Henri Acselrad: As cidades e as águas
A tragédia das
inundações das cidades do Rio Grande do Sul nos lança com força a pergunta:
quais são as manifestações da questão ambiental nas cidades e como entendê-las?
O sofrimento das populações, em sua maioria urbanas, atingidas por um desastre
desta monta clama por ação e também por reflexão. Afinal qual é a dimensão
especificamente ambiental das cidades?
O entendimento
corrente a este respeito parece ainda insuficiente. A dimensão ambiental do
urbano, dizem alguns, estaria na presença da natureza na cidade. Esta natureza,
normalmente associada ao rural, poderia ser observada também nas cidades. Ou
então, dizem outros, trata-se apenas de um “ambiente construído”, pois, não
sendo natural, o ambiente das cidades é puro artifício e a natureza seria
relegada ao espaço do campo. Em ambos os casos, este tipo de resposta faz uma
separação de domínios entre ambiente e sociedade ou, então, vê um ambiente
cortado ao meio – parte natureza, parte artifício social.
Tentemos situar no
tempo histórico a noção de ambiente urbano e sua gênese, procurando não separar
ambiente e sociedade. Isto porque no campo, como nas cidades, o ambiente é
sempre apropriado material e simbolicamente pelos diferentes atores sociais.
Certos autores cuidam, ademais, de nos lembrar: trata-se de uma problemática
construída em um momento histórico determinado. Foi apenas em um dado momento
do conhecimento científico e do debate público que as paisagens, no campo como
nas cidades, passaram a ser vistas sob uma nova ótica – ambiental; a “ecologia”
dirigiu o olhar para o modo como são feitas as ligações entre as partes – entre
plantas e solos, rios e margens, edificações e morros.
E, sobretudo, para as
ligações entre os diferentes modos de usar rios, lagoas, solos, atmosfera etc.
Seria preciso, por exemplo, nos dizem os especialistas, alargar o olhar sobre
as cidades para abranger toda a bacia hidrográfica onde elas se inserem. A questão
urbana foi, assim, sendo“ambientalizada” pela formulação de novas percepções e
interpretações dos problemas urbanos, em particular pela atenção dada às
ligações e impactos recíprocos entre as diferentes formas de ocupação dos
espaços.
Não se trata, por
outro lado, apenas da questão dos ecossistemas onde se inscrevem as cidades,
mas do conjunto de ideias e concepções mediante as quais se foram construindo
os problemas socioecológicos urbanos e seus modos de tratamento.
A noção de
“ambientalização” surgiu, assim, para designar o modo pelos qual os atores
sociais passaram a avaliar a pertinência e legitimidade das práticas de
ocupação do espaço, classificando-as em ambientalmente danosas ou
ambientalmente benignas. Assim foi que certos modos de apropriação e uso
do espaço, nas cidades e fora delas, passaram a ser percebidos e apontados como
geradores de impactos indesejáveis sobre as condições ecológicas de existência
e trabalho de terceiros.
E qual teria sido o
histórico desta ambientalização da questão urbana? Sabemos que, em sua origem,
a cidade moderna foi entendida como portadora de uma questão populacional. Os
estatísticos que mediam os fatos urbanos, no século XIX, eram vistos como “técnicos
de populações”. Eles apontavam o aglomerado populacional como responsável pelos
males materiais e morais na cidade. Temas malthusianos invadiram então o debate
público: a transpiração da cidade e a exalação de vapores em proveniência de
uma grande quantidade de homens e animais eram vistos como problemas próprios
aos bairros mais povoados.
Era nessas
localidades, diziam eles, que se situavam as oficinas ruidosas e poluentes, as
ditas patologias morais da criminalidade e da prostituição. A concentração
populacional unificava as dimensões materiais e morais da recém conhecida
expansão urbana. E mesmo quando os estatísticos verificavam uma
distribuição desigual da taxa de mortalidade entre bairros, a relação
quantitativa entre o número de indivíduos e o espaço ocupado pelo bairro era
apontada como responsável pela desigualdade diante da morte – a atmosfera de
massas, os miasmas, a falta de ar…
Não se incluía nas
análises de então outros tipos de processos de concentração, além dos efeitos
de aglomeração de gente: pouco se discutiu, por exemplo, a concentração de
poder sobre o espaço urbano e seus recursos, como tampouco a concentração da
capacidade de certos atores sociais afetarem – dentro e fora das cidades – os
demais por via do impacto de suas práticas na fisíco-química atmosférica, nas
águas, nos solos e sistemas vivos.
Enquanto o capitalismo
foi criado juntamente com a privatização da terra, tornada, a partir de então,
uma pseudomercadoria, apresenta-se a nós a pergunta seguinte: o que teria
acontecido com os demais elementos de uso compartilhado como as águas e o ar? O
historiador Alain Corbin dá elementos para caracterizar o que hoje podemos
considerar uma dimensão ambiental avant la lettre do urbano:
com relação aos males associados à grande indústria, prevaleceram, a partir de
então, diz ele, o otimismo tecnológico e a naturalização da poluição.
O que passou a
vigorar, nos usos sociais das águas e da atmosfera, foram relações de força; ou
seja, o exercício da potência de certos proprietários disporem livremente dos
espaços compartilhados por todos. Friedrich Engels, por sua vez, falava, de
forma bem mais genérica, de uma capitalização de tudo: “os capitalistas se
apropriam de tudo, enquanto, ao grande número, não resta senão a própria vida”.
A industrialização,
dizem os historiadores, gerava ansiedades públicas. Ou seja, ela trazia consigo
um problema político: o da prevalência de um determinado uso privado dos
espaços não-mercantis do ar e das águas sobre os demais usos. Uma questão
política que foi, porém, silenciada. Atos de força que foram naturalizados,
despolitizados. Dada a nova escala de operação das práticas produtivas e a
forma concentrada do exercício do poder de manejo dos espaços e recursos,
criou-se uma divisão social desigual da capacidade das práticas espaciais se
impactarem reciprocamente; no campo, nas cidades e, por certo, entre o campo e
as cidades.
As práticas dominantes
da grande indústria e da agricultura em grande escala impuseram, assim, de
fato, seus usos privados aos espaços comuns do ar e dos cursos d´água, neles
lançando os produtos não vendáveis da produção de mercadorias (resíduos, efluentes,
emissões) ou, no caso da agricultura comercial, desmatando margens e
compactando solos, impactando – e eventualmente comprometendo – o exercício de
outras práticas espaciais não dominantes.
Podemos chamar essa
configuração de uma “proto-ambientalidade” do capitalismo – ou seja um padrão
“ambiental” próprio ao regime de acumulação de riqueza que começou a operar
muito antes que uma questão ambiental propriamente dita tivesse sido formulada
como um problema público. Certos autores fazem menção ao que teria sido uma
“primeira política pública ambiental” europeia quando, em 1806, as manufaturas
de Paris foram classificadas em categorias de “cômodas e incômodas”, umas sendo
afastadas da aglomeração, outras toleradas.
Ora, tais medidas não
davam propriamente tratamento às indústrias como fonte de poluição ambiental a
ser restringida e regulada; as fábricas tornaram-se apenas objeto de políticas
espaciais de localização dos incômodos.
Saltemos um século: é
nos anos 1960, que pudemos observar o surgimento de lutas sociais através das
quais se fez a denúncia – como “males ambientais” – dos processos de dominação
privada, de fato, dos espaços comuns, que vinha sendo praticada desde os primórdios
do capitalismo; ou seja, a imposição, a cidadãos supostamente livres, do
consumo forçado – via cursos d´água e atmosfera – de produtos invendáveis da
produção mercantil: resíduos sólidos, efluentes líquidos e gasosos.
Questionamentos foram
feitos igualmente ao manejo arbitrário das matas e cursos d´água pela grande
agricultura químico-mecanizada, com suas consequências danosas para a
alimentação, a biodiversidade e os solos. O que se buscou fazer então foi
politizar um debate antes silenciado, iniciando um processo de ambientalização
das lutas sociais que incluiu, por certo, questões urbanas.
Inicialmente, a partir
dos movimentos sociais contraculturais de crítica ao consumismo e ao modelo
agrícola monocultural que, vemos hoje, tem consequências dramáticas sobre
bacias hidrográficas, com inundações de áreas urbanas, mediadas ou não por
mudanças climáticas; em seguida, por instituições multilaterais, UNESCO,
HABITAT e Banco Mundial, com a assim chamada “agenda marrom” relativa a uma
ambientalização do saneamento; por fim, por governos, que criaram suas
secretarias e ministérios de meio ambiente, em grande parte como resposta a
movimentos sociais e pressões internacionais e com pouca incidência sobre as
cidades, embora, mais recentemente, evocando a necessidade de adaptação das
cidades às mudanças climáticas.
Mas, para além dos
usos correntes do senso comum, que considera o ambiente urbano como a soma das
questões do saneamento, da poluição do ar e da água, da impermeabilização e
contaminação dos solos, em termos analíticos, poderíamos ainda perguntar: como
se foi conceituando, de forma um pouco mais sistemática, a “dimensão ambiental
do urbano”? Como foram sendo unificados processos aparentemente tão dispares?
Observando a
literatura sobre meio ambiente urbano, verifica-se uma ampliação do debate
convencional do urbano para aspectos físico-químicos e biológicos da
configuração das cidades. Os autores que vieram animando este debate
referem-se, via de regra: (a) ao modo como, nas cidades, se consome, transforma
e deterioram os “bens coletivos, como água, ar, solo”; (b) ao fato que estes
bens coletivos passaram a ser vistos como mediadores/transmissores de riscos de
comprometimento das condições ecológicas da vida nas cidades, em função dos
diferentes modos sociais de apropriação de que eles são objeto; (c) à
necessidade de se considerar a diferenciação social no processo de mudança
socioecológica: a saber, que os riscos urbanos são distribuídos desigualmente;
o que favorece a um grupo social pode prejudicar a outro.
Assim, “a natureza
urbanizada reuniria bens materiais e simbólicos atravessados por conflitos
sociais urbanos em torno a seu controle, configurando padrões espaciais
desigual de distribuição das amenidades e males ambientais”.
Articulando-se as
considerações destes autores, a noção de “meio ambiente urbano” designaria o
espaço de vigência de riscos urbanos associados aos modos de apropriação e
consumo de bens coletivos como ar, água e solo, assim como elementos dos
sistemas vivos portadores de microorganismos, vírus, bactérias etc., pelos
quais certas práticas espaciais (em geral de empreendimentos capitalistas de
grande impacto) afetam as práticas de terceiros (em geral grupos despossuídos e
racializados), em contexto de padrões socialmente desiguais e conflituais de
distribuição de danos e amenidades urbanas.
Estamos longe,
portanto, dos simples efeitos populacionais aglomerativos do século XIX, mas,
sim, confrontados aos efeitos indesejáveis de determinadas práticas espaciais
desenvolvidas nas cidades ou fora delas, mas com impactos sobre elas.
O governo do “ambiente
urbano” remete, assim, à regulação política dos riscos desigualmente
distribuídos decorrentes dos modos dominantes de apropriação dos espaços
materiais compartilhados e não-mercantis da cidade ou fora das cidades, com
consequências dentro delas. Não se trata, com efeito, somente da gestão de
ecossistemas, mas da regulação de práticas espaciais e das disputas em torno à
definição de quais delas são ou não portadoras de riscos e para quem.
A este propósito, é
gritante a concomitância entre as cheias desastrosas nas cidades e a
flexibilização de códigos florestais (o caso de Santa Catarina, em 2011, é
disto emblemático), indicando a força do negacionismo aplicado a relações
causais e à (des)responsabilização dos tomadores de decisões geradoras de
riscos. Exemplo recente é o de um vereador do Rio Grande do Sul que culpou as
árvores pelos deslizamentos de encostas, entre outros contrasensos.
Ou então a conhecida
campanha de imprensa dizendo que as favelas deveriam ser removidas por sua
definição como “problema ambiental” das cidades. Ora, a moradia precária
é, na realidade, uma, entre muitas, das manifestações do padrão desigual de
distribuição dos riscos ambientais urbanos. Evidências empíricas mostram, a
propósito, a vigência de uma lógica discriminatória de localização de
equipamentos portadores de risco, sendo as populações negras, indígenas e de
baixa renda expostas, de forma mais que proporcional, a seus impactos
ambientais, assim como às dinâmicas inigualitárias do mercado de terras, à
distribuição desigual de infraestrutura de saneamento, ao insuficiente acesso a
moradia segura etc.
As situações assim
configuradas de desigualdade ambiental são aquelas, portanto, que exprimem
processos de concentração do poder, por parte dos agentes das práticas
espaciais dominantes, de impactar a terceiros – os promotores de práticas
espaciais não dominantes – e de não serem por eles impactados. Por esta razão,
as grandes corporações, inclusive as imobiliárias urbanas, justificam no plano
discursivo, licenças ambientais pouco criteriosas, flexibilização de normas e
regressão de direitos. Impactos danosos e riscos serão alocados
sistematicamente, de forma mais que proporcional nos espaços ocupados por
grupos sociais despossuídos.
Em paralelo, a
condição de vulnerabilidade experimentada pelos grupos despossuídos e
racializados resulta da subtração de suas condições de resistência à imposição
de agravos, inclusive climáticos, quando vigoram relações desiguais de poder
nas dinâmicas espaciais de localização e de mobilidade urbana. A condição de
vulnerabilidade exprime, assim, o fato de o Estado deixar de assegurar proteção
igual para todos os seus cidadãos – como defesa contra enchentes, ilhas de
calor, deslizamentos etc.
Em debates acadêmicos
em torno à definição do objeto de estudos da disciplina da História Ambiental,
certos pesquisadores conclamaram seus colegas a não se ocuparem das cidades,
por elas serem supostamente expressão da cultura, estranhas ao objeto natureza.
Os defensores da pertinência do tema do ambiente urbano retrucaram, por sua
vez, que seria impossível estudar a natureza sem levar em conta aquilo que há
dois séculos representou seu maior desafio: a urbanização em massa e a
industrialização.
Excluir a cidade como
construção cultural, dizem eles, suporia, ademais, desconsiderar que as
paisagens agrárias também o são. Poderíamos acrescentar mais um argumento:
a vigência de desigualdades ambientais na distribuição dos riscos urbanos
indica que a gestão do ambiente das cidades é uma incontornável e específica
questão política. Consequentemente, caso se queira garantir proteção ambiental
para todos e evitar situações críticas como as que abalaram as cidades do Rio
Grande do Sul, será preciso não apenas cuidar da manutenção das estruturas
hidráulicas construídas ao longo dos cursos de água, mas também regular as
práticas espaciais urbanas e extra-urbanas – no caso em pauta, da grande
monocultura desmatadora – através de leis e normas que sejam resistentes aos
esforços negacionistas de flexibilização, desmontagem e retrocesso.
Fonte: A Terra é
Redonda
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