segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Paraná: estado brasileiro pequeno em dimensão geográfica, gigante na violência contra trabalhadores rurais

A tropa de choque da Polícia Militar do Paraná, estado da região sul do Brasil, estava à frente e atrás. Atiradores de elite posicionados ao lado e no alto, helicópteros. A movimentada rodovia federal BR-277, de conexão da fronteira do Paraguai até o litoral do estado, estava sitiada. E então foram disparadas, em sequência, bombas de efeito moral e gás lacrimogênio, balas de borracha e letais contra os quase 2 mil manifestantes. Homens, mulheres, pessoas idosas e crianças. A multidão na altura do quilômetro 108, naquele 2 de maio de 2000, buscou abrigo onde foi possível. Parte recuou até onde o choque não os agredia, outros avançaram pela mata adentro, do lado direito da rodovia. Sob o comando do governador da época, Jaime Lerner, sem qualquer ordem judicial, a Polícia Militar do Paraná, organizada em uma tropa de 1.500 agentes, bloqueou a rodovia e impediu, à força, a chegada da comitiva de 50 ônibus de Sem Terra que se dirigiam a Curitiba, capital do Paraná, para reivindicar o avanço no processo de reforma agrária no estado. Recolhidos da mata e do entorno da rodovia e tratados por policiais “como bandidos”, o numeroso grupo foi reunido nas laterais da BR, incluindo os feridos. Sem justificativa legal, vários Sem Terra foram detidos e levados para delegacias próximas. Dentre os detidos, uma manifestante grávida na reta final de gestação foi forçada a entrar no camburão, carro policial para deslocamento de criminosos. Por horas, foram privados de informações, coagidos por cães policiais e pelos agentes de segurança pública. O forte frio de maio, característico da região Sul do Brasil nessa época do ano, gelava o corpo dos camponeses com a terra a que foram obrigados a se deitar de barriga para baixo, em posição de rendição. Naquela altura dos fatos já sabiam que muitos companheiros e companheiras, como se apresentam, estavam feridos em razão da intensa violência policial empregada na ação, mas não sabiam que contabilizam mais de 200, e que o camponês Antônio Tavares tinha sido assassinado por um disparo letal do soldado Joel de Lima Santa Ana. “Até hoje foi o maior cenário de guerra que eu vi”, recorda o integrante da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Paraná, José Damasceno. A memória de hoje do já senhor, de 63 anos, sobre a intensa repressão policial permanece intacta, mesmo que o fato vivenciado date mais de duas décadas. “Não sai nunca mais esta marca da violência. Amargou os feridos e não feridos”, diz Damasceno. A liderança foi atingida por estilhaços de pólvora. Diariamente a família, por dor e saudades, ressente a ausência do camponês e o modo violento com que a vida do trabalhador foi ceifada. Ter em comum a luta pela reforma agrária e o mesmo nome que o irmão vitimado naquele 02 de maio exige de Antônio Tavares Irmão, um dos irmãos da vítima, uma resistência cotidiana. “Perdemos o chão naquele dia. Perdi meu irmão, perdemos uma grande pessoa que sempre teve interesse em ajudar e contribuir com a sociedade”, lamenta Antônio. Ele relata que, com o assassinato de Tavares, a esposa Maria Sebastiana e os cinco filhos do casal tiveram que se mudar para perto da família da viúva, por necessidade de apoio financeiro. “Esparramou a família, tivemos que nos desdobrar para dar apoio financeiro à família. Não era o que a gente queria e esperava”, ressalta.

·        Três condenações 

O massacre foi considerado pelo MST como um dos momentos “mais emblemáticos do processo de violência e de criminalização da luta pela terra” e a omissão da justiça brasileira diante das violações de direitos nesse caso resultaram na condenação do Estado brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), em março de 2024, caminho encontrado pela família e por organizações peticionárias diante da impunidade. Internamente, as ações na justiça militar e comum de investigação dos responsáveis pelo assassinato de Tavares foram arquivadas em 2003. As agressões às mais de 200 vítimas nunca foram investigadas. Agora, em 2025, representantes do Governo Federal e do Paraná devem construir, em diálogo com as vítimas e os peticionários do caso na Corte, um ato público de reconhecimento de responsabilidade do país pelas violações de direitos humanos dos trabalhadores rurais, entre eles o direito de manifestação. O ato é uma das medidas determinadas pela sentença. “O Tribunal tem ressaltado que a manifestação pública e pacífica é uma das maneiras mais acessíveis para o exercício do direito à liberdade de pensamento e de expressão, a fim de reivindicar a proteção de outros direitos”, aponta um trecho da sentença no Caso Tavares. Sem manifestação popular, reconhece o MST, é pouco provável que tivessem sido dados os poucos passos pelo estado brasileiro para garantir o direito à terra. Os direitos de reunião e de associação assegurados na Convenção Americana de Direitos Humanos, nos artigos 15º e 16º respectivamente, já tinham sido evocados em outras duas condenações do Brasil pela Corte Interamericana em casos de violação de direitos dos Sem Terra. Sozinho, o estado do Paraná – de pouco mais do que 2.3% do território nacional – responde por três das quatorze condenações do Brasil pela Corte IDH. E os três casos tratam de violações de direitos de trabalhadores rurais Sem Terra ocorridos no final dos anos 90 e início dos anos 2000. Um deles é o ‘Caso Tavares’, mencionado acima. Outro caso julgado e sentenciado pela Corte IDH é nomeado de “Caso Escher’, em referência ao sobrenome de uma das vítimas lesadas pelo Estado, o camponês Arlei José. Em 2009, a Corte reconheceu o conjunto de violações pela intercepção, monitoramento e divulgação ilegais de conversas telefônicas de associações de trabalhadores rurais pela Polícia Militar do Paraná. Dez anos antes a Cooperativa Agrícola de Conciliação Avante (Coama) e a Associação Comunitária de Trabalhadores Rurais (Adecon) tiveram seus telefones grampeados, entre os meses de abril a agosto de 1999, com objetivo de monitorar a atuação do MST em contexto em que o estado do Paraná realizava desocupações forçadas em massa. Na ação houve detenções ilegais de integrantes das associações e a tentativa de imputar aos agricultores crimes de desvio de recursos públicos, com publicação de notícias e coletiva de imprensa conduzida pela secretaria estadual de segurança pública, Cândido Martins. Sem comprovação de crimes cometidos pelos agricultores, a operação gerou diversos impactos aos trabalhadores rurais, como perseguições e impossibilidade de comercializar seus produtos por mais de 5 anos depois da divulgação dos áudios. Poucos meses antes do grampeamento ilegal, na madrugada de 27 de novembro de 1998, um grupo de 20 homens encapuzados reprimiu as 50 famílias vinculadas ao MST e ocupantes da Fazenda São Francisco, em Querência do Norte, localizada no noroeste do Paraná. Na operação de desocupação ilegal, com participação do proprietário da fazenda, Morival Favoreto, o grupo efetuou disparos com armas de fogo, ordenaram que as famílias saíssem dos barracos e que se deitassem no chão. Logo que saiu do barraco, o camponês Sétimo Garibaldi, de 52 anos, foi ferido na perna. Sem socorro ao camponês pelo bando, Garibaldi faleceu de hemorragia aguda. Em sentença proferida em setembro de 2009 sobre o Caso Escher, a Corte Interamericana reconheceu que o Estado brasileiro descumpriu com a obrigação de investigar e responsabilizar os envolvidos. “A Corte não pode deixar de expressar sua preocupação pelas graves falhas e demoras no inquérito do presente caso, que afetaram vítimas que pertencem a um grupo considerado vulnerável”, destaca um trecho da sentença. A lista de condenações ao país pela violência contra trabalhadores rurais pode aumentar, agora envolvendo outro estado. A Corte IDH analisa, no momento, o Caso Muniz da Silva vs Brasil, que trata da desaparição do camponês e liderança, Almir Muniz da Silva, em 2001; e o Caso Silva e outros vs Brasil, do assassinato do trabalhador Manoel Luiz da Silva, em 1997. Ambos casos ocorreram no estado da Paraíba, na região nordeste do país.

·        Violência como política, impunidade como regra 

Na avaliação do MST, os três casos julgados pela Corte Interamericana não devem ser compreendidos como fatos isolados. A intensa repressão e a adoção de medidas de criminalização de integrantes do MST no final da década de 90, aponta o Movimento, integram uma política estadual de ataque e desmoralização da luta pela terra no Paraná e das organizações representativas desta reivindicação, como o MST. O período das décadas de 80 e 90 foi de intensa mobilização dos trabalhadores rurais no Paraná na defesa da reforma agrária. Milhares de pequenos agricultores tinham sido expulsos de suas terras ou forçados a deixar o campo em razão da Revolução Verde, processo de inserção de maquinários agrícolas, sementes modificadas e uso intensivo de agrotóxicos, entre outros, em substituição à mão de obra. Damasceno foi um deles. “A Revolução Verde me tirou a terra. Eu fui obrigado a mudar para a cidade, e não me adaptei”. Já Antônio Tavares se viu, neste período, expulso do campo ao ter suas terras inundadas pela construção da Barragem de Itaipu, extensa hidroelétrica no Rio Paraná, entre o Brasil e o Paraguai. Foi no MST que ambos encontraram o lugar para reivindicar um pedaço de chão. As grandes ocupações de terra pelo MST eram marca das duas décadas, especialmente na região Noroeste do estado. Eram 600, 800 e até 1.500 famílias em cada nova ocupação. “Lembro que em agosto de 1989 a gente teve 5 ocupações de terra em uma única noite. No dia 17 de abril de 1996, enquanto a polícia militar do Pará massacrava os 19 Sem Terra na Curva do S [Massacre de Eldorado de Carajás, sudeste do Pará], a gente aqui ocupou, com 3 mil famílias, a Madeireira Giacomet Marodin. Era um período de grandes levantes e insatisfações”, destaca Damasceno. A área ocupada era de posse ilegal da Madeireira Giacomet Marodin. Até hoje os conflitos agrários permanecem na região.

Os números da última década do século XX expressam o contexto de violência e repressão. Entre os anos de 1994 e 2002 ocorreram 502 prisões de trabalhadores rurais, 324 lesões corporais, 7 trabalhadores vítimas de tortura, 47 ameaçados de morte, 31 tentativas de homicídio, 16 assassinatos e 134 despejos violentos no estado, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do MST. O período coincide com a gestão de governo estadual de Jaime Lerner (Partido da Frente Liberal), em seus dois mandatos à frente do estado (1995-2003). A sistemática violência empregada nas gestões de Lerner alçou ao governador a alcunha de “arquiteto da violência”, em referência ao ofício do ex-mandatário. As medidas institucionais para a repressão ao Movimento vão desde um protocolo de despejo pela polícia militar que inclui o emprego de técnicas de tortura e de grande contingente de grupos especiais de policiais com capuzes, sem tarja de identificação e infiltrados nos acampamentos, quanto à aplicação da Resolução 149/1999. Assinada pelo secretário de segurança pública do estado, Candido Martins, a normativa ordenava que as polícias civil e militar fizessem uso de “todos os esforços” para impedir as ocupações de áreas pelo MST. Além do tratamento da questão da reforma agrária pelo Estado como pauta de segurança pública, os peticionários das ações julgadas pela Corte Interamericana relataram uma estreita ligação entre a União Democrática Ruralista (UDR) e os gestores públicos, como com o governador do estado ou cargos de assessoramento e secretarias, como o de segurança pública. “A onda de violência e o uso do aparelho militar do Estado contra o MST teve seu início em 1997. Coincidindo com o período em que a União Democrática Ruralista (UDR), a Sociedade Rural do Paraná e alguns parlamentares começaram a incitar os fazendeiros a se armarem e empregarem a violência contra os trabalhadores como forma de impedir as ocupações e defender o latifúndio”, aponta um trecho da denúncia dos peticionários à Corte no Caso Tavares.

A associação criada em 1985 para defender a propriedade privada e composta por grandes proprietários de terra foi, neste período, avalizada pelo próprio presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. Em declaração em abril de 2000, o presidente disse que: “se o Estado não entra para barrar essa escalada [de luta pela terra], a UDR entra e aí é guerra”, legitimando assim o uso da violência. “Foi uma tentativa de eliminar o Movimento, politicamente e fisicamente”, diz Damasceno sobre a diversidade de recursos empregados no período pelo estado do Paraná, poder público e fazendeiros. Na avaliação da liderança os três casos julgados pela Corte IDH expressam bem as diversas frentes de ataques à integridade física dos integrantes do MST, ao direito de manifestação e à imagem pública do movimento social. A atribuição de sentidos negativos ao MST pelo Estado e parte da imprensa – presente até dias atuais – contribuiu para que o conjunto de assassinatos de trabalhadores rurais não gerasse, naquele período, uma ampla mobilização popular, pelo menos à altura da gravidade extrema dos fatos. “Quando é insistentemente dito que os Sem Terra e suas lutas não são legítimas na sociedade, você legitima o uso de forças de repressão, através de decisões judiciais ou do administrador de plantão, como o governador ou secretário de segurança pública”, reflete o coordenador da organização Terra de Direitos, Darci Frigo. A organização é peticionária nos três casos condenados pela Corte IDH.

Além dos assassinatos de Sétimo Garibaldi e Antônio Tavares, os trabalhadores rurais e integrantes do MST Diniz Bento da Silva, Vanderlei das Neves, José Alves dos Santos, Sebastião Camargo, Eduardo Anghinoni e Sebastião da Maia, também foram mortos em contexto de conflitos no campo neste período. Nas gestões posteriores à de Lerner, a violência não cessou, com os assassinatos de Elias de Meura, Valmir Mota de Oliveira, Eli Dalle Molle, Vilmar Bordim e Leonir Orback. Alguns destes casos foram revisados pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos. A organização social Terra de Direitos analisou casos emblemáticos de assassinatos de Sem Terra no Paraná. Das 11 ocorrências que resultaram em assassinatos, em apenas três casos (27%) os autores materiais – ou seja, aqueles responsáveis pelos disparos que vitimaram os trabalhadores – foram condenados. Ou seja, em 73% dos casos analisados de assassinatos dos trabalhadores rurais vinculados ao MST no Paraná permanecem impunes até os dias atuais. A amostra, ainda que não totalizante do quadro de violência no estado, mostra um padrão de impunidade. Um dos casos mais emblemáticos é a anulação de três júris popular de condenação do ex-presidente da União Democrática Ruralista (UDR) do Paraná, Marcos Prochet. O ruralista é acusado do assassinato do trabalhador rural Sem Terra Sebastião Camargo, morto em 1998, em Marilena (PR). Em fevereiro deste ano esgotaram os recursos processuais de reversão da 3ª anulação. Sem data para realização de um 4º júri, o crime pode prescrever. A manifestação da Corte IDH no caso Escher, em 2009, já sintetizava como a não responsabilização dos sujeitos envolvidos nos assassinatos de Sem Terra no estado alimentava um contínuo ciclo de violência. “A impunidade propicia a repetição crônica das violações de direitos humanos”, afirma um trecho da sentença do caso.

·        Um estado constituído pela violência

Em todas as conversas com camponeses, lideranças e peticionários sobre os casos sentenciados pela Corte Interamericana de violência contra os Sem Terra há uma reflexão comum: a de que o processo de concentração de terras no estado dizimou, ainda antes dos casos sentenciados, milhares de indígenas e campesinos no processo de concentração fundiária e expansão agrícola no Paraná. E dois relatos são os mais mencionados. Um deles é o massacre do povo Xetá. Em decorrência do avanço da frente cafeeira nas décadas de 1940 e 1960 sobre seus territórios originários, o povo falante da língua do tronco Tupi-Guarani foi praticamente dizimado. Os poucos sobreviventes, contabilizados em apenas 8 indígenas segundo relatos, foram forçadamente realocados para outras regiões, como o estado de Santa Catarina. Esse genocídio indígena foi reconhecido no relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e pela Comissão Estadual da Verdade do Paraná, processo brasileiro instituído em 2012 para investigar as violações de direitos ocorridas entre os anos de 1946 e 1988. O outro relato sempre presente é a intensa repressão à Revolta de Porecatu, no final da década de 1940, na região norte do estado. O fato é marcado pelo emprego de milícias privadas e da intensa repressão policial ao levante armado organizado por posseiros, colonos e pequenos agricultores que se opunham à expulsão de suas terras por fazendeiros. Sem os títulos prometidos das áreas pelo governador Manoel Ribas no processo de expansão das fronteiras agrícolas, nomeada de Marcha para o Oeste, os pequenos agricultores buscaram resistir a cessão de suas terras para grandes fazendeiros pelo governo de Moysés Lupion. Apenas a família Lunardelli, muito próxima do governador, foi beneficiada com a concessão de 17 mil hectares na região de Porecatu. “Nessa origem fundiária do Paraná as fazendas foram formadas em cima de assassinato de agricultores e indígenas, e com endosso do governo do estado do período”, afirma Damasceno. Na avaliação do professor e jurista Carlos Marés a redemocratização brasileira, na década de 1980, não acertou a conta com esse passado de violência contra os camponeses do Paraná. “Não resolveu o problema do campo, não houve o retorno dos trabalhadores e indígenas expulsos das suas terras. Porecatu e outros massacres não foram resolvidos”, diz. Procurador do Estado do Paraná nas décadas de 1980 a 2010, Mares contesta o anúncio propagado pelo governo do estado à época sobre ser um território sem conflitos. “O que se tinha na época é de que o Paraná era um exemplo de estado sem conflitos no campo. Na verdade, o trabalhador que estava em conflito agrário iria morrer”. Para ele, a repressão de maio de 2000 que resultou no assassinato de Antônio Tavares foi, ao mesmo tempo, o auge da repressão pelo Estado do Paraná e da mobilização popular pelos agricultores. “No fundo no fundo o que estavam fazendo com os camponeses naquela BR-277 era o que já tinha feito nas décadas de 50 e 60”, aponta Marés.

·        Sistema de Justiça, mais um lugar de violências

Com a violação de direitos humanos por agentes de estado ou fazendeiros aos trabalhadores Sem Terra nas décadas de 90 e nos anos 2000, era de se esperar que o sistema de justiça brasileiro acolhesse as denúncias e desse um andamento adequado para a investigação dos fatos e responsabilizações dos envolvidos. Mas, na avaliação de peticionários dos casos na Corte IDH, o direito de acesso à justiça é atravessado quando um trabalhador rural reclama uma violência sofrida. Além de uma contínua incapacidade de efetivar os direitos humanos de trabalhadoras e trabalhadores rurais não assegurado pelos demais poderes, como o da terra, a justiça reserva aos Sem Terra apenas o “direito de ser réu, e não autores das ações”, destaca Frigo. Ao deixar de realizar as devidas diligências, como no caso Escher, conduzir ilegalmente manifestantes para delegacias, como no Caso Tavares, ou mesmo perder a arma do fazendeiro apontado pelos camponeses como presente na repressão que resultou no assassinato de Garibaldi, o sistema de justiça deixa de tratar as vítimas – no caso, os Sem Terra – como vítimas. Atuante como advogado popular nos três casos de violação de direitos julgados pela Corte IDH, Frigo relata que a todo momento a busca por justiça encontrou obstruções. “Toda incidência, como um recurso no Tribunal, que fazíamos naquele período, como advogados populares, nos casos de Querência do Norte ou Tavares, encontrávamos um delegado ou um promotor que barrava o acesso à justiça, pela posição contrária ao MST, independente de garantias legais”, relata. A atuação da juíza da Vara de Loanda, Elisabeth Khater, é expressão máxima do alinhamento do Judiciário, forças de segurança e latifúndio, denuncia o MST. Khater está inscrita em vários momentos da história de repressão ao movimento social. É dela a autorização do pedido de interceptação ilegal telefônica as associações de trabalhadores rurais ligadas ao MST no Caso Escher. Sem a obrigatória notificação do Ministério Público do Paraná e sem considerar que não compete à Polícia Militar a investigação criminal, a juíza acolheu a solicitação de grampo telefônico do Tenente-coronel da Polícia Militar do Paraná, Waldir Copetti Neves. O Coronel é reconhecido como diretamente envolvido em vários casos de assassinatos de Sem Terra, como Sebastião Camargo e Elias de Meura, e teve sua articulação de milícias rurais exposta em operação da Polícia Federal. Khater também foi quem deferiu o pedido de arquivamento do inquérito de investigação do assassinato de Sétimo Garibaldi, sem a devida apresentação de fundamentação da decisão e sem que as investigações tivessem realizado as diligências que ela mesma tinha determinado. Em maio de 1999, comemorou as desocupações massivas no Noroeste do Paraná e comentou com um repórter, acreditando ser um policial, que “estava agora mesmo elogiando o trabalho de vocês para meus amigos fazendeiros. Estamos aqui comemorando. Pode ser o início de uma união entre fazendeiros e a PM”, disse. Ao perceber o engano declarou que “a amizade não influenciou” (nas decisões judiciais).  Diante de ausência de respostas pelo sistema de justiça brasileira e esgotamento de recursos internos, o acionamento do Sistema Interamericano de Direitos Humanos foi o caminho encontrado pelas famílias, pelo MST e pelas organizações peticionárias para busca por justiça nos três casos. “Tive que sair do meu país pra reivindicar algo que é de direito”, lamentou a viúva de Antônio Tavares, Maria Sebastiana, durante a audiência do caso em junho de 2022, na Costa Rica. Frigo relata que a sensação, ao acionar a Corte IDH, era também a de enviar um recado para o judiciário brasileiro de que o sistema interno não estava funcionando. “O Sistema Interamericano não é para ser uma nova instância. É preciso que o Brasil incorpore medidas de não repetição para que não precisemos buscar fora do país questões previstas no ordenamento interno e na Convenção Americana de Direitos,” reforça a assessora jurídica da Terra de Direitos, Daisy Ribeiro.

·        Reinvenção de medidas de criminalização

Com as feiras agroecológicas, a doação de alimentos na pandemia para grupos vulneráveis, o enfrentamento da contaminação por agrotóxicos, entre outras frentes, há um gradual reconhecimento pela sociedade da contribuição de um movimento como o MST, na avaliação do próprio movimento. Em paralelo, as decisões pela Corte IDH e a memória recente de governos autoritários tem – a passos lentos – constituído uma rejeição à ideia de um estado repressor. Com isso, avalia o MST, os setores conversadores têm necessitado atualizar formas para criminalizar lideranças e organizações populares. Os novos instrumentos vão desde proposições legislativas à reorganização de frentes ruralistas. “Costumamos dizer que não existe um assentamento da reforma agrária no Brasil que não tenha sido criado como resposta à pressão e mobilização popular. Os ruralistas entenderam isso e buscam criar mecanismos ilegais, que ferem a Constituição Federal, para deslegitimar a organização e mobilização de sujeitos coletivos”, reflete a coordenadora nacional do MST, Ayala Ferreira. Atualmente tramitam no Congresso Nacional diversos projetos de lei que propõem a alteração da Lei 13.260/2016, conhecida como Lei Antiterrorismo. As proposições legislativas buscam criminalizar práticas de movimentos, como ocupações e manifestações. O Projeto de Lei 3283/2021 estabelece, por exemplo, que qualquer ato considerado como ‘distúrbio civil’, como uma manifestação, “equipara-se a atos terroristas”. Já o Projeto de Lei 8262/17, em uma subemenda, autoriza proprietários de terra a solicitar força policial para a retirada de ocupantes, independentemente de ordem judicial. Estes dois projetos de lei constituem o chamado “Pacote Anti-MST”. Outra frente recente de ataque legislativo é a mudança da Constituição Federal em benefício ao agronegócio. O Projeto de Lei 4357/2023 propõe a exclusão do conceito de “função social da terra” do texto constitucional como critério para a União desapropriar uma propriedade para fins de reforma agrária. A movimentação em torno de pautas criminalizatórias e a pressão popular por reforma agrária tem sido coordenada pela bancada vinculada ao agronegócio, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). Majoritária no Congresso Nacional nas últimas legislaturas, a Frente aglutina hoje 47 dos 81 senadores e 300 dos 513 deputados e deputadas. Foi desta articulação a iniciativa de realização da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) contra o MST, em 2023. Instaurada com objetivo de “investigar as ações do Movimento”, a CPI encerrou em setembro do último ano sem apreciação e votação do relatório final pelo colegiado, o que foi considerado um grande fracasso da mobilização ruralista. Externo ao Congresso, fazendeiros constituíram no início de 2023 o grupo “Invasão Zero”. Presente em vários estados, inclusive no Paraná, o grupo é acusado de ser autor de intensas repressões à agricultores, indígenas e povos tradicionais ao desfazer ocupações de terras sem respaldo em decisões judiciais. Uma delas foi a violenta repressão, no sul da Bahia, aos indígenas Pataxó Hã-hã-hãe, com o assassinato de Fátima Muniz de Andrade, conhecida como Nega Pataxó.

Já no estado do Paraná, o Projeto de Lei 186/2023, estabelece sanções administrativas a ocupantes de áreas rurais e urbanas no estado. A medida determina, acrescendo à Lei 15.608/2007, que os “ocupantes não podem participar, direta ou indiretamente, da licitação ou da execução da obra ou serviço e do fornecimento de bens a eles necessários”. A medida impacta, por exemplo, na participação de agricultores em programas de assistência rural ou de fornecimento de alimentos. Além do Paraná propostas de mesmo teor tramitam em 12 estados, de acordo com Campanha Despejo Zero. E o estado carrega a memória recente da violência repressão pelo Governo do Estado, sob comando de Beto Richa (PSDB), aos cerca de 40 mil manifestantes – entre eles servidores públicos e estudantes – que protestavam contra projetos de lei elaborados pelo governo estadual e encaminhado à Assembleia Legislativa do Paraná (Alep) para votação. Estes projetos de lei traziam significativas alterações ao regime trabalhista e previdenciário dos servidores públicos do estado, pondo em risco, por exemplo, a aposentadoria dos servidores. Ainda que trate de um fato urbano, a ausência de responsabilização – denunciada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em maio de 2024 – abriu um perigoso precedente que pode ser revertido na repressão aos trabalhadores rurais ou qualquer manifestante. Na tese fixada pelo Tribunal de Justiça do Paraná “a responsabilidade civil do Estado pelos atos praticados por seus agentes durante a denominada ‘Operação Centro Cívico’ ficará restrita aos casos em que a vítima comprovar, além dos demais requisitos legalmente exigidos, que era terceiro inocente – pessoa que não estava envolvida na manifestação ou na referida operação, e que não deu causa à reação do agente”, o que significa que o dever é da vítima da repressão comprovar inocência e não do poder público assegurar proteção a quem se manifesta. “Mesmo com todas as condenações pela Corte IDH e outras instâncias, observamos, infelizmente, uma desigualdade no tratamento de reivindicações. Vimos em 2023 a tolerância e mesmo apoio de setores das forças de segurança a atos da extrema direita, de defesa da intervenção militar e abolição do Estado democrático de Direito. Já manifestações de reivindicações de direitos fundamentais, como moradia e terra, seguem muitas vezes sendo objeto de violência policial e estatal”, declara Daisy.

 

Fonte: Por Lizely Borges, no Le Monde

 

Nenhum comentário: