segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

O que são as 'cidades-santuário' de imigrantes — e por que Trump escolheu Chicago para deportações

Los Angeles, Nova York, Houston, Chicago ou Atlanta são algumas das cidades com grande presença de migrantes sem documentos que têm políticas locais mais favoráveis à migração do que outras partes do país.

Mas, como foi o caso durante seu primeiro governo, a chegada de Donald Trump à Casa Branca representa um desafio para isso.

O presidente prometeu implementar uma política rígida de deportação de imigrantes sem documentos, com o objetivo de retirar um milhão de pessoas do país. E ele e suas principais autoridades têm como alvo essas cidades-santuário.

Chicago é uma das primeiras. O governo Trump ativou as primeiras operações e batidas para deter e deportar imigrantes sem documentos nessa cidade do norte. Mas elas também foram vistas no fim de semana em Atlanta, Denver, Miami e San Antonio.

O que significa para uma cidade se autodenominar "santuário" e como isso pode realmente beneficiar os imigrantes sem documentos?

·        A questão da parceria

O termo "santuário" para essas cidades vem da Idade Média, quando os mosteiros eram um santuário ou proteção para viajantes que queriam ser protegidos de bandidos ou pessoas que sofriam perseguição de escravos. Mas, nos EUA, esse termo passou a ser usado no final do século 20.

"Nas décadas de 80 e 90, ela renasceu graças a alguns membros religiosos e ativistas que ajudaram migrantes de El Salvador ou da Guatemala a escapar de regimes ditatoriais e a entrar nos EUA e permanecer em comunidades seguras, em cidades como Los Angeles, São Francisco ou Washington", explica à BBC o sociólogo Ernesto Castañeda, diretor do Laboratório de Imigração e do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade Americana em Washington DC.

Com o movimento pelos direitos dos imigrantes daqueles anos, inspirado pelas lutas na França e em outros países, alguns ativistas nos EUA começaram a se referir às cidades com grandes populações sem documentos como "santuários".

"É uma autodeclaração simbólica. Não tem definição legal, não existe uma lei federal de 'santuário' que diga o que é legal, o que é ilegal. É um caso a caso. Mas essas são cidades onde se busca a tolerância para com as populações estrangeiras, minoritárias e sem documentos", diz Castañeda.

Desde então, as autoridades de grandes cidades, como Nova York ou Los Angeles, começaram a adotar políticas mais favoráveis aos migrantes, sendo uma das principais o tipo de colaboração que mantêm com os órgãos federais de migração.

Quando uma pessoa sem documentos é detida pela polícia local, há duas opções: verificar seu status imigratório e notificar as autoridades de imigração ou não.

"Em Nova York, por exemplo, não há nenhuma exigência de que, se alguém for detido e não tiver documentos, as autoridades federais devem ser notificadas imediatamente. Mas as autoridades de imigração podem solicitar que a pessoa seja detida", explica Castañeda.

Outras cidades, principalmente de governos republicanos no sul do país, procuram processar os migrantes sem documentos por meio de agências federais.

"A questão é se a polícia espera que essas autoridades federais entrevistem e iniciem os casos de deportação ou se as pessoas são liberadas se não forem culpadas de um crime grave. É aí que há discrição", diz ele.

Como cada estado ou autoridade local tem suas próprias leis e políticas, cada força policial local, mesmo entre as que estão na mesma metrópole, pode ou não colaborar com os órgãos federais de migração.

A polícia da cidade de Los Angeles é diferente da polícia da cidade de Santa Mônica, embora estejam na mesma metrópole. Assim como os prefeitos, os chefes de polícia podem seguir suas próprias regras.

Castañeda ainda ressalta que há discrição entre os próprios policiais e até mesmo entre os escritórios do Immigration and Customs Enforcement (ICE) em cada localidade.

No entanto, o governo Trump — e outros republicanos no passado — procura garantir que haja o máximo de coordenação e colaboração possível.

·        Não se trata de uma defesa absoluta

Quando um indocumentado mora em uma cidade santuário, embora ele possa esperar facilidades para lidar com as autoridades sem ter que provar sua situação imigratória, isso não garante que os agentes federais não poderão cumprir suas funções.

Se uma pessoa sem documentos for presa por um crime, as autoridades de imigração que tomarem conhecimento do fato têm o direito de processá-la. Elas também podem invadir locais como empresas ou locais públicos, bem como residências particulares.

"Nos Estados Unidos contemporâneos, não existe uma verdadeira cidade 'santuário', onde agências federais como o ICE não entram para deportação. Não é verdade que uma pessoa sem documentos chegue lá e peça asilo e não possa ser deportada", ressalta Castañeda.

Ele garante que isso é algo que muitos imigrantes indocumentados sabem: "Se estiverem em situação irregular e tiverem ordens de deportação, eles desconfiam muito da polícia, não querem cometer nenhum crime, tentam não dirigir ou sair para não confrontar as autoridades. Dirigir embriagado ou algo do gênero pode levar à deportação."

No entanto, as críticas de Trump e de outros políticos republicanos têm sido constantes em relação à suposta "proteção" de imigrantes indocumentados por governos democratas em cidades-santuário.

Eles também criticam o fato de esses migrantes poderem fazer uso de programas de apoio ou de saúde, ou de serem favorecidos por recursos públicos.

"Os migrantes usam menos programas de assistência social do que outros grupos. Eles pagam mais impostos e aposentadorias que nunca reivindicam quando se aposentam, porque usam números falsos de seguro nacional ou deixam o país", diz Castañeda, coautor do livro Immigration realities: Challenging Common Misperceptions.

"Eles não pedem reembolso de impostos pagos em excesso. E muitos não se qualificam para programas de assistência por medo de serem expostos", acrescenta.

O fato de as cidades-santuário não cooperarem com as agências de imigração também implica uma diferença em termos de obtenção de recursos do governo federal.

A Casa Branca pode favorecer as autoridades estaduais e locais que ajudam suas políticas de imigração.

As administrações republicanas, como a de George W. Bush ou a primeira de Donald Trump, usaram regulamentações como a "Seção 287(g)" para incentivar as autoridades locais com recursos para realizar tarefas federais, como a revisão do status de imigração.

·        Chicago no centro das atenções

Em seu primeiro dia no cargo, Trump assinou uma série de ordens executivas sobre imigração que incluíam a revogação de uma lei que proibia os agentes federais de procurar imigrantes sem documentos em igrejas, escolas e hospitais, locais que antes eram considerados "sensíveis" e deveriam permanecer isentos de batidas de imigração.

Tom Homan, um de seus chefes na estratégia contra os imigrantes indocumentados, que foi chamado de "czar da fronteira", garantiu que uma das primeiras cidades a procurar e capturar esses imigrantes seria Chicago.

A cidade e o estado são governados por democratas. O prefeito Brandon Johnson e o governador JB Pritzker afirmaram que apoiam as leis de cidade santuário, conhecidas como decretos de "Cidade Acolhedora".

No entanto, no domingo, operações de imigração de várias agências foram realizadas em Chicago, com a presença de autoridades seniores na cidade para supervisioná-las.

Várias fontes disseram à CBS News, parceira da BBC nos EUA, que o alvo eram migrantes com mandados de prisão ativos.

Mas, desde a ascensão de Trump ao poder, existe a preocupação de que ela não se limite àqueles que já estão sujeitos a processos, mas se aplique a todos os indocumentados em geral, a fim de atingir o grande número prometido de centenas de milhares de deportados em seu governo.

Uma igreja até parou de oferecer missas em espanhol por medo de que os migrantes latinos fossem alvo dos agentes.

"Já temos crianças que estão começando a ter medo de ir à escola e não encontrar seus pais quando voltam para casa... Não queremos colocar nenhum membro de nossa congregação em risco de ser deportado", disse a reverenda Tanya Lozano à BBC dias atrás.

Castañeda argumenta que "o que o chamado 'czar da imigração' Homan está fazendo agora é viajar para cidades como Chicago para observar como os escritórios locais do ICE operam e para pressionar as autoridades locais por meio da mídia com ameaças de batidas".

"Em La Villita, um bairro muito mexicano e muito latino em Chicago, as pessoas estão com medo. E você vê que há menos atividade econômica e presença nas ruas, além da estação fria. Afinal de contas, se o ICE chegar, não há muito que o prefeito possa fazer para evitar invasões", acrescenta.

Outras cidades que também sofreram batidas ou incursões de agentes federais no fim de semana foram Denver, Houston, San Antonio, Miami e Atlanta.

Entretanto, Castañeda ressalta que, até o momento, não vimos nada em uma escala muito diferente do que aconteceu no passado, inclusive durante as administrações democratas na Casa Branca.

"Houve deportações, inclusive durante o governo de Joe Biden ou Barack Obama, que foram muito grandes. Mas havia menos cobertura diária da mídia sobre essas deportações. E agora os números são semelhantes, mas há muito mais atenção do público para o que está acontecendo e como está sendo feito", ressalta o especialista.

"Mas parece que ele quer fazer algo em uma escala maior, em uma velocidade mais alta, com mais agressividade."

 

¨      'Estou feliz porque meu filho está chegando são e salvo, mas triste pelo fim do sonho dele nos EUA'

Sentada em um café no saguão do Aeroporto Pinto Martins, em Fortaleza, Helena (nome fictício) olha o celular com preocupação.

Há horas, ela aguarda para rever o filho de 33 anos que está voltando ao Ceará no segundo voo com brasileiros deportados dos Estados Unidos.

"Estou feliz porque meu filho está chegando são e salvo, mas triste pelo fim do sonho dele", diz, depois de receber uma rápida chamada de Leonardo (nome fictício) contando que já estava em solo brasileiro e que havia acabado de se alimentar depois de uma longa viagem de 12 horas.

Os brasileiros deportados dos Estados Unidos que chegaram nesta sexta-feira (7/2) ao aeroporto de Fortaleza não tiveram acesso a alimentação durante o voo e alguns foram transportados algemados, informou a secretária de Direitos Humanos do Ceará, Socorro França, em coletiva de imprensa.

A família de Helena, que vive em um bairro de classe média de Fortaleza, está apreensiva desde o dia 2 de janeiro, antes mesmo da posse do presidente americano Donald Trump e do início de sua política de deportação em massa.

Naquela data, Leonardo foi detido em Miami ao estacionar seu carro, com placa da Flórida, em uma via proibida. Ouviu o policial bater no vidro do automóvel e mal teve tempo de calçar os sapatos antes de descer do veículo, com as mãos para trás.

Leonardo havia entrado nos Estados Unidos com o visto regular há três anos, mas extrapolou o tempo permitido para permanecer no país.

Apesar de ter se formado em Tecnologia da Informação no Brasil, ele trabalhava informalmente como "faz tudo" para uma companhia da construção civil e fazia bicos nos Estados Unidos.

"Meu filho é mais um brasileiro que sai daqui e vai para os Estados Unidos arranjar um trabalho e viver melhor", conta Helena. "Sempre foi o sonho dele ir para lá".

Leonardo chegou em Nova Jersey em 2021 e viveu lá dois anos. Não demorou para conseguir comprar um carro com o dinheiro dos trabalhos informais, o que lhe encheu de esperança para construir a vida em solo americano.

Faltava, porém, sentir-se mais integrado ao modo de vida norte-americano.

Por isso, em outubro do ano passado, ele se mudou para a Flórida. Sublocou um quarto em uma casa, onde moravam outras duas pessoas. Estava satisfeito, com a sensação de haver encontrado o seu lugar.

"Ele me disse: aqui é o lugar de se morar. É tudo lindo e maravilhoso", conta a mãe.

No fim do ano passado, porém, Leonardo decidiu ir para Miami por alguns dias para passar as festas de réveillon e fazer bicos de entregador de sushi. Foi quando acabou detido e depois transferido a um centro de imigração.

Ficou mais de um mês neste centro, em condições que a mãe descreve como razoáveis. O problema é que a audiência judicial que resolveria o destino de Leonardo foi marcada para o sétimo dia do governo de Donald Trump e, embora ele tenha solicitado a deportação voluntária — por meio da qual retornaria ao seu país por seus próprios meios —, o juiz recusou.

"O ambiente político havia mudado completamente", afirma o irmão dele, que também o aguardava no aeroporto de Fortaleza e pediu para não ser identificado.

Leonardo foi deportado compulsoriamente e desembarcou na capital cearense pouco depois das 16h desta sexta-feira.

A família pagou US$ 600 (cerca de R$ 3,6 mil) a uma pessoa nos Estados Unidos para recolher uma mochila com alguns pertences dele na Flórida e viajar três horas para entregá-la no centro de imigração em Miami antes do embarque. Suas malas ainda não têm data para serem trazidas por algum amigo ao Brasil.

Leonardo chegou junto com outros 110 brasileiros, entre homens, mulheres e várias crianças. Eles foram recebidos por autoridades brasileiras de órgãos ligados aos direitos humanos com comida, kit de higiene e apoio psicológico e jurídico, depois de 12 horas de viagem sem receber comida.

Durante o trajeto, homens tiveram braços e pernas algemados, enquanto as crianças e mulheres foram poupadas, conforme relataram autoridades brasileiras.

As algemas foram retiradas apenas durante o desembarque da aeronave, evitando repetir as cenas da chegada de repatriados em Manaus no último mês de janeiro, que saíram algemados em solo brasileiro.

O uso de algemas, em pés e mãos, para adultos brasileiros durante os voos em aviões fretados para deportação pelos Estados Unidos é prática comum dos agentes do ICE, o serviço de alfândega e imigração dos EUA, que comandam esses voos.

Apesar dos recorrentes protestos da diplomacia brasileira contra o uso indiscriminado de correntes e algemas, as autoridades americanas costumam argumentar que a imobilização dos deportados é necessária para garantir a segurança do voo e da tripulação.

A praxe é que tais dispositivos sejam retirados antes do desembarque, até porque, da perspectiva legal do Brasil, os deportados não cometeram qualquer tipo de crime em solo pátrio.

<><> 'Machucados emocionalmente'

"Estávamos preocupados com o estado deles", disse a secretária de Direitos Humanos do Ceará, Socorro França, em entrevista coletiva após a chegada dos repatriados na sexta-feira. "As pessoas só comeram quando desembarcaram."

Ela também afirmou que encontrou os brasileiros repatriados "muito machucados emocionalmente" e ouviu relatos de que sofreram muito por estarem presos, quase sem alimentos.

"Vemos com preocupação a forma como estas pessoas estão sendo conduzidas ao Brasil", disse o defensor público federal Edilson Santana, que acompanhou a ação, mencionando especialmente o uso de algemas nos braços e pernas dos repatriados durante o deslocamento.

"Eles acham que todo mundo que está sendo deportado é bandido. Não é. Tem muitas famílias", diz Helena, no saguão do aeroporto.

Ela ainda não havia encontrado o filho, um dos cerca de 16 repatriados que ficariam no Ceará, segundo uma fonte que acompanhava a ação.

Enquanto buscava, aflita, mais informações por onde Leonardo desembarcaria, Helena recebeu uma ligação. Era o filho, dizendo para que ela o aguardasse em casa.

"Você acha que eu não iria vir te esperar aqui?", ela disse. Diante da ampla movimentação da imprensa no local, acabou convencida a retornar sem ele para casa, depois de uma espera de mais de quatro horas.

Isso porque o fato de ter conversado com o filho por telefone havia lhe tranquilizado. "Fiquei muito preocupada quando vi a chegada dos brasileiros em Manaus. Achei desumano", diz, referindo-se ao primeiro voo com brasileiros deportados pelo Governo Trump.

A descida de brasileiros algemados gerou denúncias de maus-tratos e levou o Brasil a impedir que aviões sobrevoem o território nacional com imigrantes acorrentados ou com algemas. Foi assim que Fortaleza, uma das cidades mais próximas dos Estados Unidos, foi escolhida para o desembarque dos repatriados, que estava previsto para acontecer diretamente em Minas Gerais.

Quando Helena deixou o saguão do aeroporto da capital cearense na noite de sexta com seu outro filho, a maioria dos brasileiros repatriados já havia seguido para Minas Gerais em um avião da Força Aérea Brasileira (FAB).

Durante o primeiro acolhimento em Fortaleza, eles puderam contatar a família e ter apoio para poderem recomeçar suas vidas. Receberam informações sobre como regularizar documentos e acessar direitos por meio de representantes da Defensoria Pública da União.

"Eles estão saindo daqui [Fortaleza], sabendo que estão sendo repatriados e com o governo totalmente disposto a recebê-los da melhor forma", afirma Mitchelle Meira, titular da Secretaria da Diversidade do Ceará.

A estimativa é de que aproximadamente 30 mil brasileiros ainda aguardam deportação dos Estados Unidos.

 

Fonte: BBC News Brasil

 

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