Marcio Sotelo Felippe: ‘Tarcísio e a nova
normalização do fascismo’
“Al Fascismo no se le discute, se le destruye”. A frase do anarquista espanhol Buenaventura Durruti encerra uma
lição que a história, mestra desprezada e sem discípulos, vem ensinando. Em uma
entrevista que concedeu em 1936 ao jornalista Pierre Van Paassen, no início da
guerra civil, dizia Durruti que, quando a burguesia vê que o poder lhe escapa,
recorre ao fascismo para manter seus privilégios. Que o governo republicano (da
Espanha naquele momento) poderia ter eliminado o fascismo, mas contemporizou,
transigiu, buscou compromissos e acordos.
O que Durruti
denunciava é um cenário característica dos momentos em que o fascismo emerge.
Para as classes dominantes, o fascismo é uma reserva política estratégica, e
para tornar essa reserva viável, é preciso uma manobra tática: a normalização
do fascismo.
Caso típico de
normalização do fascismo foi o indelével editorial do jornal Estado de
S. Paulo na véspera da eleição presidencial de 2018 “Uma escolha
difícil”: Bolsonaro era ruim, mas Haddad era tão ruim quanto. Antagonismos que
se equivaliam, apesar de Bolsonaro defender a tortura; ter como ídolo um
torturador que enfiava ratos em vaginas de mulheres; ter clamado pelo
assassinato de Fernando Henrique Cardoso e lamentado que a ditadura militar não
tivesse matado 30 mil.
Nessa trilha da
normalização do fascismo, um colunista de direita da grande imprensa clama por
um “bolsonarismo moderado” na eleição presidencial de 2026. Não é preciso muita
esperteza para saber de quem ele está falando. Trata-se do “democrata” Tarcísio
de Freitas. A direita tradicional, pela sua inexpressividade política e
inviabilidade eleitoral, recorre a um quadro do bolsonarismo que se quer vender
como moderado. No entanto nunca fez autocrítica. Nunca se distanciou do
fascismo bolsonarista e soma-se fielmente às suas fileiras, reafirmando sua
lealdade ao chefe em qualquer oportunidade que se oferece. Nenhum pejo teve,
por exemplo, de montar na garupa de Bolsonaro em sua motociata ao estilo de
Mussolini, em plena pandemia, evento que o jornal inglês The Guardian qualificou
de “obsceno”.
Mas acontece que,
salvo quando despedaça furiosamente o martelo da Bolsa de Valores comemorando
uma privatização, Tarcísio de Freitas é um homem polido, de boas maneiras, não
se lambuza de farofa, parece saber usar talheres e não tem a postura histriônica,
caricata e grotesca dos típicos líderes fascistas. Bastante adequado para a
falácia do “bolsonarismo moderado”, para o jogo de aparências que contamina os
nossos processos eleitorais. A aparência que terá a função de velar a realidade
de dois traços básicos do fascismo que se fazem presentes no seu governo, a
violência e a dominação ideológica. Vejamos ambos.
O primeiro apareceu na
Operação Verão que matou 56 civis (número oficial), claro que em “confrontos”
com a polícia. Resta saber como travaram esses confrontos pessoas com
deficiência que usavam muletas, cegos e uma mãe de família com seis filhos,
mortos na operação segundo denúncia do Ouvidor da Polícia Cláudio Aparecido da
Silva. Respondendo às denúncias, o “bolsonarista moderado” Tarcísio disse “não
tô nem aí”; “o pessoal pode ir na ONU, pode ir na Liga da Justiça, no raio que
o parta”. Na semana última noticiou-se que o sistema de câmeras policiais que
está sendo adquirido pelo governo Tarcísio terá a interessante particularidade
de ser acionada pelo próprio policial quando lhe aprouver…
O segundo traço, a
dominação ideológica, deu um primeiro passo com o projeto de criação de escolas
cívico-militares, aprovado pela Assembleia Legislativa na última semana.
Consiste em oficiais da Polícia Militar lecionando em escolas públicas para
ensinar “disciplina e civismo”, nas palavras do moderado bolsonarista.
Desnecessário qualquer comentário.
Os dois traços do
fascismo, violência e dominação ideológica, tem o sentido de moldar a sociedade
pela exclusão de parte dela. O fascismo nunca pode ser admitido como força
política legítima porque seu projeto é exatamente destruir todas as demais
forças políticas. Precisa da violência para aniquilar outras visões de mundo e
para exterminar os que reputa “indesejáveis”. Precisa da dominação ideológica
para uma dupla função, a de legitimar pelo consenso a exclusão e mobilizar
parte da sociedade na tarefa de aniquilar a outra.
Com o fascismo não se
concilia. Não se faz acordo. Não se transige. Não se faz aliança. Não se
anistia. O fascismo se destrói. Compete às forças lúcidas, racionais,
progressistas e populares a missão de destruí-lo. As classes dominantes, seus
ideólogos e representantes políticos, jamais o farão, como a história ensina.
¨ Na SP de Tarcísio, policiais podem desligar as câmeras, mas os
cidadãos não. Por Lucas Pedretti
EM GAMBÉ, ROMANCE recém
lançado pela Companhia das Letras, o jornalista Fred di Giacomo Rocha narra, de
forma ficcional, a atuação de um grupo de policiais comandados por João Antônio
de Oliveira, o Tenente Galinha.
Sob a justificativa de
caçar “bandidos” no interior de São Paulo, os homens de Galinha atravessavam o
estado no início do século XX promovendo crimes bárbaros, como chacinas e
estupros em série. Sempre em nome da lei, do estado, da justiça e da
moralidade, é claro.
O livro é um romance,
mas Galinha existiu de fato. No site da Polícia Militar de São
Paulo, a PMESP, inclusive, em sua parte dedicada aos “vultos históricos” que
honram a corporação, o agente ganha destaque.
“Personagem polêmico”,
diz o portal da PMESP, “sua fama antecedia sua presença física, atemorizando os
delinquentes que, à época, assolavam os sertões paulistas, então em sua fase
pioneira de colonização”.
Essa mesma instituição
que celebra a figura de Tenente Galinha está no centro de duas medidas
anunciadas pelo governo estadual de extrema-direita comandado pelo militar da
reserva Tarcísio de Freitas, do Republicanos, na semana passada.
A primeira foi o
fortalecimento do programa “Muralha Paulista”, que busca consolidar uma mega estrutura de monitoramento. A
ideia é interligar câmeras públicas e privadas, dando à polícia um amplo poder
de vigilância.
Apresentado como um
“Big Brother” da PM de São Paulo, a iniciativa se baseia na ideia de que a
tecnologia do reconhecimento facial seria uma grande aliada no combate à
criminalidade. A empresa árabe contratada para implementar o programa tem como
representante no Brasil Marcos Degaut, ex-secretário do Ministério da Defesa do
governo Bolsonaro.
A segunda foi a
publicação de um novo edital para as câmeras corporais utilizadas pela PMESP,
com a previsão de que os próprios agentes possam desligar os equipamentos
durante as operações. A medida acaba com aquela que era uma das principais
características do programa de câmeras nas fardas dos policiais implementado no
governo anterior: a gravação ininterrupta.
É inevitável, diante
dos anúncios, colocar a questão sobre o porquê a vigilância sobre os cidadãos
cresce na mesma medida em que o controle sobre os agentes do estado diminui. A
pergunta se torna ainda mais necessária quando encaramos alguns fatos tanto sobre
as câmeras corporais quanto sobre o reconhecimento facial.
Em uma nota à imprensa,
entidades da sociedade civil como o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o
Instituto Vladimir Herzog e grupos acadêmicos como o Núcleo de Estudos da
Violência da USP e o Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos da UFF, reagiram.
Elas lembram que a
instalação das câmeras corporais a partir de 2020 levou a uma redução de mais
de 60% na letalidade policial. O texto reforça, ainda, que a medida permitiu
também uma diminuição drástica no número de policiais mortos em serviço.
Os resultados
positivos da implementação das câmeras contrastam radicalmente com os
sucessivos equívocos das tecnologias de reconhecimento facial.
Recentemente, alguns
casos tiveram grande repercussão, como a prisão de um
homem no meio de um jogo de futebol em Aracaju e duas prisões realizadas no
Reveillon de Copacabana, no Rio de Janeiro.
Esses são exemplos que
se tornaram célebres, mas estão longe de serem exceções. O viés racista das
tecnologias de reconhecimento facial tem sido amplamente denunciado por
organizações de direitos humanos e pesquisadores, que defendem que esses
mecanismos não trazem benefícios que justifiquem seu uso.
·
O caso de amor entre a extrema-direita e a
violência policial
Vivemos num tempo em
que o imperativo da eficiência costuma se impor. Mesmo diante de momentos de
grave crise, como na pandemia ou agora na tragédia socioambiental no Rio Grande
do Sul, há quem olhe mais para as planilhas do que para as vidas e reivindique
que os gastos públicos devem ser rigidamente controlados.
Uma das expressões
desse imperativo é a ideia de “políticas públicas baseadas em evidência”,
jargão muito comum de ser encontrado, por exemplo, nos discursos de quem diz
querer “romper a polarização” e coisas do tipo.
Dessa forma, pareceria
fazer pouco sentido a resistência do governo Tarcísio, por exemplo, em relação
às câmeras corporais. Os dados gritam que as câmeras corporais levaram a uma
redução imediata nas mortes causadas por agentes do estado.
A questão é que a
decisão do governador de São Paulo só parece incoerente para quem realmente
acredita que o problema da segurança pública e da violência policial é de ordem
técnica. Não é. É uma questão política.
Ao contrário do que os
discursos neoliberais tentam nos vender, não há critérios objetivos e externos
que definam o que é uma política pública bem sucedida ou não. Esses parâmetros
são sempre estabelecidos como resultado de disputas sociais e políticas em
torno do que o estado deve fazer e como deve se dar sua ação.
O que precisa ficar
evidente, portanto, é que para Tarcísio e para a parcela da sociedade que ele
representa, uma política de segurança pública bem sucedida não é aquela que tem
como resultado uma diminuição da violência – seja a praticada por agentes do
estado, seja a que se volta contra os próprios policiais.
O militar de
extrema-direita se alimenta dessa violência e depende dela para se eleger, se
manter em evidência e se cacifar como sucessor do seu ex-chefe Jair
Bolsonaro.
Portanto, o resultado
esperado das ações da Polícia Militar do Estado de São Paulo sob seu comando é
exatamente o que está ocorrendo: mais mortes, mais brutalidade, mais
truculência, mais racismo, menos controle externo, menos transparência, menos
responsabilização.
É claro que,
diante da necessidade de convencer outros setores da opinião pública nos
debates imediatos, o recurso aos dados e às evidências empíricas é fundamental.
Nesse sentido, o
trabalho feito pelas entidades da sociedade civil e pelos grupos acadêmicos de
chamar a atenção para os efeitos positivos das câmeras corporais e negativos do
reconhecimento facial é imprescindível.
Mas se a questão não é
técnica, e sim política, isso significa que não haverá superação possível do
cenário de violência policial sem uma disputa explícita em torno dos critérios
do que significa uma política bem sucedida de segurança pública.
No entanto, parece
que, eleição após eleição, nossas forças progressistas perdem a capacidade e a
coragem de fazer esse debate.
Em 1982, ainda sob a
vigência de um regime autoritário, ocorreram as primeiras eleições gerais para
governadores de Estado depois de anos de ditadura.
Na ocasião, candidatos
como Leonel Brizola, no Rio de Janeiro, e Franco Montoro, em São Paulo, foram
eleitos defendendo de forma explícita a limitação das operações policiais em
favelas e profundas reformas nas polícias e nas prisões, respectivamente.
Ainda que de maneiras
distintas, fato é que eles enfrentaram a corrida eleitoral defendendo uma
ampliação do discurso dos direitos humanos.
Se na década de 1970
essa retórica havia servido para libertar os chamados presos políticos e
garantir o retorno dos exilados, Brizola e Montoro afirmavam ali que a proteção
contra a violência do Estado deveria ser estendida também para outros setores
da população, como os moradores de periferias e as pessoas privadas de
liberdade.
Hoje, o primeiro recuo
de qualquer candidato de esquerda quando este percebe que há alguma chance de
se eleger para o poder executivo se dá exatamente no campo da segurança
pública.
Defender que a polícia
não deve matar – nem mesmo supostos “bandidos” – ou que pessoas presas têm
direitos já parece muito. Imagine então adotar bandeiras como o fim das
polícias militares ou o desencarceramento.
O problema é que cada
recuo deste campo representa um avanço do outro lado. Em 2013, se tornou
célebre a palavra de ordem: “não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da
polícia militar”. Hoje, é quase revolucionário defendermos câmeras nos
uniformes dessa mesma polícia.
Enquanto isso, os
aparelhos da violência do estado vão apenas acumulando mais camadas numa longa
trajetória de promoção da barbárie – do Tenente Galinha a Tarcísio de Freitas.
Afinal, é como nos diz o autor de Gambé: “E quanto mais os
vivos matam, mais surdos ficam ao apelo dos que morreram”.
Fonte: Cult/The
Intercept
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