segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Papagaio de pirata à frente da Câmara

Papagaios de piratas são caricatos. Não pensam por si mesmo, mas falam (em língua canhestra) repetindo o que ouvem. Como geralmente ouvem mais imprecações do pirata, seu dono e feitor, aprendem mais palavras chulas e bobagens do que se fossem “educados” por um filósofo, por exemplo – se bem que filósofos não são dados a pensar em voz alta... Mas, o fato é que desde 1º de fevereiro de 2025, com as eleições das mesas diretoras da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, temos dois novos personagens na vida pública brasileira: os presidentes da Câmara e do Senado (o conhecido senador Davi Alcolumbre, que retorna ao posto, e o novato Hugo Motta, na Câmara). Eleito com 444 votos, votação só inferior ao recorde do mentor, o presidente anterior da Câmara, Arthur Lira, que teve 464 votos em fevereiro de 2023, o deputado Hugo Motta (Republicanos-PB), 35 anos, o mais precoce presidente do cargo que o põe em 2º lugar na linha de sucessão da Presidência da República, danou a dar entrevistas aos mais variados meios de comunicação para mostrar seu pensamento. Antes de ser eleito presidente da Câmara, Motta passou por um curso intensivo de treinamento com aconselhamento de economistas e cientistas políticos, além de sessões de “mídia-training” para falar com desembaraço em entrevistas ao vivo na TV, internet ou para os veículos de rádio e a imprensa tradicional (jornais e revistas). Está repetindo bem os ensinamentos dogmáticos, sobretudo em economia e questões políticas. Mas, o conteúdo carece de credibilidade porque, antes de tudo, Hugo Motta precisa ter jogo de cintura e adaptar seu raciocínio às mudanças da conjuntura (teria de ter um “coach” para evitar deslizes nas entrevistas, como nesta sexta-feira, em sua terra natal).

No fim do ano passado, quando estava em campanha, o mundo estava apreensivo com as mudanças tarifárias (inflacionárias) defendidas por Donald Trump, que levaram o Federal Reserve Bank a pausar a baixa dos juros, houve escalada do dólar em todo o mundo, com especulação contra duas moedas: o iene japonês e o real brasileiro. Esta escalada, em meio ao cenário de estiagem e incêndios no Sudeste e Centro-Oeste, turbinou os preços dos alimentos e alimentou a especulação do mercado financeiro contra o dólar. E um dos argumentos recorrentes era de que a alta do dólar tinha origem na desconfiança do mercado financeiro quanto ao desequilíbrio fiscal. Ao fim de 2024, o tal déficit fiscal primário, estimado de 1% a 1,5% do PIB (R$ 200/150 bilhões) não chegou a 0,1% do PIB, ou R$ 43 bilhões, porque foi menor e o PIB cresceu o dobro do que previa o mercado. E, nos três últimos meses, as receitas cresceram mais do que as despesas.

·        Em economia, passado já não conta

Como Trump não adotou de imediato o choque tarifário, desde meados de janeiro e especialmente após a sua posse, em 20 de janeiro, o dólar vem caindo em todo o mundo e em especial no Brasil. Depois de ter escalado 27% em 17 de dezembro, quando atingiu o pico de R$ 6,3144, o dólar não para de cair. Baixou no fim do ano e perdeu 5,6% contra o real em janeiro. Na sexta-feira, chegou a cair a R$ 5,75, mas reagiu à tarde para a faixa de R$ 5,79. Uma baixa de 8,2% desde 17 de dezembro. É esta reversão que o presidente Lula está querendo nos preços dos alimentos, que subiram no embalo do dólar e ganharia mais velocidade no recuo se os consumidores resistissem aos preços altos. Sexta-feira a Fundação Getúlio Vargas divulgou o IGP-DI de janeiro (o IBGE divulga o IPCA, a inflação oficial de janeiro terça-feira, dia 11): após subir 0,87% em dezembro, os preços tiveram alta de só 0,11% em janeiro. A baixa foi acentuada nos preços por atacado que subiram 1,00% em dezembro e apenas 0,02% em janeiro. Falta vir para o consumidor.

Mas vejam a síntese de bobagens que disse Hugo Motta em entrevista a jornais, rádios, internet e TV em seu estado: o presidente da Câmara voltou a cobrar que o governo faça a lição de casa para resolver o problema da alta dos alimentos: "Governo tendo mais responsabilidade com corte de gastos e despesas é o caminho". E reiterou: "A solução para resolver a situação da alta dos alimentos no nosso país, ela não passa, na minha avaliação, por decisões simples, fáceis. Ela requer de nós decisões mais duras, passa pelo fiscal". Pelo visto, Hugo Motta ainda não se desligou das planilhas de treinamento e anda repetindo, como papagaio um “script” que alguns comentaristas políticos também repetem na TV, mesmo quando o dólar está mudando a realidade do cenário e o déficit fiscal está sob controle. Hugo Motta precisa atualizar a assessoria para não fazer carreira caricata como alguns antecessores oriundos do Nordeste.

Não cabe a comparação com o pernambucano Severino Cavalcanti (PP-PE). Eleito em fevereiro de 2005, como uma “zebra” - o PT quis concorrer com Luiz Eduardo Greenhalgh contra um candidato do Centrão, mas não teve maioria no 1º turno e perdeu no 2º turno, por 300 a 195 votos para Severino. O presidente da Câmara teve de renunciar em setembro, acusado de receber R$ 10 mil mensais para renovar a concessão do restaurante da Casa. A figura caricata a que me refiro é a do presidente da Câmara no governo José Sarney, Sebastião Paes de Andrade (MDB-CE). Como Sarney assumiu a presidência como vice de Tancredo Neves, de fevereiro de 1989 a fevereiro de 1991, quando presidiu a Câmara, nas viagens de Sarney ao exterior, o cearense de Mombaça assumiu a Presidência da República e levou vastas comitivas de políticos e jornalistas para exercer o cargo na terra natal. O máximo da jequice política. Hugo Motta está começando mal, ao associar desequilíbrios fiscais à alta dos alimentos, causada pelas mudanças climáticas e pelo dólar de Trump. Mas o pior de tudo é que quer passar pano na ação dos golpistas que levou ao 8 de janeiro de 2023...

·        Socorro, Sérgio Dourado toma conta do mundo

Os leitores mais jovens não devem saber a quem estou me referindo. Mas quem nasceu nos anos 60 e transitou pela Zona Sul associa imediatamente a figura do corretor Sérgio Dourado à especulação imobiliária que atingiu os baixos de Ipanema, Leblon, Jardim Botânico, Gávea e Lagoa, além de parte de Botafogo e São Conrado. Sérgio Dourado deu poucos passos na Barra (quebrou antes do “boom” imobiliário local). Copacabana tinha sido tomada nas décadas anteriores. A construção dos túneis Santa Bárbara, ligando o Catumbi a Laranjeiras, e os dois túneis Rebouças, ligando o Rio Comprido à Lagoa, atraiu a classe média da Tijuca e regiões da Zona Norte para a Zona Sul. E a erradicação das favelas (como as áreas das antigas favelas da Praia do Pinto, da Catacumba e do Parque Proletário da Gávea), para 50 a 100 km distante, gerou a conquista de novos espaços para a construção de imóveis para a classe média. Como todo especulador imobiliário, Sérgio Dourado tinha estética extravagante e fazia de tudo para valorizar os imóveis (mesmo que não valessem o que pedia).

Era o protótipo, em escala nacional, do que viria ser Donald Trump ao herdar os negócios de seu pai, Fred Trump. Morto em 1999, Frederick Christ Trump fez sucesso em empreendimentos imobiliários para a classe média baixa nos bairros do Queens e do Brooklin, em Nova Iorque, contando com subsídios e incentivos governamentais. Era como os financiamentos do BNH nos anos 60 e 70 no Brasil. A estética da especulação imobiliária fez a festa na vasta planície da Barra, Recreio e Jacarepaguá. Mas a “indústria imobiliária” em todo o mundo vive da transformação de uma área erma em um condomínio ou conjunto habitacional. Com suporte de verbas públicas para transporte, arruamento, água e esgoto, energia, gás e serviços de telecomunicações, os projetos decolam e privatizam lucros.

No caso do Rio de Janeiro, o “boom” de três décadas se alavancou nas áreas removidas das favelas da Zona Sul, enquanto outras áreas se desvalorizavam no sentido inverso, se os arredores contemplavam a expansão de comunidades pobres. Tinha um grande amigo, já falecido, que dizia que, se dependesse do Sérgio Dourado Lopes, morto em 2018, a Lagoa Rodrigo de Freitas seria aterrada para criar novas áreas para a construção (as lagoas da Barra tiveram as margens aterradas). Certa noite tive um pesadelo: Sérgio Dourado tinha virado prefeito do Rio e estava acabando com as praças (antigos viradouros dos bondes, que foram preservados e arborizados) e arrasando morros para construir prédios...

Pois não é que, desde 20 de janeiro de 2025, o pesadelo virou global?! O novo Sérgio Dourado, com cabeleira mais vistosa que as das perucas do original, está ameaçando o mundo todo. Donald Trump nunca escondeu que seu instinto predatório de corretor/empreendedor imobiliário guia seus passos na política. No primeiro governo, queria intervir no Federal Reserve Bank (absolutamente independente nos Estados Unidos) para forçar a rápida redução dos juros. Como se sabe, juros altos, além de combater a inflação, são ruins para as especulações imobiliárias e o mercado de ações. O patrimônio imobiliário de Trump, e dos americanos em geral, tomou um tombo com a crise financeira mundial de 2008, originada da dupla e tripla hipoteca dos imóveis que desaguou no estouro da bolha imobiliária do subprime. Os imóveis ainda não recuperaram os níveis de preços de 2008, e Trump já deixou escapar sua gana na baixa dos juros.

Mas a desfaçatez do presidente americano, que quer repetir a política do “big stick” implementada no começo do século passado na América Latina e Caribe pelo presidente Theodore Roosevelt Jr, que aplicou a Doutrina Monroe do século anterior, com as bravatas de incorporar o Canadá com o 51º estado norte-americano, de assumir o controle do Canal do Panamá, e de tomar conta da Groelândia, vasto território gelado da Dinamarca, rompeu todos os limites da ética, da moralidade e da humanidade ao propor, esta semana, a transformação da Faixa de Gaza num grande projeto imobiliário.

A grandeza americana foi construída entre a primeira e a segunda guerra, quando, sob o comando de Franklin Roosevelt, emergiu como nação hegemônica no Ocidente, e que teve mais força (ou o senso de oportunidade, como considero) de fazer o Plano Marshall, para reconstruir as economias europeias destruídas pela 2ª guerra, para que os EUA tivessem com quem comerciar no mercado europeu. Mas isso está sendo destruído rapidamente pelo mote do MAGA (Make America Great Again). Donald Trump evocou uma ideia do genro especulador Jared Kushner, marido da filha Ivanka Trump, extravasada em março de 2024, de transformar a Faixa de Gaza, reduzida a escombros por Israel, em uma nova “Riviera Francesa”. Ou seja, a completa limpeza étnica dos quase dois milhões de palestinos que viviam em Gaza, para dar lugar a empreendimentos que atraíssem turistas de todo o mundo para a orla de Gaza, no Mediterrâneo. Quem teria paz de espírito para desfrutar o lugar?

As nações com um mínimo de pudor reagiram na hora. Os alemães e os países europeus jamais pensaram em transformar os espaços ocupados pelas câmaras de gás do regime nazista em empreendimentos imobiliários. As câmaras de gás de Auschwitz, Treblinka e demais campos na Polônia e na própria Alemanha, como Dachau, na área de Munique, foram preservadas para que a humanidade nunca se esqueça do horror do Holocausto. Mas Trump não teve vergonha de desembrulhar sua ideia nos Estados Unidos, ao lado do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu. Os estômagos das pessoas éticas e com o sentido do amor de Jesus Cristo reagiram indignados. O presidente Lula, tão criticado por ter dito que o massacre de Israel aos palestinos na Faixa de Gaza lembrava os métodos de perseguição nazista aos guetos judeus, manifestou suas críticas a Trump e a Israel de Netanyahu. Muita gente se calou, desta vez.

·        O que vem além dos imóveis?

Mas, aqui para nós, diante dos planos expansionistas de Trump, que ignora princípios morais e éticos, para criar uma nova Dubai ou um Balneário Camboriú na Faixa de Gaza, não seria exagero aprofundar nas investigações em torno dos planos de Jared Kushner para o Oriente Médio. No governo anterior de Trump, que perdoou as 18 condenações criminais do sogro da filha, Charles Kushner, o primeiro genro andou em tratativas com o Catar, Arábia Saudita, Emirados, Israel e Jordânia para um acordo de paz no Oriente Médio. A missão envolvia planos de expansão do projeto do gasoduto do Catar (maior produtor de gás do mundo) para o sul da Europa, em concorrência aos gasodutos que levavam o gás russo à Alemanha e ao norte da Europa. Mas havia uma pedra no caminho: a Síria, de Bashar Al Assad, defendida pela Rússia de Putin. Com a derrota de Trump para Biden, os planos foram esquecidos.

Mas com a invasão da Rússia pela Ucrânia, que completa três anos este mês, o Exército russo teve de concentrar o foco na Ucrânia, amparada por pesados armamentos e ajuda financeira do Ocidente. Sem o farto dinheiro da venda de gás (os russos estão fazendo operações triangulares com China e Índia para escoarem o gás e o petróleo, que voltam à Europa), Putin deixou o Estado Islâmico derrubar a ditadura Síria. Sem os palestinos em Gaza, os gasodutos e oleodutos poderiam cortar a região e a Síria, rumo ao sul da Europa (Romênia, França e Itália). Num mundo sem ética e limites, tudo seria possível. Quem sabe Israel venha a propor o reassentamento dos palestinos nos condomínios construídos por Israel nas últimas três décadas para ocupar as colinas de Golan?

E, por aqui, os êmulos trumpistas podem muito bem se empolgar com a “Riviera de Gaza” e atrair projetos semelhantes para áreas ainda intocadas do litoral brasileiro e levar adiante a ideia da privatização das praias. “Vade retro” os laranjas que são os patronos do projeto.

 

¨      Trump e a estratégia do 'bode na cela'. Por Nuno Vasconcellos

A proposta do presidente Donald Trump, feita na terça-feira passada, de transformar a conturbada Faixa de Gaza num território sob administração dos Estados Unidos, ganhou manchetes de jornais do mundo inteiro e deu o que falar. Ao lado do primeiro-ministro de Israel Benjamin Netanyahu, que o visitou em Washington, Trump voltou a mencionar o plano de deslocar a população palestina para territórios no Egito e na Jordânia. E causou rebuliço ao anunciar a intenção de converter a Faixa de Gaza em algo que ele chamou de “Riviera do Oriente Médio”.

A ideia, que foi jogada ao ar sem o amparo de qualquer estudo ou de qualquer consulta prévia às partes interessadas, é transformar aquele “pedaço de terra” — como Trump se referiu à Faixa de Gaza — num complexo que atrairia turistas e geraria renda e empregos para a população local. A ideia foi prontamente rechaçada. A Arábia Saudita, um dos primeiros governos a se pronunciar, reafirmou sua “posição firme, constante e inabalável” pela implantação de um Estado palestino na região.

A questão reverberou no mundo. A França, o Reino Unido, a Austrália e outros aliados tradicionais dos Estados Unidos não pouparam críticas a Trump. O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, também se pronunciou. Ele culpou Israel por todo mal que tem acontecido no Oriente Médio — e criticou os Estados Unidos pelo apoio incondicional ao aliado. “Os Estados Unidos participaram do incentivo de tudo o que Israel fez na Faixa de Gaza”, disse Lula em entrevista a emissoras de rádio de Belo Horizonte. “O que aconteceu em Gaza foi um genocídio e eu, sinceramente, não sei se os Estados Unidos, que fazem parte de tudo isso, seriam o país para cuidar” da região, disse Lula. “Quem tem que cuidar de Gaza são os palestinos. O que eles precisam é ter uma reparação de tudo aquilo que foi destruído, para que possam reconstruir suas casas, hospitais, escolas e viver dignamente com respeito”.

MENTIRA REPETIDA

Muita gente se manifestou sobre o assunto, até os terroristas do Hamas — os mesmos que, no dia 7 de outubro de 2023, invadiram o território israelense, estupraram mulheres, torturaram jovens indefesos, trucidaram idosos, estriparam crianças, cometeram 1200 assassinatos e arrastaram para suas masmorras, como reféns, 253 inocentes. Para o Hamas, a retirada da população do local significaria a perda do escudo protetor que, ao longo dos anos, vem lhes permitindo praticar atendados terroristas contra civis israelenses e, depois, se esconder atrás da população local.

Quem acompanha o conflito no Oriente Médio e não se seduz pela ideia fácil e oportunista de jogar nas costas de Israel a culpa por todos os males da região sabe como o Hamas age. O uso de hospitais e escolas como bases das milícias terroristas, assim como as ameaças a civis forçados a permanecer nas regiões bombardeadas para servir de escudos humanos são provas suficientes de que, para esse pessoal, a manutenção da Faixa de Gaza como um amontoado de pessoas vivendo em condições deploráveis é vista como essencial para se alcançar o objetivo de destruir o Estado de Israel.

Como se falasse em nome de cordeirinhos inocentes, e não de uma alcateia de lobos sanguinários, o “porta-voz” dos terroristas, Abdel Latif al Qanua, classificou a proposta de Trump como “racista”. Disse, ainda, que a ideia “está alinhada com a da extrema direita israelense e consiste em deslocar o nosso povo e erradicar a nossa causa”. O terrorista considerou a ideia “agressiva para nosso povo e nossa causa”. E afirmou que ela “não servirá para a estabilidade na região e apenas jogará mais lenha na fogueira”. É repugnante ouvir palavras como essas, ditas por alguém que fala em nome de “ativistas” que — para citar apenas um exemplo de sua covardia — consideram legítimo sequestrar e manter inocentes no cativeiro por quase 500 dias. Seja como for, a insistência dos terroristas e de seus apoiadores em transferir para os agredidos a responsabilidade pelo conflito que eles mesmos provocaram é uma daquelas mentiras que estão dispostos a repetir mil vezes até que consigam transformá-las em verdades — como aprenderam com seu mestre, o ministro da propaganda nazista Joseph Goebbels.

CONSEQUÊNCIAS

Num ambiente como esse, contaminado pelo radicalismo e pela lei da ação e reação, apenas uma ideia aparentemente absurda, como a de Trump, parece capaz de acrescentar novos argumentos à discussão. Diante da rejeição da proposta, a ideia de transformar a Faixa de Gaza na Riviera do Oriente Médio não tem chance de virar realidade. Mas, conforme observou o editor de assuntos internacionais da BBC, Jeremy Bowen, em artigo publicado na semana passada, “o plano de Trump para Gaza não acontecerá, mas terá consequências”. E essas consequências, sem dúvida, impactarão as vidas dos cerca de 2,3 milhões de pessoas que vivem nos mais ou menos 40 quilômetros de comprimento por 11 quilômetros de largura da Faixa de Gaza.

É preciso ter claro que, muito antes dos bombardeios intensos que destruíram ou danificaram praticamente todas as construções da área, as condições de vida na Faixa de Gaza já eram deploráveis. E, num ambiente deteriorado como aquele, é razoável supor que muitas das pessoas que vivem ali não veem a hora de deixar a região e encontrar um lugar melhor para viver. O governo de Israel, inclusive, já anunciou a decisão de facilitar o deslocamento dos moradores da Faixa de Gaza que pretendam deixar a região com destino a países que se disponham a recebê-los como imigrantes ou exilados. Até o momento, porém, nenhum país, nem no mundo árabe nem de outras regiões do mundo, se dispôs a abrir a porta para acolher os palestinos...

O problema é complexo e, para resolvê-lo será preciso mais do que manifestações acaloradas em defesa do direito do povo palestino a viver na Faixa de Gaza. Qualquer proposta de solução deve levar em conta os aspectos práticos e logísticos que envolvem, antes da reconstrução das moradias e dos equipamentos públicos destruídos pela guerra, a remoção de milhões e milhões de toneladas de escombros. Apenas essa operação vai exigir anos de trabalho, maquinário, cuidados com a destinação dos rejeitos e, claro, investimentos vultosos. Diante de um cenário como esse, o pior a fazer é fechar os ouvidos para propostas como a de Trump e se recusar a avaliar o que poderia haver de positivo caso a iniciativa fosse levada adiante. Entregar a administração da Faixa de Gaza aos Estados Unidos ou, talvez, a uma coligação sem ligações explícitas com um lado ou com o outro do conflito, seria trazer de volta a velha teoria do “algodão entre cristais” — que acelerou o movimento pela independência do Uruguai, concluído em 1828. Naquele episódio, a Inglaterra, sob a liderança do então chanceler George Canning, achou necessário criar um anteparo capaz de reduzir os atritos entre os recém-independentes Brasil e Argentina — e, com isso, evitar que os dois se envolvessem num conflito que parecia iminente. A intenção do chanceler, que morreu um ano antes de ver o trabalho concluído, era evitar uma guerra que prejudicaria a expansão dos negócios ingleses na região. Assim, resolveu apoiar o movimento liderado por José Artigas e, com isso, contribuiu para a criação da República Oriental do Uruguai — cujo território era disputado pelos vizinhos maiores.
COVIS DO HAMAS

O que isso tem a ver com a Faixa de Gaza? Muita coisa! Guardadas as devidas proporções, a ideia de Trump, levada adiante, resultaria na transformação da Faixa de Gaza num anteparo capaz de evitar os choques inevitáveis na fronteira de dois países inimigos e seria importante até para viabilizar a ideia de criação de um Estado Palestino em territórios que hoje pertencem à Jordânia e ao Egito — que nem querem ouvir falar nessa possibilidade. É preciso enfrentar essa discussão com mais seriedade. Da mesma forma que a ideia de Trump de fazer na Faixa de Gaza um complexo turístico internacional foi descartada sem discussão pelos adversários dos Estados Unidos e de Israel, a possibilidade de, pura e simplesmente, se implantar um Estado Palestino em Gaza e na Cisjordânia, como tudo indicava que aconteceria, morreu no dia 7 de outubro de 2023.

Israel sabe que qualquer Estado palestino que se implante na região neste momento será dominado pelos terroristas do Hamas. E, embora esteja enfraquecido por um ano e meio de guerra, o grupo continua vivo e disposto a dar demonstrações de força. Uma prova disso tem sido dada pelos terroristas bem armados, vestindo trajes de combate e com as caras escondidas atrás de panos pretos, que assumem posições ameaçadoras ao lado dos reféns recém libertados em função do atual acordo de cessar fogo mediado pelo Catar, pelo Egito e pela antiga administração democrata dos Estados Unidos. A atitude de tentar mostrar valentia ao lado de vítimas indefesas e acuadas não passa de uma provocação desnecessária de um bando que insiste em afirmar sua autoridade sobre Gaza.

Gestos como esse servem apenas para comprovar a impossibilidade da ideia de se instalar um Estado palestino na região, neste ou em qualquer outro momento nos próximos anos. Assim como o Hamas nunca renunciou a seu objetivo principal — que não é a instalação do Estado palestino, mas a destruição de Israel e a eliminação da presença do povo judeu da face da Terra — o governo de Benjamin Netanyahu, ou de qualquer outro primeiro-ministro que venha sucedê-lo, não desistirá do objetivo de perseguir e eliminar o bando terrorista até o último homem. Insistir neste momento, na criação pura e simples de um estado palestino na região neste momento não é apenas jogar lenha na fogueira. É tentar apagar o incêndio com gasolina.

É esse o cenário que deve servir como pano de fundo para a proposta apresentada por Trump na semana passada. A postura do presidente dos Estados Unidos nesse episódio faz lembrar a história de um delegado de polícia de uma cidadezinha do interior do Brasil. Cansado de ouvir queixas sobre as goteiras, a falta de conforto e outras precariedades da cela da delegacia, mandou colocar um bode para dividir o espaço exíguo com os prisioneiros. Quando isso aconteceu, eles deixaram de reclamar dos outros problemas e passaram a se queixar da presença do animal. Depois de uma semana, o lugar, que havia se transformado num inferno, se tornou um poço de tranquilidade depois que o bode foi tirado lá de dentro. Trump sabe que a ideia da Riviera do Oriente Médio tem chances remotas de ir adiante. Mas, ao apresentá-la, ele fez como o delegado dessa história: criou um incômodo maior e mostrou que não basta reclamar da situação da população de Gaza nem adianta insistir na defesa da criação de um Estado palestino na região (algo que só não aconteceu no mesmo momento da criação de Israel, em 1948, porque os líderes palestinos se recusaram a compartilhar o espaço com o povo judeu). Qualquer solução para o conflito no Oriente Médio precisa levar em conta os interesses de Israel. No rescaldo da discussão que se seguiu à sua proposta, Trump tem autoridade suficiente para chamar os países que se opuseram à sua ideia e estabelecer as condições para que eles participem do debate. E essas condições incluem não só o apoio verbal a um lado ou outro, mas também a disposição de ajudar a pagar a conta de uma solução que, seja ela qual for, exigirá muito dinheiro.

 

Fonte: Por Gilberto Menezes Côrtes, no JB/O Dia

 

Nenhum comentário: