A fúria no Oriente
Médio com proposta de Trump sobre Gaza: 'Viveremos e morreremos em nossa terra'
Para a maioria
dos palestinos que vivem na
Faixa de Gaza, já existe uma história dolorosa de deslocamento forçado que está
no cerne de sua resposta ao plano do presidente
dos EUA, Donald Trump, de assumir o controle do território devastado
pela guerra.
Trump disse na
terça (4/2) que o país deveria assumir o controle do território e reassentar os
palestinos nos países vizinhos.
Um dia depois da
fala explosiva de Trump, a secretária de imprensa do governo, Karoline Leavitt
minimizou a fala, dizendo que Trump "não se comprometeu a enviar tropas
americanas" para Gaza e que os EUA não irá usar dinheiro do contribuinte
americano para a reconstrução da faixa.
Moradores de um
acampamento de refugiados na cidade central de Deir al-Balah expressaram choque
e revolta com a ideia de serem
permanentemente reassentados em outro local.
"Mesmo que
isso nos custe nossas almas, não deixaremos Gaza", disse à BBC News
Mahmoud Bahjat, que é do norte do território.
"Somos contra
a decisão de Trump. Ele acabou com a guerra, mas nos deslocar acabaria com
nossas vidas."
Por outro lado,
muitos israelenses têm expressado satisfação com as ideias radicais da Casa
Branca, particularmente os da direita.
Desde que começou o
cessar fogo em Gaza — pouco antes da posse de Trump em janeiro — o mundo
observa cenas dramáticas de palestinos retornando para o que restou de suas
casas.
Famílias palestinas
empilharam pertences em carros e carroças puxadas por burros ou caminharam
longas distâncias ao longo da estrada costeira, muitas vezes para chegar em seu
endereço e encontrar apenas destroços.
Os bombardeios
começaram após o ataque do Hamas contra Israel em 7 de outubro de 2023, que
deixaram mais de mil mortos, segundo as autoridades israelenses.
De acordo com a
ONU, pelo menos 1,9 milhões de pessoas foram deslocadas durante 15 meses de
guerra. Isso é cerca de 90% da população de Gaza.
As cenas de
palestinos em movimento ecoaram vídeos em preto e branco de 1948 que
registraram as evacuações em massa que ocorreram durante os combates antes e
depois da criação do estado de Israel.
Mais de 700 mil
pessoas foram forçadas a deixar suas casas naquele ano. A maioria dos moradores
de Gaza hoje são descendentes dos refugiados de 1948.
De pé entre
fileiras de lonas plásticas no campo de Deir al-Balah, Jamalat Wadi diz que sua
família já se sacrificou o suficiente e que eles estão determinados a construir
uma nova casa.
"Nós
aguentamos um ano e meio de guerra. Quando [os militares israelenses]
finalmente se retirarem daqui, queremos remover os escombros e viver nesta
terra", diz ela.
"Depois de
fazer Israel destruir nossas casas em Gaza, os EUA agora estão nos dizendo que
Gaza está destruída e que temos que ir embora?", continua.
"Não sairemos
de Gaza. Não vamos desistir!"
Uma mulher
palestina disse à BBC Árabe que rejeita completamente qualquer sugestão de que
os palestinos sejam removidos da faixa de Gaza.
"Nós vamos viver
e morrer em nossa terra natal", diz ela. "Nós aguentamos um ano e
meio de guerra, morte e destruição. Depois de tudo que passamos, como
poderíamos concordar com isso?", questiona.
·
Pedido
de apoio
Muitos dos
palestinos que conversaram com a BBC pediram que a Jordânia, o Egito e a Arábia
Saudita resistam à pressão americana.
Trump tem
pressionado o Egito, a Jordânia para que recebam refugiados palestinos e a
Arábia Saudita para que normalize suas relações com Israel.
Desde sua criação,
Israel rejeitou o direito dos refugiados palestinos de retornar à sua pátria
histórica, pois isso deixaria o povo judeu como uma minoria dentro de suas
fronteiras.
Hoje, há cerca de
5,9 milhões de palestinos registrados pela ONU, com a maioria vivendo em Gaza,
na Cisjordânia ocupada, na Jordânia, na Síria e no Líbano.
Israel há muito
argumenta que os palestinos deveriam ser absorvidos pelos países árabes,
apontando que milhares de judeus deixaram esses países para ir para Israel
durante a turbulência regional depois da criação do Estado.
Autoridades
israelenses sugerem que, ao propor assumir o controle de Gaza devastada pela
guerra, o governo Trump está oferecendo uma nova saída para um conflito de
longa duração.
Embora Trump não
tenha apoiado o restabelecimento de assentamentos israelenses em Gaza, os
líderes dos colonos reagiram com entusiasmo à ideia de deslocamento, pedindo ao
governo israelense que agisse imediatamente.
Israel ocupou Gaza
e a Cisjordânia na guerra de 1967 e começou a construir assentamentos em ambos
os territórios. Os assentamentos são amplamente vistos como ilegais sob a lei
internacional.
Em 2005, Israel
retirou suas tropas e colonos da Faixa de Gaza, mas a ONU ainda considera a
faixa como território ocupado por Israel, porque o país detém o controle das
entradas e saídas do território.
"Caso as
declarações de Trump sobre a transferência de moradores de Gaza para outros
países em todo o mundo se concretizem, precisamos agir rapidamente e construir
assentamentos em toda a Faixa de Gaza", declarou a organização de
assentamentos Nachala, que afirma ter centenas de ativistas prontos para se
mudar para lá.
"Nenhuma parte
de Israel deve ser deixada sem assentamento por judeus. Se deixarmos qualquer
área desolada, ela poderá ser tomada por nossos inimigos", acrescentou
Nachala.
Em contraste, a ONG
israelense antiocupação Peace Now rejeita o plano de Trump.
Ela apoia a criação
de um Estado palestino independente ao lado de Israel como parte da fórmula
internacional de longa data para a paz na região, conhecida como solução de
dois Estados.
A Peace Now diz que
não há "nenhuma maneira viável de transferir dois milhões de habitantes de
Gaza" para fora.
"É hora de
parar de fantasiar sobre limpeza étnica e deslocamento forçado em Gaza e
encarar a realidade - há apenas uma solução que pode garantir segurança e
estabilidade no Oriente Médio: dois estados para dois povos e o fim do conflito
israelense-palestino", diz a organização.
·
Impacto
das declarações
Muitos israelenses
e palestinos estão preocupados com o que as últimas falas de Trump podem
significar para o cessar-fogo em Gaza.
A próxima etapa do
acordo deve ver o retorno de cerca de 60 reféns israelenses restantes — nem
todos vivos — e um fim mais permanente para os combates.
O irmão de um refém
israelense mantido pelo Hamas diz à BBC que não acredita que Trump esteja
falando sério.
"Não levo o
que Trump diz muito a sério. Não é realista. Ele está mirando alto",
afirma.
O israelense
acrescenta que as falas de Trump sobre Gaza são "como com o Canadá" —
referindo-se à fala do presidente americano de que o país deveria se tornar o
"51º Estado" dos EUA.
Alguns moradores de
Gaza reconheceram que sentiam que um aspecto da declaração do presidente Trump
era baseado na realidade — seus comentários de que a pequena faixa costeira se
tornou "inabitável".
No mês passado, uma
avaliação de danos da ONU mostrou que limpar mais de 50 milhões de toneladas de
escombros deixados em Gaza como resultado do pesado bombardeio israelense
poderia levar 21 anos e custar até US$ 1,2 bilhão.
Bilal al-Rantisi,
um ex-funcionário da alfândega, está em choque após retornar à Cidade de Gaza
com sua esposa e quatro filhos, tendo passado mais de um ano deslocados no sul.
"Retornamos a
uma catástrofe, a pior da história", disse ele desanimado. "Não
encontrei nem minha casa, nem as casas dos meus irmãos de pé. Trump não fala em
vão. Ele sabe que Gaza não é mais um lugar adequado para habitação
humana."
Ele disse que
esperava vender seu carro e as joias de ouro de sua esposa para arrecadar
recursos e sair.
"Vou deixar
Gaza o mais rápido possível. Sim, todos os moradores de Gaza se opõem ao
deslocamento, mas deixando as emoções de lado, se as pessoas tivessem a chance,
muitas escolheriam partir."
·
Reação
dos vizinhos
As reações da
Autoridade Palestina e a do Hamas são parecidas com a dos moradores.
O presidente da
Autoridade Palestina disse que rejeita veementemente a proposta de Trump.
"Não
permitiremos que os direitos do nosso povo sejam violados", disse Mahmoud
Abbas, alertando que Gaza era "parte integrante do Estado da
Palestina" e o deslocamento forçado seria uma violação grave do direito
internacional.
O Hamas, cuja
guerra de 15 meses com Israel causou devastação generalizada, disse que o plano
de Trump "colocaria lenha na fogueira" na região.
Os Estados árabes
também rejeitaram a ideia, com a Arábia Saudita reiterando que não normalizaria
os laços com Israel sem o estabelecimento de um Estado palestino.
O vizinho Egito,
que rejeitou a sugestão de Trump no mês passado de que ele e a Jordânia
acolhessem os moradores de Gaza, enfatizou a necessidade de reconstrução
"sem mover os palestinos".
<><>
Análise de Tamer Qarmout - professor de Política Pública no Doha Institute for
Graduate Studies (Análise para a BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC)
A região deve ser
preparada para o pior dos cenários, mas também para o estilo de negociação de
Trump, conhecido por apostar alto para alcançar seus objetivos.
As recentes ameaças
ao México, Panamá, Canadá e Dinamarca poderiam ser
uma estratégia de negociação no sentido de lançar uma ameaça, conseguir algo e
depois recuar — algo que foi nomeado "fator Trump".
Agora é a hora dos
países árabes, em vez de atuar unilateralmente e dar declarações sobre
diferentes episódios, atuarem coletivamente e usarem toda a sua influência,
interesses políticos, econômicos ou militares que têm com os Estados Unidos.
Eles têm que
mostrar que esta é a linha que não pode ser cruzada.
Após 15 meses de
guerra, Israel está em "ponto morto" em termos de estratégia, porque,
embora tenha convertido Gaza em escombros, o Hamas continua existindo e os
palestinos não foram embora.
Com suas palavras,
Trump está aumentando a aposta e colocando os países árabes diante de dois
cenários.
Ou os países lidam
com um cenário de deslocamento e limpeza étnica ou se comprometem com algum
tipo de acordo que proponha uma saída digna dessa guerra.
Os árabes, que até
agora se recusaram a assumir o controle de Gaza porque acreditam que isso
dificultaria a solução de dois Estados, estão agora em uma encruzilhada e devem
avaliar suas opções.
A questão agora é
se Trump quer alienar uma região que mais ou menos já tinha se alinhado com os
Estados Unidos estratégica e economicamente.
Os EUA estão
dispostos a jogar tudo fora, todas essas alianças, toda a influência que têm na
região, para colocá-la em risco por esse cenário?
Não acho que os
americanos queiram fazer isso agora, e os próprios israelenses entendem que
esse cenário ameaça começar guerras com a Jordânia e o Egito.
Mas temos que levar
isso a sério porque Trump é impulsivo e descontrolado.
¨ 'Plano de Trump para Gaza não vai se concretizar, mas
terá consequências'
O plano de Donald
Trump para
os EUA tomarem o
controle da Faixa de Gaza e
reassentarem os palestinos em outro local não vai se concretizar.
O plano precisaria
da cooperação dos Estados árabes, que já rejeitaram
a proposta.
Trump queria que
Jordânia e Egito acolhessem os palestinos, mas eles já se manifestaram contra.
Aliados ocidentais
dos EUA e Israel também são contra a ideia.
Alguns — talvez
muitos — palestinos em Gaza podem ser tentados a sair se tiverem a chance.Mas
mesmo se um milhão saísse, até 1,2 milhão de outros ainda estariam lá.
E os Estados Unidos
teriam que usar a força para removê-los.
Após a intervenção
catastrófica dos EUA no Iraque em 2003, isso seria profundamente impopular nos
EUA.
Seria o fim
definitivo de qualquer esperança de que uma solução de dois Estados fosse
possível.
A solução de dois
Estados é a esperança de que o conflito de mais de um século pudesse ser
encerrado com o estabelecimento de uma Palestina independente ao lado de
Israel.
O governo Netanyahu
é totalmente contra a ideia e, ao longo de anos de negociações de paz
fracassadas, "dois estados para dois povos" se tornou um slogan
vazio.
Mas tem sido um
pilar central da política externa dos EUA desde o início dos anos 1990.
O plano de Trump
também viola o direito internacional.
As afirmações
americanas de que o país acredita em uma ordem internacional baseada em regras
se dissolveriam. E as ambições territoriais da Rússia na Ucrânia e da China em
Taiwan seriam turbinadas.
<><> O
que as falas de Trump significam para a região?
Por que se
preocupar com tudo isso se o plano não está prestes a ser realizado — pelo
menos não da forma como Trump anunciou em Washington, observado por um
sorridente e claramente encantado Benjamin Netanyahu?
A resposta é que os
comentários de Trump, por mais absurdos que sejam, terão consequências.
Ele é o presidente
dos Estados Unidos, o homem mais poderoso do mundo — não mais um apresentador
de reality show tentando aparecer na mídia.
A curto prazo, a
interrupção causada por seu anúncio pode enfraquecer o já frágil cessar-fogo em
Gaza.
A ausência de um
plano para a governança futura de Gaza já é uma falha no acordo.
Agora Trump
forneceu um, e mesmo que não aconteça, ele toca em pontos muito sensíveis nas
mentes de palestinos e israelenses.
A fala de Trump
alimenta os planos e sonhos de extremistas ultranacionalistas israelenses que
acreditam que toda a terra entre o Mediterrâneo e o rio Jordão, e talvez além,
é uma posse judaica dada por Deus.
Seus líderes fazem
parte do governo de Netanyahu e o mantêm no poder — e eles estão felizes.
Eles querem que a
guerra de Gaza seja retomada com o objetivo de longo prazo de remover os
palestinos e substituí-los por judeus.
O ministro das
Finanças israelense, Bezalel Smotrich, disse que Trump havia fornecido a
resposta para o futuro de Gaza após os ataques de 7 de outubro.
Sua declaração
disse que "quem cometeu o massacre mais terrível em nossa terra se verá
perdendo sua terra para sempre. Agora agiremos para finalmente enterrar, com a
ajuda de Deus, a perigosa ideia de um Estado palestino."
Os líderes da
oposição centrista em Israel têm sido menos efusivos, talvez temendo problemas
futuros, mas expressaram uma recepção educada ao plano.
O Hamas e outros
grupos armados palestinos podem sentir a necessidade de responder a Trump com
algum tipo de demonstração de força contra Israel.
Para os palestinos,
o conflito com Israel é motivado pela desapropriação e pela memória do que eles
chamam de al-Nakba, "a catástrofe".
Esse foi o êxodo
dos palestinos quando Israel
venceu a guerra de 1948.
Mais de 700 mil
palestinos fugiram ou foram forçados a deixar suas casas pelas forças
israelenses.
Todos, exceto um
punhado, nunca foram autorizados a voltar e Israel aprovou leis que ainda usa
para confiscar suas propriedades.
Agora o medo é que
isso aconteça novamente.
Muitos palestinos
já acreditavam que Israel estava usando a guerra contra o Hamas para destruir
Gaza e expulsar a população.
Faz parte da
acusação deles que Israel está cometendo genocídio — e agora eles podem
acreditar que Donald Trump está legitimando os planos de Israel.
<><> Qual
a motivação de Trump?
Só porque Trump diz
algo, isso não o torna verdadeiro ou certo.
Suas declarações
são frequentemente mais como jogadas iniciais em uma negociação imobiliária do
que expressões da política estabelecida dos Estados Unidos.
Talvez Trump esteja
espalhando alguma confusão enquanto trabalha em outro plano. Dizem que ele
anseia pelo prêmio Nobel da paz.
Há um histórico de
prêmios que foram para pessoas que se dedicam à paz no Oriente Médio, mesmo
quando elas não foram bem sucedidas.
Enquanto o mundo
digeria seu anúncio sobre Gaza, Trump postou em sua plataforma de redes sociais
Truth Social que queria um "acordo de paz nuclear" com o Irã.
O regime iraniano
nega que queira armas nucleares, mas tem havido um debate aberto em Teerã sobre
se eles estão agora tão ameaçados que precisam das armas de destruição em
massa.
Por muitos anos,
Netanyahu quis que os EUA, com a ajuda israelense, destruíssem as instalações
nucleares do Irã. Fazer um acordo com o Irã nunca fez parte de seu plano.
Durante o primeiro
mandato de Trump, Netanyahu travou uma longa e bem-sucedida campanha para
persuadi-lo a retirar os EUA do acordo nuclear que o governo de Barack Obama
assinou com o Irã.
Se Trump queria dar
algo à direita radical israelense para mantê-la feliz enquanto ele faz propostas
aos iranianos, ele conseguiu.
Mas ele também
criou incerteza e injetou mais instabilidade na região mais turbulenta do
mundo.
Fonte: BBC News em
Jerusalem
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