Paulo
Nogueira Batista Jr.: Empréstimos da China aliviariam as restrições fiscais do
Brasil?
O
governo brasileiro, ao final do seu segundo ano, experimentou forte
instabilidade financeira e cambial, em grande parte por causa da sua dependência
de credores privados internos e externos, que oferecem crédito em condições
onerosas de juros e prazos. Esses fluxos financeiros privados exibem, além
disso, forte volatilidade, confirmada mais uma vez em fins de 2024. Os mercados
se acalmaram em janeiro, mas persiste a vulnerabilidade do Estado brasileiro.
O que
poderia ser feito para blindar o setor público? Uma possível alternativa seria
encontrar no exterior novas fontes mais atraentes de financiamento, por exemplo
na China e, em menor medida, em países exportadores de petróleo do Oriente
Médio. São países com reservas oficiais excedentes, bem superiores às suas
necessidades precaucionais. O aporte dessas fontes de crédito externo poderia
constituir, em tese, uma fonte mais favorável de financiamento para o Estado
brasileiro, libertando-o em parte das condições extorsivas do crédito de fontes
domésticas caras, de curto prazo e instáveis. Se o volume da nova captação
externa for expressivo, com prazos mais longos e juros mais baixos, haveria um
impacto imediato sobre o quadro macroeconômico, com revalorização cambial,
menor pressão inflacionária e queda das taxas de juro internas.
Têm
fundamento essas expectativas positivas? Intuitivamente, a resposta é sim. Mais
correto, contudo, é dizer ela que terá fundamento somente se certas
precondições financeiras e macroeconômicas forem atendidas. Esse ponto nem
sempre é compreendido, e mesmo economistas não o levam na devida conta.
Este
artigo começa por uma discussão das precondições para que a eventual entrada de
empréstimos externos dessas novas fontes seja de fato proveitosa para o Estado
brasileiro. Em seguida, discute um lado negativo dessa alternativa de
financiamento que, dependendo da dimensão da dívida externa líquida
pré-existente, pode levar a uma exposição excessiva a risco cambial. Conclui-se
que o endividamento no exterior, mesmo que de fontes mais atrativas, pode levar
a uma nova forma de dependência financeira. Ainda assim, argumenta-se que a
tomada de empréstimos externos oficiais, obedecidas certas precondições, pode,
sim, modificar para melhor o quadro macroeconômico de curto prazo, sobretudo se
ela for utilizada para substituir dívida interna por externa.
·
Substituição de dívida interna por dívida
externa
Quais
são essas precondições? Tento explicar sinteticamente, sem recorrer a equações.
Para simplificar, vou tratar apenas do impacto imediato sobre finanças
públicas, balanço de pagamentos e contas nacionais, sem considerar efeitos de
segunda ordem. Para compreender esse primeiro impacto, é necessário considerar
a restrição orçamentária do setor público, as contas nacionais, a dívida
líquida externa do governo, bem como a estabilidade do financiamento interno e
suas condições de prazo e juros comparadas às dos novos empréstimos que a China
ou outros países ofertariam ao Brasil. Admita-se para começar que exista de
fato, do lado da oferta, uma fonte de financiamento em grande escala, em
condições atraentes de custo e prazo. Podem ser bancos públicos chineses, por
exemplo, com deep pockets. Admita-se, também, que esse
financiamento venha livre, não atado a importações. Sem essas precondições
iniciais, o impacto macroeconômico seria pequeno.
Que
contrapartidas poderia o Brasil oferecer aos credores externos? No caso da
China, poderia ser o compromisso de aderir formalmente à Nova Rota da Seda, a
grande e prioritária iniciativa internacional da China desde 2013. O governo
Lula fez bem de não aderir de imediato, condicionando a entrada na Nova Rota a
contrapartidas.
O
Brasil poderia, também, comprometer-se a elevar a participação da moeda
chinesa, hoje da ordem de apenas 5%, nas reservas internacionais brasileiras. O
yuan é elegível para esse propósito, uma vez que integra, desde 2014, a pequena
lista de moedas de liquidez internacional que compõem a cesta do Direito
Especial de Saque do FMI. Dado o porte das nossas reservas internacionais, a
decisão brasileira contribuiria de modo não desprezível para o objetivo
acalentado pela China de promover a gradual internacionalização da sua moeda.
Sendo
realista, porém, cabe supor que esses novos empréstimos seriam denominados em
moeda estrangeira, uma vez que ao credor externo dificilmente interessaria
adquirir risco cambial em reais em grande escala, concedendo empréstimos
expressivos para um país que, como é notório, carrega prêmios de risco
apreciáveis nos mercados doméstico e internacional. Esses países ou
instituições estrangeiras só aceitarão se expor a risco Brasil, se não houver
em adição a isso exposição a risco cambial. Esses problemas, diga-se de passagem,
são reconhecidos também pelas agências chinesas de classificação de risco,
embora elas sejam mais flexíveis do que as agências tradicionais (Moody’s,
S&P e Fitch).
Quais
são as consequências desses empréstimos do exterior? Primeira: ceteris
paribus (tudo o mais constante), aumenta a dívida externa bruta e
líquida do setor público na proporção do empréstimo obtido. “Tudo o mais
constante” significa, entre outras coisas, que a entrada desses recursos
externos não venha a se traduzir em aumento correspondente das reservas
internacionais do país, que são um ativo externo do setor público. Se as
reservas aumentam na proporção do aumento da dívida bruta do setor público, a
dívida líquida pública fica constante e não há espaço fiscal
adicional para aumentar o déficit do governo ou reduzir a dívida interna. Ou
seja, a captação externa só aumenta o espaço fiscal, se as reservas
internacionais não aumentarem pro tanto.
Aumentar
o espaço fiscal significa, neste contexto, abrir duas opções não mutuamente
excludentes: a) a possibilidade de registrar um déficit nominal ou total mais
elevado, aumentando o investimento público em infraestrutura (ou outras
despesas prioritárias); e b) a possibilidade de substituir dívida interna por
externa, ampliando o poder de barganha do Estado em relação aos atuais
investidores de portfólio, domésticos ou estrangeiros. Essa segunda opção
parece ser a mais relevante nas atuais circunstâncias brasileiras.
Outra
precondição é que não diminua o resto da dívida externa do setor público. Caso
isso viesse a ocorrer no mesmo montante, a dívida externa bruta do setor
público permaneceria constante, mudando apenas a sua composição. O aumento do
crédito ao governo federal apenas diminuiria o acesso do resto do setor público
a crédito internacional, sem outros efeitos sobre as finanças públicas e a
economia.
Uma
precondição adicional, essa menos intuitiva, relaciona-se ao balanço de
pagamento do país. A entrada de recursos externos implica, ceteris
paribus, aumento do superávit na conta de capitais e no saldo global do
balanço de pagamentos. Vamos admitir, para simplificar e tornar mais sintética
a exposição do argumento, que não se alterem nem as reservas e nem o crédito
externo para o resto do setor público.
Pois
bem, nem tudo o mais pode ficar constante. Ou aumenta o déficit em conta
corrente ou ocorre maior saída líquida de capitais do setor privado. Na
primeira hipótese, a entrada de crédito externo tem como contrapartida um
aumento da poupança externa, sem variação da poupança interna. Na segunda hipótese,
o setor público diminui o espaço do setor privado em termos de acesso a crédito
externo; a poupança interna e a externa permanecem constantes, assim como o
investimento agregado que, numa economia aberta, corresponde por definição à
soma das duas.
Uma
das duas hipóteses (ou uma combinação delas) seria necessária, para aproveitar
como planejado o acesso a novos empréstimos externos oficiais. Isso porque só
assim o saldo global do balanço de pagamentos e as reservas não se
modificariam. E só assim a entrada de crédito externo para o governo federal
viabilizaria um aumento do déficit público global ou uma redução da dívida
interna, contribuindo para aumentar a margem de manobra do Estado.
Se o
aumento da dívida externa se traduz em diminuição da interna, como se pode
pretender, isso melhora a composição da dívida pública total em termos de
condições de juro e prazo. Aumenta, também, dada a volatilidade do
financiamento interno, a estabilidade geral do financiamento ao setor público,
uma vez que as fontes privadas de crédito interno (os investidores internos e
externos que compram e vendem títulos em reais) são altamente voláteis e,
portanto, pouco confiáveis. O governo ficaria então mais independente dos
mercados de capitais locais e ocidentais, sem ter que fazer um esforço
adicional de ajustar suas contas.
Note-se,
a propósito, que uma dimensão central da vulnerabilidade do Estado brasileiro é
a que resulta da liberalização prematura dos movimentos de entrada e saída de
capitais, algo que remonta aos governos Collor e FHC nos anos 1990. Naquela
época, decidiu-se remover controles cambiais, concedendo grande liberdade aos
detentores de capital para entrar e sair da economia brasileira quando assim
desejassem. A turma da bufunfa, diga-se de passagem, agradeceu penhorada e
premiou os economistas responsáveis por essa decisão com generosos empregos ou
contratos de consultoria depois. Seria interessante, por exemplo, traçar um
quadro das carreiras dos economistas do Plano Real no mercado financeiro,
depois da sua passagem pelo governo federal.
Essa
liberalidade trouxe, entretanto, efeitos problemáticos que persistem até hoje.
Como é expressivo o estoque de passivos externos voláteis ou de curto prazo,
todo governo brasileiro vive, desde os anos 1990, sob a ameaça permanente dos
impactos da saída desses capitais, em certos períodos, ou de uma entrada
excessiva de capitais de portfólio, em outros. Uma saída abrupta e de grande
magnitude pode desestabilizar a economia como um todo, a exemplo do que
aconteceu em dezembro de 2024. Uma entrada excessiva dificulta, por sua vez, o
controle monetário interno e cria o risco de bolhas nos mercados financeiros
locais
·
Risco cambial
Mas
deixo isso de lado e volto à questão da entrada de empréstimos novos de fontes
oficiais. Em princípio, poderíamos comemorar essa possibilidade. Mas não sem
ressalvas, pois essa manobra aumentaria também a exposição do Estado a
variações cambiais. Só vale a pena seguir esse caminho, se a dívida externa
pré-existente é pequena.
No
caso brasileiro atual, a dívida externa bruta é de fato pequena, inferior às
reservas internacionais do país. Ou seja: o Estado brasileiro é credor contra o
resto do mundo. Por esse canal, ele ganha, portanto, com a depreciação cambial,
fato aliás pouco comentado. Essa conclusão vale mesmo se levarmos em conta a
dívida pública interna indexada à taxa de câmbio e os swaps cambiais do Banco
Central.
Um
critério possível para dimensionar o volume máximo de novos empréstimos
externos que o Estado poderia absorver, sem se expor a risco cambial, seria
limitar esse volume à diferença entre as reservas e a dívida externa bruta do
setor público pré-existente, acrescida da dívida pública interna indexada à
taxa cambial e dos swaps cambiais do Banco Central. Dentro desse limite, a exposição
líquida a risco cambial ficaria zerada ou negativa. Se a captação for inferior
a esse limite, a depreciação do real continuaria a contribuir, por essa via,
para uma diminuição da dívida pública como percentagem do PIB.
Em
grandes números, a posição cambial líquida (definida como reservas
internacionais mais o estoque de operações de linha do Banco Central menos a
posição da instituição em swap cambial) era de US$ 230 bilhões no final de
2024. Deduzida a dívida interna indexada a câmbio, equivalente a cerca de US$
50 bilhões, a posição credora externa do governo alcançava algo como US$ 180
bilhões no final do ano passado. Portanto, os empréstimos chineses e de outros
países não poderiam superar US$ 180 bilhões, se objetivo for zerar ou manter
negativa a exposição líquida a risco cambial, protegendo o governo do risco
cambial.
Como
funcionaria, em termos macroeconômicos, esse endividamento externo? Do ponto de
vista do balanço de pagamentos, como vimos, aumentaria o déficit em conta
corrente ou mudaria a composição da conta de capitais. O aumento do déficit
externo corrente ou da saída líquida de capitais privados resultaria em
conversão de reais em moeda estrangeira, com contração equivalente da base
monetária. Essa contração seria neutralizada, porém, pela receita cambial
proporcionada pela entrada em montante equivalente do crédito externo ao
governo. A captação externa seria convertida de moeda estrangeira em reais e
utilizada para resgatar dívida interna no mesmo montante, sem efeito sobre a
base monetária e a liquidez da economia. Não há, assim, emissão líquida de
moeda e nem necessidade de operações de mercado aberto para “esterilizar” o
impacto de operações cambiais.
Em
suma, o aumento da dívida externa líquida do setor público abre espaço para um
aumento do déficit nominal (via investimento em infraestrutura, por exemplo) ou
uma diminuição da dívida interna em montante correspondente ao aumento do
crédito internacional para o governo federal. Se o déficit nominal ficar
constante, diminui a necessidade de recorrer a investidores em dívida interna,
residentes ou não. Este segundo resultado é que permitiria diminuir a
dependência do governo em relação a crédito caro, curto e volátil, obtido junto
a fontes domésticas e investidores estrangeiros de portfólio.
Se os
novos créditos externos forem concedidos, como se pretende, em condições mais
favoráveis de juro e prazo do que as condições médias do estoque da dívida
externa existente, melhora a estrutura da dívida, que fica mais barata e mais
longa, com impacto favorável sobre o balanço de pagamentos. Ao mesmo tempo – e
mais importante – admitindo-se que o governo não use (ou não use integralmente)
o aporte de crédito externo para aumentar o seu déficit, a mudança na
composição da dívida pública, com substituição da dívida interna por externa,
traria três vantagens: a) diminuiria o custo médio da dívida (supondo-se,
evidentemente, que a dívida nova com a China ou outros países tivesse custo
inferior à dívida interna); b) haveria alongamento da dívida (se os empréstimo
externos forem mais longos do que o prazo médio da dívida interna); e c)
aumentaria a estabilidade do financiamento ao setor público (reduzindo a
dependência em relação a investidores residentes e não-residentes que,
aproveitando-se da conta de capitais aberta e da liquidez dos títulos
brasileiros, entram e saem do país com facilidade e rapidez). Pode-se presumir
que o endividamento com a China ou outros países apresentaria, de fato, o
potencial para trazer essas três vantagens. A substituição de dívida interna
por externa implicaria, porém, um aumento da dolarização do estoque da dívida
pública, hoje limitada.
De
imediato, a entrada de empréstimos de novas fontes oficiais e a substituição de
dívida interna por externa provocariam valorização cambial, menor pressão sobre
a inflação, diminuição das taxas de juro longas e espaço para o Banco Central
diminuir a taxa básica, com redução do custo da dívida governamental.
·
Uma nova forma de dependência
Ressalte-se
que, para produzir esses efeitos imediatos, o governo brasileiro estaria em
certo sentido trocando seis por meia dúzia, isto é, dependência em relação à
Faria Lima e a Wall Street por dependência em relação à China ou outros países.
Essa nova dependência seria menor e menos custosa, mas apareceria mesmo assim e
não poderia ser desprezada.
O
recurso a financiamento externo, mesmo em condições de prazo e custo atraentes,
é mais complicado do que parece à primeira vista. Regra geral, não se deve
depender demais de fontes estrangeiras. Os países não têm amigos e sim
interesses, advertia De Gaulle. Melhor é que o financiamento das contas
públicas e do investimento produtivo seja feito primordialmente com capitais e
poupança nacionais. O capital se faz em casa, como recomendava Barbosa Lima
Sobrinho.
Resta
saber, de todo modo, se existe de fato disposição de emprestar grandes somas ao
governo brasileiro. Como mencionado acima, o prêmio de risco do Brasil nos
mercados internacionais é relativamente alto, uma vez que o país está sem investment
grade há muitos anos. Os empréstimos eventualmente concedidos não
poderiam, evidentemente, serem computados como reservas dos países credores,
pois seriam de longo prazo e não teriam a liquidez nem a segurança requeridas
para que esses ativos financeiros pudessem ser lançados como reservas
internacionais.
O mais
provável é que a China e outros credores potenciais só se disponham a oferecer
empréstimos novos a conta-gotas, testando a temperatura da água e pedindo
contrapartidas. Isso continuaria a interessar ao Brasil, em princípio, mas não
traria talvez a reviravolta macroeconômica que se poderia em tese contemplar.
Mesmo assim, se os empréstimos iniciais puderem ser apresentados como parte de
um programa mais amplo de substituição de dívida interna por externa, acordado
com a China e outros países, haveria impacto imediato e provavelmente
expressivo sobre as expectativas de mercado.
Fonte: Brasil 247
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