O passado obscuro
da Groenlândia: 'Genocídio'
Em uma colina acima
da catedral de Nuuk, há uma estátua de mais de 2 metros do missionário
protestante Hans Egede.
Ele reabriu a
conexão da Groenlândia com o norte
da Europa no início dos anos 1700, e lançou as bases para o estabelecimento da
mais orgulhosa possessão colonial da Dinamarca.
Um dia, no fim da
década de 1970, a figura de bronze foi subitamente coberta com tinta vermelha.
Me lembro bem deste
dia — eu passava pela estátua todos os dias na minha caminhada até a escola.
Passei dois anos morando na Groenlândia enquanto meu pai dava aula de geografia
na Faculdade de Formação de Professores de Nuuk.
Era evidente que
nem todos, entre a maioria inuíte, estavam felizes com as mudanças que Egede
havia levado para a Groenlândia um quarto de milênio antes.
O tilintar das
garrafas de cerveja dentro de sacolas plásticas cheias, levadas pelos inuítes
para seus minúsculos apartamentos — geralmente muito menores do que aqueles em
que nós, dinamarqueses, morávamos —, era um testemunho do alcoolismo generalizado,
um dos males que a Dinamarca havia levado para a Groenlândia, em meio a muitas
coisas que eram inegavelmente boas: saúde moderna, boa educação.
Mas, fora a estátua
coberta de tinta, o sonho de a Groenlândia se tornar independente da Dinamarca
estava apenas começando a se manifestar lentamente.
Na Faculdade de
Formação de Professores, bem ao lado da minha escola, estava se desenvolvendo o
mais próximo que a Groenlândia chegou de ter um movimento estudantil radical —
alguns jovens da faculdade exigiam que as aulas fossem ministradas em seu
idioma nativo da Groenlândia
No fim da década de
1970, a capital passou a se chamar Nuuk, e não mais Godthaab, seu nome oficial
por mais de dois séculos.
Agora, décadas
depois, a mudança está em andamento mais uma vez, já que Donald Trump está de olho
em obter o controle do
país.
Perguntado em
janeiro se ele descartava o uso de força militar ou econômica para tomar o
território autônomo dinamarquês ou o canal do Panamá, ele respondeu: "Não,
não posso garantir nada sobre nenhum desses dois. Mas posso dizer o seguinte:
precisamos deles para a segurança econômica."
Mais tarde, no Air
Force One, ele disse aos jornalistas: "Acho que vamos conseguir",
acrescentando que os 57 mil habitantes da ilha "querem estar
conosco".
·
A
questão é: será que eles querem?
Enquanto isso, a
primeira-ministra dinamarquesa, Mette Frederiksen, insistiu que a Groenlândia
não está à venda. "A Groenlândia pertence aos groenlandeses", ela
disse. "São os próprios groenlandeses que têm que definir seu
futuro."
Mas, afinal, como os habitantes
da ilha querem que seja esse futuro — e se ele não prever fazer parte do
reino da Dinamarca, qual seria a alternativa?
Relação tensa com
os dinamarqueses
Uma pesquisa com os
groenlandeses sugeriu que apenas 6% deles querem que seu país se torne parte
dos EUA, com 9% indecisos e 85% contra. Mas, apesar disso, Frederiksen sabe que
a questão do que os groenlandeses querem é delicada.
Tradicionalmente,
os dinamarqueses se consideram os imperialistas mais bacanas do mundo desde que
começaram a colonizar a Groenlândia na década de 1720.
No entanto, esta
autoimagem foi deteriorada nos últimos anos por uma série de revelações sobre a
arrogância no trato com a população da ilha no passado.
Em particular,
houve denúncias de graves injustiças cometidas contra os groenlandeses — não em
um passado distante, mas ainda na memória de muita gente.
Entre elas, uma
campanha contraceptiva controversa em larga escala. Uma investigação conjunta
das autoridades da Dinamarca e da Groenlândia está analisando a colocação de
DIU (dispositivo intrauterino) em mulheres em idade fértil na ilha, muitas
vezes sem seu consentimento ou até mesmo sem seu conhecimento.
Foi noticiado que
isso aconteceu com quase metade de todas as mulheres da ilha em idade fértil
entre 1966 e 1970.
Em dezembro do ano
passado, o primeiro-ministro da Groenlândia, Múte Egede, descreveu esse fato
como um "genocídio puro e simples, realizado pelo Estado dinamarquês
contra a população da Groenlândia".
Ele fez a
declaração em conversa com a emissora pública Danish Broadcasting Corporation
durante uma entrevista sobre as relações entre a Groenlândia e a Dinamarca, de
modo geral.
Além disso, nas
décadas de 1960 e 1970, centenas de crianças da ilha foram tiradas de suas
mães, muitas vezes por motivos duvidosos, para serem criadas por pais adotivos
na Dinamarca. Em alguns casos, isso aconteceu sem o consentimento das mães
biológicas e, em outros, elas não foram informadas de que teriam sua relação
com os filhos completamente cortada.
Isso deixou uma
ferida emocional aberta que, em muitos casos, não foi curada décadas depois.
Algumas das crianças groenlandesas adotadas conseguiram encontrar seus pais
biológicos mais tarde, mas muitas outras, não.
Um pequeno grupo
exigiu uma indenização do Estado dinamarquês em 2024. Se eles forem
bem-sucedidos, isso pode abrir caminho para um grande número de reivindicações
semelhantes por parte de outras pessoas que foram adotadas.
Iben Mondrup,
romancista que nasceu na Dinamarca e passou a infância na Groenlândia, vê os
recentes acontecimentos como um alerta brutal para os dinamarqueses, que
estavam acostumados a se ver como uma influência benigna na Groenlândia.
"Todo o
relacionamento foi baseado em uma narrativa de que a Dinamarca estava ajudando
a Groenlândia, sem receber nada em troca", diz ela.
"Falamos sobre
a Dinamarca como a pátria-mãe que colocou a Groenlândia sob suas asas e a
ensinou gradualmente a se manter em pé. Houve um uso generalizado de metáforas
educacionais."
"Nós,
dinamarqueses, recorremos constantemente à ideia de que a Groenlândia nos deve
algo, pelo menos gratidão."
·
'A
Groenlândia agora cresceu'
Pesquisas de
opinião realizadas nos últimos anos indicam um padrão bastante consistente em
que cerca de dois terços da população da Groenlândia dizem que querem a
independência. Um levantamento realizado em 2019 mostrou um apoio de 67,7% à
mudança entre os groenlandeses adultos.
"Na minha
opinião, a Groenlândia agora cresceu, e nosso senso de autoestima e nossa
autoconfiança exigem que possamos começar a tomar nossas próprias decisões como
adultos em pé de igualdade com outras nações", afirmou Jenseeraq Poulsen,
diretor da Oceans North Kalaallit Nunaat, uma instituição ambiental em Nuuk.
"É importante
para um país não estar em uma camisa de força", acrescenta.
"Não
deveríamos ter que pedir permissão para fazer nada. Você conhece a sensação
[quando criança] de ter que pedir algo aos seus pais, e eles dizerem que você
não pode? É assim que é."
E, ainda assim, a
palavra "independência" pode não capturar totalmente a complexidade
dos desafios e das escolhas que a Groenlândia enfrenta, de acordo com Poulsen.
Ele diz que não
gosta da palavra, "já que todos são interdependentes no mundo
moderno".
"Até mesmo a
Dinamarca, que é um Estado soberano, é interdependente... Prefiro a palavra
Estado."
·
Ingredientes
para independência
Não se sabe muito
sobre a mecânica de como Trump se propõe a adquirir a Groenlândia. Quando ele
lançou a ideia pela primeira vez em 2019, disse que seria "essencialmente
um grande negócio imobiliário".
Não está claro até
que ponto a Groenlândia permaneceria autônoma sob o domínio dos EUA. O mesmo se
aplica ao modo como funcionaria seu sistema de benefícios.
Após a proposta de
comprar a ilha, Trump agora endureceu sua retórica, se mostrando aparentemente
aberto a satisfazer suas ambições territoriais no Atlântico Norte por meios
militares.
A visita de Donald
Trump Jr. e de membros da equipe de Trump deu ênfase visual às palavras do
então presidente eleito, mas nem todos na Groenlândia ficaram impressionados.
"Isso nos faz
bater o pé no chão e dizer: 'Por favor, controle-se'", afirma Janus
Chemnitz Kleist, gerente de TI do governo da Groenlândia. "Algumas pessoas
que antes poderiam ter uma atitude positiva em relação a uma aproximação com os
Estados Unidos começaram a reconsiderar."
Aaja Chemnitz,
deputada do Parlamento dinamarquês pelo partido de esquerda Inuit Ataqatigiit,
tem sua própria opinião sobre o que precisa ser feito para preparar o caminho
para a independência, seja qual for a forma que ela venha a assumir.
Primeiro, ela
argumenta que é importante reverter o que ela descreve como uma leve fuga de
cérebros da Groenlândia. Segundo ela, apenas 56% dos jovens groenlandeses que
estudam em universidades e faculdades na Dinamarca e em outros países retornam
após a formatura.
"Não é um
número muito alto. Seria bom se pudéssemos tornar mais atraente para eles
voltar para casa e assumir alguns cargos que são importantes na sociedade da
Groenlândia", diz ela.
Mas, na opinião
dela, há também uma questão econômica mais ampla.
"A
independência política e econômica está interligada", diz ela. "E é
crucial que cooperemos com a Dinamarca no desenvolvimento de negócios na
Groenlândia, mas também trabalhemos com os americanos na extração de
matérias-primas e no desenvolvimento do turismo".
No momento, a
economia da Groenlândia depende muito do subsídio pago pelo governo dinamarquês
que, em 2024, correspondeu ao equivalente a cerca de R$ 3,5 bilhões por ano.
Como esse subsídio
provavelmente vai desaparecer após a independência, um dos desafios mais
importantes enfrentados pelos groenlandeses é encontrar maneiras de
substituí-lo, explica Javier Arnaut, economista da Universidade da Groenlândia
em Nuuk.
"A economia é
um dos principais fatores que impedem o movimento em direção à
independência", diz ele. "A economia depende do subsídio dinamarquês
e, se ele desaparecesse, a Groenlândia teria um grande buraco no orçamento
público que precisaria ser preenchido."
"A questão é
como. Se a lacuna pudesse ser preenchida, por exemplo, aumentando a receita
fiscal por meio de projetos de mineração com novos parceiros, poderia surgir um
caminho mais claro para a independência econômica."
·
O
fator de bem-estar
Há outra questão —
não menos importante em um Estado de bem-estar social no estilo nórdico, em que
grande parte da economia está sob controle do governo — sobre o que aconteceria
com todos os benefícios sociais e de saúde que a Groenlândia recebe atualmente
como resultado da sua relação com a Dinamarca.
Atualmente, esses
benefícios incluem acesso a tratamento em hospitais dinamarqueses.
Pergunte aos
groenlandeses se eles querem se separar da Dinamarca, e a maioria dos que dizem
que sim tem uma ressalva — apenas se isso não custar a eles seu sistema de
bem-estar social.
A questão do que
acontece com o sistema de bem-estar social seria particularmente grave no caso
de uma aquisição da Groenlândia pelos EUA, já que o Estado de bem-estar social
americano não é apenas menor do que o dos países nórdicos, mas também do que o
da maioria dos outros países ocidentais.
Mas nem todos estão
convencidos das sugestões de que os pacientes com câncer da Groenlândia, por
exemplo, de repente não teriam para onde ir em caso de independência. Pele
Broberg, ex-ministro das Relações Exteriores da Groenlândia e atual presidente
do partido político Naleraq, cita como exemplo a Islândia, que deixou o reino
dinamarquês em 1944.
"A Islândia
ainda envia pacientes para a Dinamarca", diz ele. "Eles ainda têm
alunos estudando na Dinamarca, e vice-versa. Tenho dificuldade em ver que tipo
de obstáculos a Dinamarca gostaria de colocar se decidirmos deixar o
reino."
"É uma
retórica destinada a nos assustar e nos impedir de discutir a
independência", argumenta.
No entanto, alguns
groenlandeses acreditam que a verdadeira independência pode nunca ser alcançada
devido a essas mesmas preocupações. "O tipo de independência que você vê
em países como Dinamarca, Bélgica ou Angola nunca vai acontecer aqui",
avalia Chemnitz Kleist.
"Com uma
população tão pequena, parte dela com pouco nível de instrução, e com um
sistema de bem-estar complexo que gostaríamos de manter, nunca poderemos nos
tornar independentes da forma como a palavra é normalmente entendida."
·
As
táticas de Trump e o caso dos EUA
Todas essas
questões vêm sendo discutidas há anos, mas de repente ganharam um novo senso de
urgência com a aparente tentativa de Trump de obter o controle da Groenlândia.
Mas,
independentemente de quem estiver na Casa Branca, a questão é se os
groenlandeses veriam algum benefício em aumentar os níveis de cooperação com os
Estados Unidos — e, em caso afirmativo, até que ponto?
"O projeto
nacional da Groenlândia consiste em dispersar a dependência da ilha para ter o
maior número possível de relações com o mundo exterior", diz Ulrik Pram
Gad, pesquisador do Instituto Dinamarquês de Estudos Internacionais e especialista
na região do Ártico.
É neste contexto
que alguns groenlandeses estão se entusiasmando com o modelo de uma "livre
associação" com a Dinamarca ou com os Estados Unidos — replicando um
acordo flexível semelhante entre os Estados Unidos e algumas ilhas do Pacífico.
"O problema é
que a Groenlândia se sente engolida pela Dinamarca", diz Pram Gad.
"Ela quer se
sentir menos restrita e menos dependente de apenas um país. A livre associação
não tem tanto a ver com "associação", e mais com "livre".
Trata-se de ter sua própria soberania."
A ameaça de Donald
Trump de assumir o controle da Groenlândia pode ter sido inesperada, mas com a
viagem a Nuuk, sua equipe estava bem ciente de que suas preocupações com a
segurança chegam em um momento em que muitos groenlandeses estão pensando em
seu futuro.
"Nos últimos
anos, surgiram todas essas histórias, e colocaram a narrativa da modernização
sob uma luz diferente. Toda a ideia de que a Dinamarca estava buscando um
projeto altruísta na Groenlândia foi questionada", explica Iben Mondrup.
"O projeto que
foi dito aos groenlandeses como sendo para o seu próprio bem, na verdade, não
era bom para eles. Isso dá origem a todos os tipos de pensamentos sobre o
status dos groenlandeses dentro do reino dinamarquês. Isso adiciona combustível
às críticas que se desenvolveram na Groenlândia nos últimos anos sobre a ideia
de uma comunidade com a Dinamarca."
·
Noruega,
Islândia e Canadá
Mas se não for a
Dinamarca, e não for os Estados Unidos, a quem mais a Groenlândia poderia
recorrer? As pesquisas sugerem que a maioria dos habitantes da ilha gostaria de
intensificar a cooperação com o Canadá e a Islândia. Broberg, presidente do
partido Naleraq, gosta da ideia — e também inclui a Noruega na lista.
"Temos mais em
comum com a Noruega e a Islândia do que com a Dinamarca", diz ele.
"Todos nós três temos uma presença no Ártico, diferentemente da Dinamarca.
O único motivo pelo qual deixo em aberto a possibilidade de uma livre
associação com a Dinamarca após a independência é que isso pode tranquilizar
alguns gronelandeses, pois eles estão acostumados com o relacionamento com a
Dinamarca."
Ainda assim, a
pergunta é: será que o Canadá e a Islândia gostariam de assumir a tarefa de
fornecer os benefícios sociais que os groenlandeses almejam? A resposta quase
certamente seria não.
Desta forma, o
futuro que se apresenta aos groenlandeses é ao mesmo tempo empolgantemente
aberto e deprimentemente limitado.
Fonte: Por Peter
Harmsen, jornalista da Weekendavisen,
para BBC News
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