natal", diz ela. "Nós aguentamos um ano e meio de guerra, morte e destruição. Depois de tudo que passamos, como poderíamos concordar com isso?", questiona.

·        Pedido de apoio

Muitos dos palestinos que conversaram com a BBC pediram que a Jordânia, o Egito e a Arábia Saudita resistam à pressão americana.

Trump tem pressionado o Egito, a Jordânia para que recebam refugiados palestinos e a Arábia Saudita para que normalize suas relações com Israel.

Desde sua criação, Israel rejeitou o direito dos refugiados palestinos de retornar à sua pátria histórica, pois isso deixaria o povo judeu como uma minoria dentro de suas fronteiras.

Hoje, há cerca de 5,9 milhões de palestinos registrados pela ONU, com a maioria vivendo em Gaza, na Cisjordânia ocupada, na Jordânia, na Síria e no Líbano.

Israel há muito argumenta que os palestinos deveriam ser absorvidos pelos países árabes, apontando que milhares de judeus deixaram esses países para ir para Israel durante a turbulência regional depois da criação do Estado.

Autoridades israelenses sugerem que, ao propor assumir o controle de Gaza devastada pela guerra, o governo Trump está oferecendo uma nova saída para um conflito de longa duração.

Embora Trump não tenha apoiado o restabelecimento de assentamentos israelenses em Gaza, os líderes dos colonos reagiram com entusiasmo à ideia de deslocamento, pedindo ao governo israelense que agisse imediatamente.

Israel ocupou Gaza e a Cisjordânia na guerra de 1967 e começou a construir assentamentos em ambos os territórios. Os assentamentos são amplamente vistos como ilegais sob a lei internacional.

Em 2005, Israel retirou suas tropas e colonos da Faixa de Gaza, mas a ONU ainda considera a faixa como território ocupado por Israel, porque o país detém o controle das entradas e saídas do território.

"Caso as declarações de Trump sobre a transferência de moradores de Gaza para outros países em todo o mundo se concretizem, precisamos agir rapidamente e construir assentamentos em toda a Faixa de Gaza", declarou a organização de assentamentos Nachala, que afirma ter centenas de ativistas prontos para se mudar para lá.

"Nenhuma parte de Israel deve ser deixada sem assentamento por judeus. Se deixarmos qualquer área desolada, ela poderá ser tomada por nossos inimigos", acrescentou Nachala.

Em contraste, a ONG israelense antiocupação Peace Now rejeita o plano de Trump.

Ela apoia a criação de um Estado palestino independente ao lado de Israel como parte da fórmula internacional de longa data para a paz na região, conhecida como solução de dois Estados.

A Peace Now diz que não há "nenhuma maneira viável de transferir dois milhões de habitantes de Gaza" para fora.

"É hora de parar de fantasiar sobre limpeza étnica e deslocamento forçado em Gaza e encarar a realidade - há apenas uma solução que pode garantir segurança e estabilidade no Oriente Médio: dois estados para dois povos e o fim do conflito israelense-palestino", diz a organização.

·        Impacto das declarações

Muitos israelenses e palestinos estão preocupados com o que as últimas falas de Trump podem significar para o cessar-fogo em Gaza.

A próxima etapa do acordo deve ver o retorno de cerca de 60 reféns israelenses restantes — nem todos vivos — e um fim mais permanente para os combates.

O irmão de um refém israelense mantido pelo Hamas diz à BBC que não acredita que Trump esteja falando sério.

"Não levo o que Trump diz muito a sério. Não é realista. Ele está mirando alto", afirma.

O israelense acrescenta que as falas de Trump sobre Gaza são "como com o Canadá" — referindo-se à fala do presidente americano de que o país deveria se tornar o "51º Estado" dos EUA.

Alguns moradores de Gaza reconheceram que sentiam que um aspecto da declaração do presidente Trump era baseado na realidade — seus comentários de que a pequena faixa costeira se tornou "inabitável".

No mês passado, uma avaliação de danos da ONU mostrou que limpar mais de 50 milhões de toneladas de escombros deixados em Gaza como resultado do pesado bombardeio israelense poderia levar 21 anos e custar até US$ 1,2 bilhão.

Bilal al-Rantisi, um ex-funcionário da alfândega, está em choque após retornar à Cidade de Gaza com sua esposa e quatro filhos, tendo passado mais de um ano deslocados no sul.

"Retornamos a uma catástrofe, a pior da história", disse ele desanimado. "Não encontrei nem minha casa, nem as casas dos meus irmãos de pé. Trump não fala em vão. Ele sabe que Gaza não é mais um lugar adequado para habitação humana."

Ele disse que esperava vender seu carro e as joias de ouro de sua esposa para arrecadar recursos e sair.

"Vou deixar Gaza o mais rápido possível. Sim, todos os moradores de Gaza se opõem ao deslocamento, mas deixando as emoções de lado, se as pessoas tivessem a chance, muitas escolheriam partir."

·        Reação dos vizinhos

As reações da Autoridade Palestina e a do Hamas são parecidas com a dos moradores.

O presidente da Autoridade Palestina disse que rejeita veementemente a proposta de Trump.

"Não permitiremos que os direitos do nosso povo sejam violados", disse Mahmoud Abbas, alertando que Gaza era "parte integrante do Estado da Palestina" e o deslocamento forçado seria uma violação grave do direito internacional.

O Hamas, cuja guerra de 15 meses com Israel causou devastação generalizada, disse que o plano de Trump "colocaria lenha na fogueira" na região.

Os Estados árabes também rejeitaram a ideia, com a Arábia Saudita reiterando que não normalizaria os laços com Israel sem o estabelecimento de um Estado palestino.

O vizinho Egito, que rejeitou a sugestão de Trump no mês passado de que ele e a Jordânia acolhessem os moradores de Gaza, enfatizou a necessidade de reconstrução "sem mover os palestinos".

<><> Análise de Tamer Qarmout - professor de Política Pública no Doha Institute for Graduate Studies (Análise para a BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC)

A região deve ser preparada para o pior dos cenários, mas também para o estilo de negociação de Trump, conhecido por apostar alto para alcançar seus objetivos.

As recentes ameaças ao MéxicoPanamá, Canadá Dinamarca poderiam ser uma estratégia de negociação no sentido de lançar uma ameaça, conseguir algo e depois recuar — algo que foi nomeado "fator Trump".

Agora é a hora dos países árabes, em vez de atuar unilateralmente e dar declarações sobre diferentes episódios, atuarem coletivamente e usarem toda a sua influência, interesses políticos, econômicos ou militares que têm com os Estados Unidos.

Eles têm que mostrar que esta é a linha que não pode ser cruzada.

Após 15 meses de guerra, Israel está em "ponto morto" em termos de estratégia, porque, embora tenha convertido Gaza em escombros, o Hamas continua existindo e os palestinos não foram embora.

Com suas palavras, Trump está aumentando a aposta e colocando os países árabes diante de dois cenários.

Ou os países lidam com um cenário de deslocamento e limpeza étnica ou se comprometem com algum tipo de acordo que proponha uma saída digna dessa guerra.

Os árabes, que até agora se recusaram a assumir o controle de Gaza porque acreditam que isso dificultaria a solução de dois Estados, estão agora em uma encruzilhada e devem avaliar suas opções.

A questão agora é se Trump quer alienar uma região que mais ou menos já tinha se alinhado com os Estados Unidos estratégica e economicamente.

Os EUA estão dispostos a jogar tudo fora, todas essas alianças, toda a influência que têm na região, para colocá-la em risco por esse cenário?

Não acho que os americanos queiram fazer isso agora, e os próprios israelenses entendem que esse cenário ameaça começar guerras com a Jordânia e o Egito.

Mas temos que levar isso a sério porque Trump é impulsivo e descontrolado.

¨      'Plano de Trump para Gaza não vai se concretizar, mas terá consequências'

plano de Donald Trump para os EUA tomarem o controle da Faixa de Gaza e reassentarem os palestinos em outro local não vai se concretizar.

O plano precisaria da cooperação dos Estados árabes, que já rejeitaram a proposta.

Trump queria que Jordânia e Egito acolhessem os palestinos, mas eles já se manifestaram contra.

Aliados ocidentais dos EUA e Israel também são contra a ideia.

Alguns — talvez muitos — palestinos em Gaza podem ser tentados a sair se tiverem a chance.Mas mesmo se um milhão saísse, até 1,2 milhão de outros ainda estariam lá.

E os Estados Unidos teriam que usar a força para removê-los.

Após a intervenção catastrófica dos EUA no Iraque em 2003, isso seria profundamente impopular nos EUA.

Seria o fim definitivo de qualquer esperança de que uma solução de dois Estados fosse possível.

A solução de dois Estados é a esperança de que o conflito de mais de um século pudesse ser encerrado com o estabelecimento de uma Palestina independente ao lado de Israel.

O governo Netanyahu é totalmente contra a ideia e, ao longo de anos de negociações de paz fracassadas, "dois estados para dois povos" se tornou um slogan vazio.

Mas tem sido um pilar central da política externa dos EUA desde o início dos anos 1990.

O plano de Trump também viola o direito internacional.

As afirmações americanas de que o país acredita em uma ordem internacional baseada em regras se dissolveriam. E as ambições territoriais da Rússia na Ucrânia e da China em Taiwan seriam turbinadas.

<><> O que as falas de Trump significam para a região?

Por que se preocupar com tudo isso se o plano não está prestes a ser realizado — pelo menos não da forma como Trump anunciou em Washington, observado por um sorridente e claramente encantado Benjamin Netanyahu?

A resposta é que os comentários de Trump, por mais absurdos que sejam, terão consequências.

Ele é o presidente dos Estados Unidos, o homem mais poderoso do mundo — não mais um apresentador de reality show tentando aparecer na mídia.

A curto prazo, a interrupção causada por seu anúncio pode enfraquecer o já frágil cessar-fogo em Gaza.

A ausência de um plano para a governança futura de Gaza já é uma falha no acordo.

Agora Trump forneceu um, e mesmo que não aconteça, ele toca em pontos muito sensíveis nas mentes de palestinos e israelenses.

A fala de Trump alimenta os planos e sonhos de extremistas ultranacionalistas israelenses que acreditam que toda a terra entre o Mediterrâneo e o rio Jordão, e talvez além, é uma posse judaica dada por Deus.

Seus líderes fazem parte do governo de Netanyahu e o mantêm no poder — e eles estão felizes.

Eles querem que a guerra de Gaza seja retomada com o objetivo de longo prazo de remover os palestinos e substituí-los por judeus.

O ministro das Finanças israelense, Bezalel Smotrich, disse que Trump havia fornecido a resposta para o futuro de Gaza após os ataques de 7 de outubro.

Sua declaração disse que "quem cometeu o massacre mais terrível em nossa terra se verá perdendo sua terra para sempre. Agora agiremos para finalmente enterrar, com a ajuda de Deus, a perigosa ideia de um Estado palestino."

Os líderes da oposição centrista em Israel têm sido menos efusivos, talvez temendo problemas futuros, mas expressaram uma recepção educada ao plano.

O Hamas e outros grupos armados palestinos podem sentir a necessidade de responder a Trump com algum tipo de demonstração de força contra Israel.

Para os palestinos, o conflito com Israel é motivado pela desapropriação e pela memória do que eles chamam de al-Nakba, "a catástrofe".

Esse foi o êxodo dos palestinos quando Israel venceu a guerra de 1948.

Mais de 700 mil palestinos fugiram ou foram forçados a deixar suas casas pelas forças israelenses.

Todos, exceto um punhado, nunca foram autorizados a voltar e Israel aprovou leis que ainda usa para confiscar suas propriedades.

Agora o medo é que isso aconteça novamente.

Muitos palestinos já acreditavam que Israel estava usando a guerra contra o Hamas para destruir Gaza e expulsar a população.

Faz parte da acusação deles que Israel está cometendo genocídio — e agora eles podem acreditar que Donald Trump está legitimando os planos de Israel.

<><> Qual a motivação de Trump?

Só porque Trump diz algo, isso não o torna verdadeiro ou certo.

Suas declarações são frequentemente mais como jogadas iniciais em uma negociação imobiliária do que expressões da política estabelecida dos Estados Unidos.

Talvez Trump esteja espalhando alguma confusão enquanto trabalha em outro plano. Dizem que ele anseia pelo prêmio Nobel da paz.

Há um histórico de prêmios que foram para pessoas que se dedicam à paz no Oriente Médio, mesmo quando elas não foram bem sucedidas.

Enquanto o mundo digeria seu anúncio sobre Gaza, Trump postou em sua plataforma de redes sociais Truth Social que queria um "acordo de paz nuclear" com o Irã.

O regime iraniano nega que queira armas nucleares, mas tem havido um debate aberto em Teerã sobre se eles estão agora tão ameaçados que precisam das armas de destruição em massa.

Por muitos anos, Netanyahu quis que os EUA, com a ajuda israelense, destruíssem as instalações nucleares do Irã. Fazer um acordo com o Irã nunca fez parte de seu plano.

Durante o primeiro mandato de Trump, Netanyahu travou uma longa e bem-sucedida campanha para persuadi-lo a retirar os EUA do acordo nuclear que o governo de Barack Obama assinou com o Irã.

Se Trump queria dar algo à direita radical israelense para mantê-la feliz enquanto ele faz propostas aos iranianos, ele conseguiu.

Mas ele também criou incerteza e injetou mais instabilidade na região mais turbulenta do mundo.

 

Fonte: BBC News em Jerusalem

 

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