Tudo precisa ser útil? 'Esforço por
produtividade esgota a capacidade de nos deslumbrarmos', diz filósofa
"A admiração é
uma surpresa repentina da alma."
Essa foi a definição
do famoso filósofo, matemático e cientista francês René Descartes (1596-1650).
Ele definiu a
admiração como "a primeira" das seis paixões primitivas, na sua obra
As Paixões da Alma, de 1649. E esta paixão é a que arrebata a filósofa belga
Helen de Cruz.
"Descartes teve
uma visão profunda com a ideia de que existem seis emoções: a admiração, o
amor, o ódio, a tristeza, a alegria e o desejo", disse ela à BBC News
Mundo, o serviço em espanhol da BBC.
Todas essas emoções
são fundamentais, mas não são todas iguais. E a admiração é a mais diferente
entre elas.
"Todas estas
emoções fazem avaliações: quando você odeia alguma coisa, você diz 'não é útil
para mim'; quando ama, diz 'é útil'. Se algo faz você feliz, você pensa que é
bom, mas, se entristece você, é ruim", explica Cruz.
"Mas a admiração
não faz avaliações. Ela simplesmente observa em seus próprios termos." E,
para a filósofa, esta qualidade é fundamental.
"Parece que, hoje
em dia, sempre que fazemos algo, pensamos: 'Será que é útil?' 'Como irá nos
ajudar?'", prossegue ela.
"A nossa
mentalidade é esta: tudo precisa ser útil, até os seus hobbies, é preciso
maximizar o produto. E isso mata a admiração. Este é o antídoto contra o
deslumbramento."
Maravilhar-se com o
mundo é um aspecto fundamental da nossa humanidade. O deslumbramento incentiva
novas ideias e invenções que alimentam e enriquecem nossas vidas, individual e
coletivamente.
Este é o argumento de
Helen de Cruz no seu livro Wonderstruck: How Wonder and Awe Shape the Way we
Think ("Maravilhado: como o deslumbramento e o assombro moldam nossa forma
de pensar", em tradução livre).
• Assombro e deslumbramento
Entender o assombro e
o deslumbramento, segundo Cruz, é apreciar um aspecto importante e imortal do
ser humano. E, embora psicologicamente relacionadas, são duas emoções
diferentes.
O assombro é o que
"sentimos quando percebemos ou conceitualizamos a imensidão", seja
ela física ou conceitual. É o que sentimos quando contemplamos o céu,
observamos as pirâmides do Egito ou tomamos conhecimento dos inúmeros
infinitos.
Já o deslumbramento
"é a emoção despertada quando vislumbramos o desconhecido que está além
dos limites da nossa compreensão".
É algo como o que
sentimos ao ver um grão de areia sob a lente do microscópio ou um evento
astronômico inesperado.
Essas duas emoções são
combinadas pela "necessidade de acomodação cognitiva" — ou seja, o
desejo de abrir espaço na nossa mente para acomodar o assombro e o
deslumbramento.
"Com assombro e
deslumbramento, eu me refiro à ideia de Descartes, de que eles são basicamente
a primeira paixão", explica a filósofa.
"Quando você
encontra algo pela primeira vez ou considera algo como se fosse a primeira vez,
você tem essa sensação de 'uau, o que é isso?' Existe ali alguma coisa para a
qual você não estava preparado."
Cruz destaca que essas
duas emoções instigam ativamente dois ramos do conhecimento que, atualmente,
acreditamos serem totalmente separados: as ciências humanas e exatas.
"Acredito que, em
última instância, elas encontram sua origem no sentido de assombro, já que o
mundo à nossa volta nos deixa deslumbrados e tratamos de entendê-lo
melhor", segundo ela.
"Em seguida,
tentamos dar um lugar na nossa mente àquilo que nos assombra, o que podemos
fazer de muitas maneiras — seja pela arte, poesia ou pesquisa científica, ou
por qualquer das muitas outras atividades humanas. Elas são, na verdade, a
resposta à nossa tentativa de aprender mais sobre o mundo."
E isso é algo que
fazemos desde sempre. Mas, na sua pesquisa, a filósofa traçou uma linha de
assombro ao longo da história, partindo da filosofia ocidental.
Platão e Aristóteles
consideravam que o assombro era a origem da Filosofia. Graças a ele e ao
deslumbramento, os seres humanos começaram a explorar o seu entorno e se
perguntar sobre a origem da vida e das coisas.
"Em Teeteto [o
diálogo de Platão sobre a natureza do saber], Sócrates diz que 'a Filosofia não
tem outra origem senão o assombro'", explica a filósofa.
"Em seguida,
Aristóteles afirma que a ciência começa com o assombro de todos os seres
humanos. Não se trata apenas das crianças, nem dos filósofos ou cientistas, mas
de todos."
• Milagres e maravilhas
Na Idade Média,
segundo Cruz, as pessoas se perguntavam o que nos causa assombro. Assim surgiu
a distinção entre milagres e maravilhas.
"Os milagres são
aquilo que é causado por Deus e está realmente fora do alcance de como a
natureza funciona normalmente", explica ela. "Mas as maravilhas são
coisas da natureza que não entendemos, como o magnetismo, descrito por São
Tomás de Aquino. As pessoas acreditavam naquela época que fosse um fenômeno
raro."
Esses fenômenos raros
interessaram particularmente os pioneiros da ciência moderna. E, no século 16,
eles "se concentraram no que era estranho, não no normal". Aqui se incluem
os alquimistas, que foram os precursores da química.
"O estranho
ajudou os cientistas a irem mais além para aprender sobre o mundo. E, na
verdade, este é um aspecto importante da revolução científica", prossegue
a filósofa.
"Robert Hooke
[1635-1703], por exemplo, escreveu um livro mostrando como é estranho aquilo
que podemos observar no microscópio. E o que pareceu mais assombroso foi como é
bonito aquilo que é natural."
"Uma pulga, por
exemplo, que as pessoas odeiam, aparece bonita no microscópio", explica
Cruz, "enquanto uma lâmina de barbear parece rombuda como um machado que
não serviria para cortar uma árvore."
"Por que a
natureza parece tão bonita e os objetos feitos pelo homem, tão
imperfeitos?", questiona a filósofa. "Este era o tipo de pergunta que
as pessoas faziam, tentando realmente se aprofundar naquilo que nos assombra. E
isso continua até os dias de hoje."
O surpreendente é que
a ciência não elimina o assombro, quando torna seus mistérios inteligíveis.
O arco-íris não deixou
de nos deslumbrar quando a Ciência explicou o que ele é. Além disso,
"nossa compreensão de como se forma fisicamente o arco-íris abre novos
mistérios, como, por exemplo, a estrutura da cor e da própria realidade",
escreve Cruz.
Mas, no mundo de hoje,
existem obstáculos que eliminam o assombro das nossas vidas. Alguns deles são
resultantes da tecnologia, por mais avanços que ela tenha nos trazido,
incluindo novos motivos e oportunidades de assombro e deslumbramento.
Um exemplo é a
poluição luminosa, que faz com que grande parte do espetáculo do céu noturno
seja invisível para a maioria da população mundial.
Quando você olha para
cima, segundo Cruz, sua experiência é muito diferente da que tiveram nossos
antepassados. Em uma noite clara, eles viam na vastidão escura "um rico
tapete tecido com sutis tons de púrpura, rosa e vermelho-violeta, salpicado por
milhares de estrelas de diversos tamanhos."
Mas, hoje em dia,
"o brilho constante da luz artificial significa que muitos de nós nunca
vimos a Via Láctea, nossa galáxia".
Mas o obstáculo mais
persistente talvez seja o nosso próprio comportamento. Nosso contínuo esforço
em prol da produtividade esgota a capacidade de nos deslumbrarmos.
Por isso, Cruz
adverte: "o assombro exige atenção".
"O que você
precisa fazer é basicamente se colocar em um estado que não o leve a se
perguntar: 'isto é útil para mim ou não?' Você simplesmente se deixa levar e
aprecia as coisas pelo que elas são."
• Promovendo o assombro
No seu livro, Cruz
oferece conselhos para fazer com que o assombro faça parte da nossa vida.
"A questão é: por
que somos assim? Por que nos comportamos como se cada segundo precisasse ser
produtivo?", ponderou ela para a BBC News Mundo.
"Fazemos isso
porque a sociedade é configurada desta forma. Acredito que precisamos de uma
mudança social."
"Precisamos
resistir à ideia de que a economia é tudo o que importa e conseguir nos
organizar, não só individualmente, mas também como sociedade, para termos a
oportunidade de nos deslumbrarmos", defende a filósofa.
"Vou contar uma
pequena história. Muito tempo atrás, eu morava em uma rua com muito trânsito e,
no meio, havia uma pequena faixa que era como um refúgio, com cerejeiras
japonesas e um pequeno riacho. Ela foi feita por um arquiteto no século 19 e
era realmente muito bonita."
"Chegou um
momento em que as autoridades disseram que aquelas árvores estavam obstruindo o
trânsito e seria necessário construir uma terceira pista", ela conta.
"Todos no bairro se opuseram. Eles se acorrentaram às árvores e
organizaram eventos, como reuniões para observar flores e procurar ovos de
Páscoa."
"Mas,
infelizmente, o canteiro foi destruído. Desde então, ficou para mim a lembrança
de como, até entre duas ruas tomadas pelo trânsito, foi possível existir uma
fonte de deslumbramento."
E não é preciso apenas
preservar essas fontes de deslumbramento. Toda a sociedade e nós mesmos as
precisamos incorporá-las ao nosso cotidiano, para que elas não passem
despercebidas.
O livro de Helen de
Cruz apresenta sugestões para cultivar o assombro e o deslumbramento. Elas
incluem desde assistir a eventos científicos, como as noites de Ciência
oferecidas por alguns museus, até "observar eclipses, como ocorreu
recentemente, e participar de grupos como os de hanami, a tradição japonesa de
se maravilhar com as cerejeiras em flor".
Outra alternativa é se
entregar à ficção, com obras como a série de livros Terramar, da escritora
americana Ursula K. Le Guin (1929-2018). Suas obras inspiram assombro,
desafiando os leitores a questionar a realidade e a natureza das
possibilidades.
Outra opção é a
filosofia, que fornece o espaço mental para a reflexão. E contemplar a arte ou
se permitir ser invadido pela música, participar de eventos esportivos ou
assistir a festivais religiosos.
Se você não tiver
tempo, pode simplesmente seguir este antigo conselho: "pare e sinta o
aroma das rosas".
Você pode observar
como uma flor se infiltra em uma rachadura do concreto ou, como diz a filósofa,
deleitar-se com "os cristais de gelo na sua janela, no inverno", que
nunca perdem seu encanto.
"Sem um pouco de
magia nas nossas vidas, sem um lugar para o inesperado e o maravilhoso, a vida
é aborrecida e monótona", escreveu Cruz.
"A realidade é
literalmente repleta de maravilhas. Precisamos abrir espaço para elas, para que
a vida valha a pena."
Fonte: BBC News Mundo
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