quinta-feira, 30 de maio de 2024

O BRICS e o desafio da desdolarização

Os artigos reunidos neste número da Wenhua Zongheng (文化纵横) lançam luz sobre temas de grande interesse para a economia internacional.

Em particular, esse número retoma a popular e amplamente discutida questão da desdolarização.

A desdolarização é necessária?

Será possível na prática e, em caso afirmativo, em que prazo?

Como os países interessados na desdolarização podem ou devem agir?

O BRICS pode, em conjunto ou individualmente, ajudar a avançar nesse sentido?

A China poderia intervir para fornecer a sua moeda, o renminbi, como alternativa ao dólar estadunidense?

Todas, ou a maioria dessas questões, são discutidas nos artigos escritos pelos professores Gao Bai (高柏), Yu Yongding (余永定) e Ding Yifan (丁一凡).

No passado recente, também tentei escrever três vezes sobre a desdolarização¹.

Nesta apresentação, retomo alguns aspectos do debate em curso, tentando não me repetir demasiado, ao mesmo tempo em que busco abordar questões levantadas nos três artigos dos pesquisadores chineses.

Como é sabido, a desdolarização tornou-se um tema quente desde 2022, quando os Estados Unidos e os países europeus decidiram bloquear uma grande parte das reservas internacionais da Rússia em resposta à invasão da Ucrânia, conforme descrito por Yu Yongding.

Tradicionalmente, autoridades e especialistas ocidentais têm ensinado aos países em desenvolvimento sobre a necessidade de adotarem políticas de “criação de confiança” e de respeitarem os direitos de propriedade.

Isso é realmente incrível, olhando em retrospectiva.

O congelamento dos ativos russos e as ameaças mais recentes de avançar para o confisco total são medidas importantes de “destruição da confiança”, causando grandes danos ao dólar estadunidense e ao euro.

Essas ações dispararam um alarme para países como a China, um grande detentor de títulos em dólares americanos como parte das suas reservas internacionais.

Qualquer país que enfrente conflitos com os EUA e o resto do Ocidente percebeu imediatamente a necessidade de medidas para reduzir a sua dependência do dólar e do sistema financeiro ocidental.

Em muitas partes do mundo, os esforços para utilizar moedas nacionais em transações internacionais, para construir ou reforçar sistemas de pagamentos alternativos, para confiar mais no renminbi chinês e até para criar uma nova moeda de referência do BRICS foram intensificados.

Sem dúvidas o que temos visto é um grande tiro no pé dado pelos EUA e pela Europa.

Em seus artigos, os três autores apresentam contribuições significativas para a discussão de todos esses desafios.

A popularidade do tema da desdolarização em círculos mais amplos e nos meios de comunicação não é necessariamente acompanhada por uma compreensão da sua complexidade.

Existe uma expectativa generalizada de que o BRICS irá desenvolver, num futuro próximo, uma alternativa ao dólar estadunidense.

Mas será que esta expectativa é realista? A complexidade do tema é dupla – política e técnica.

Do lado político, podem-se mencionar duas grandes dificuldades:

(i) a notória resistência dos EUA em abrir mão do que os franceses, na década de 1960, chamaram de “privilégio exorbitante” de ter a sua moeda nacional – emitida e gerida de acordo com os interesses nacionais dos EUA – servindo como a principal moeda global; e

(ii) a dificuldade de realmente unir os países do BRICS nessa empreitada.

Permitam-me tentar abordar essas duas grandes dificuldades, com base em parte na minha experiência prática como diretor do Fundo Monetário Internacional (FMI), delegado brasileiro no processo BRICS e posteriormente vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD).

Nunca se deve perder de vista o fato de que os Estados Unidos irão, muito provavelmente, utilizar todos os diversos instrumentos à sua disposição para lutar contra qualquer tentativa de destronar o dólar do seu status de pilar do sistema monetário internacional.

Sempre o fizeram, a começar pelas negociações monetárias e financeiras que aconteceram no final e imediatamente após a Segunda Guerra Mundial.

As ideias de Keynes para uma moeda internacional foram veementemente rejeitadas pelas autoridades estadunidenses.

Mais tarde, os EUA utilizaram seu poder de veto no FMI para bloquear medidas que poderiam ter tornado os Direitos Especiais de Saque (DES) da instituição uma moeda plena de status internacional. Até hoje, os DES continuam sendo secundários e quase sem relevância fora do FMI.

Os EUA encaram as discussões incipientes sobre a desdolarização entre os países BRICS com profunda desconfiança, e é provável que o país interfira a cada passo para bloquear iniciativas e gerar divergências entre os membros do BRICS.

Pode-se perguntar, por exemplo, se a Índia e a África do Sul estarão imunes às pressões vindas dos EUA sobre este assunto.

O meu próprio país, o Brasil, atualmente segue uma política externa independente sob a liderança do Presidente Lula, mas um futuro governo com uma orientação diferente poderá ser relutante em desagradar aos EUA numa questão tão crítica.

Isso nos leva diretamente à segunda dificuldade política mencionada acima.

Será o BRICS suficientemente coeso, como grupo, para enfrentar esse desafio complexo?

Com base na minha experiência prática no processo BRICS, gostaria de alertar contra o otimismo demasiado na resposta a essa questão.

Mesmo quando havia apenas cinco países na mesa, as dificuldades para chegar a acordos sobre medidas concretas – por exemplo na criação e implementação do fundo monetário do BRICS (o Arranjo Contingente de Reservas, CRA) e do Novo Banco de Desenvolvimento (o NDB) – eram verdadeiramente surpreendentes.

Primeiro, devido às diferentes perspectivas e interesses nacionais entre os cinco países.

Em segundo lugar, infelizmente, devido à falta de talento e competência técnica de muitos dos funcionários que representam os cinco países nessas negociações e nos mecanismos financeiros resultantes destas.

Compreendo perfeitamente que esta é uma afirmação dura, mas se quisermos abordar seriamente as questões desafiadoras da desdolarização e das alternativas à moeda dos EUA, precisamos ser realistas e ter um mínimo de autocrítica.

A expansão do BRICS, iniciada em 2024, irá agravar ainda mais os problemas de coordenação e as vulnerabilidades políticas.

Com nove ou dez países membros (a depender da aceitação e adesão da Arábia Saudita), é possível prever que haverá um desafio ainda maior para avançar em qualquer questão prática.

Observadores externos, pessoas que não são especialistas e mesmo acadêmicos conceituados desconhecem frequentemente tais obstáculos.

Alguns somam o Produto Interno Bruto (PIB) e as populações do BRICS ou do BRICS+ para concluir, precipitadamente, que o grupo se tornou uma grande força no mundo.

Alguns países, creio que a China e a Rússia estão entre eles, querem expandir ainda mais o grupo.

Na retórica da imprensa, supostamente o BRICS expandido está destinado a tornar-se um fórum para o Sul Global.

Isto pode parecer bom, mas também poderia ser perguntado: será que um grande e rápido aumento no número de membros do grupo não resultará, em última análise, em uma transformação do BRICS+ em algo parecido com uma “ONU do Sul”, talvez tão ineficaz como a própria ONU?

Contudo, não sejamos demasiado negativos. A verdade é que o grupo BRICS inclui países importantes.

Os quatro membros originais – Brasil, Rússia, Índia e China – estão entre os gigantes do mundo.

A China é hoje a maior economia, em termos de PIB em paridade de poder de compra, tendo ultrapassado os EUA por uma margem considerável.

Os países do BRICS partilham uma insatisfação de longa data com a arquitetura monetária e financeira internacional existente. Nessas décadas iniciais do século XXI, os motivos de insatisfação só cresceram.

As instabilidades financeiras, econômicas e políticas aumentaram dramaticamente, mas o Ocidente não dá sinais de fazer as adaptações e concessões necessárias para acomodar o BRICS e outras nações de mercados emergentes.

Além disso, a disfuncionalidade do sistema monetário internacional baseado no dólar, que remonta à década de 1960, se torna cada vez mais óbvia.

Assim, temos o dever de buscar estar à altura desses desafios. Se não conseguirmos fazê-lo como grupo, talvez a China tome para si a responsabilidade de tomar medidas para promover a desdolarização.

No entanto, como sublinhou Gao Bai em seu artigo, não é nada evidente que a China tenha os meios e esteja verdadeiramente interessada em substituir o dólar estadunidense pela sua própria moeda.

Para uma economia que ainda não está totalmente madura em termos financeiros , o “privilégio exorbitante” pode muito bem tornar-se um “fardo exorbitante”.

O professor Gao colocou questões relevantes. Estaria a China pronta e interessada em tornar o renminbi uma moeda totalmente conversível (um requisito para a moeda chinesa substituir o dólar estadunidense de forma significativa)?

Estaria a China preparada para aceitar a valorização resultante do aumento da procura internacional pela sua moeda?

Que efeitos teria a valorização da moeda chinesa na competitividade de suas exportações e na balança de pagamentos em conta corrente?

Será que um grande aumento no papel do renminbi não entraria em conflito com a estratégia chinesa bem-sucedida e de longa data de proteger cautelosamente a sua economia e o seu sistema financeiro da turbulência internacional?

E, por último, mas não menos importante, a China está preparada para provocar a ira dos EUA contra quem se esforce seriamente para substituir o dólar?

Devido a essas e outras incertezas, é bastante difícil esperar que a China lidere sozinha o processo de desdolarização.

Isso nos traz de volta ao BRICS. Supondo que o grupo seja capaz de superar os problemas de coordenação, as vulnerabilidades políticas e a escassez de pessoal especializado, o esforço poderá ser distribuído entre os diversos países membros. O considerável fardo político e técnico seria, então, partilhado.

Como presidente do BRICS em 2024, a Rússia já começou a trabalhar numa revisão do sistema internacional e em possíveis iniciativas do BRICS nessa área.

Pouco se sabe sobre até que ponto o BRICS irá conseguir avançar sob a liderança russa este ano.

Em qualquer caso, sendo até agora a principal vítima da transformação do dólar estadunidense e do sistema financeiro ocidental em armas, pode-se esperar que a Rússia faça tudo o que estiver ao seu alcance para avançar a agenda da desdolarização.

O Brasil, próximo presidente do grupo em 2025, continuará, espero, onde a Rússia parou.

 

Fonte: Por Paulo Nogueira Batista Jr., editorial da revista Wenhua Zongheng

 

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