O BRICS e o desafio da desdolarização
Os artigos reunidos
neste número da Wenhua Zongheng (文化纵横) lançam luz sobre temas de grande
interesse para a economia internacional.
Em particular, esse
número retoma a popular e amplamente discutida questão da desdolarização.
A desdolarização é
necessária?
Será possível na
prática e, em caso afirmativo, em que prazo?
Como os países
interessados na desdolarização podem ou devem agir?
O BRICS pode, em
conjunto ou individualmente, ajudar a avançar nesse sentido?
A China poderia
intervir para fornecer a sua moeda, o renminbi, como alternativa ao dólar
estadunidense?
Todas, ou a maioria
dessas questões, são discutidas nos artigos escritos pelos professores Gao Bai (高柏), Yu Yongding (余永定) e Ding Yifan (丁一凡).
No passado recente,
também tentei escrever três vezes sobre a desdolarização¹.
Nesta apresentação,
retomo alguns aspectos do debate em curso, tentando não me repetir demasiado,
ao mesmo tempo em que busco abordar questões levantadas nos três artigos dos
pesquisadores chineses.
Como é sabido, a
desdolarização tornou-se um tema quente desde 2022, quando os Estados Unidos e
os países europeus decidiram bloquear uma grande parte das reservas
internacionais da Rússia em resposta à invasão da Ucrânia, conforme descrito
por Yu Yongding.
Tradicionalmente,
autoridades e especialistas ocidentais têm ensinado aos países em
desenvolvimento sobre a necessidade de adotarem políticas de “criação de
confiança” e de respeitarem os direitos de propriedade.
Isso é realmente
incrível, olhando em retrospectiva.
O congelamento dos
ativos russos e as ameaças mais recentes de avançar para o confisco total são
medidas importantes de “destruição da confiança”, causando grandes danos ao
dólar estadunidense e ao euro.
Essas ações dispararam
um alarme para países como a China, um grande detentor de títulos em dólares
americanos como parte das suas reservas internacionais.
Qualquer país que
enfrente conflitos com os EUA e o resto do Ocidente percebeu imediatamente a
necessidade de medidas para reduzir a sua dependência do dólar e do sistema
financeiro ocidental.
Em muitas partes do
mundo, os esforços para utilizar moedas nacionais em transações internacionais,
para construir ou reforçar sistemas de pagamentos alternativos, para confiar
mais no renminbi chinês e até para criar uma nova moeda de referência do BRICS
foram intensificados.
Sem dúvidas o que
temos visto é um grande tiro no pé dado pelos EUA e pela Europa.
Em seus artigos, os
três autores apresentam contribuições significativas para a discussão de todos
esses desafios.
A popularidade do tema
da desdolarização em círculos mais amplos e nos meios de comunicação não é
necessariamente acompanhada por uma compreensão da sua complexidade.
Existe uma expectativa
generalizada de que o BRICS irá desenvolver, num futuro próximo, uma
alternativa ao dólar estadunidense.
Mas será que esta
expectativa é realista? A complexidade do tema é dupla – política e técnica.
Do lado político,
podem-se mencionar duas grandes dificuldades:
(i) a notória
resistência dos EUA em abrir mão do que os franceses, na década de 1960,
chamaram de “privilégio exorbitante” de ter a sua moeda nacional – emitida e
gerida de acordo com os interesses nacionais dos EUA – servindo como a
principal moeda global; e
(ii) a dificuldade de
realmente unir os países do BRICS nessa empreitada.
Permitam-me tentar
abordar essas duas grandes dificuldades, com base em parte na minha experiência
prática como diretor do Fundo Monetário Internacional (FMI), delegado
brasileiro no processo BRICS e posteriormente vice-presidente do Novo Banco de
Desenvolvimento (NBD).
Nunca se deve perder
de vista o fato de que os Estados Unidos irão, muito provavelmente, utilizar
todos os diversos instrumentos à sua disposição para lutar contra qualquer
tentativa de destronar o dólar do seu status de pilar do
sistema monetário internacional.
Sempre o fizeram, a
começar pelas negociações monetárias e financeiras que aconteceram no final e
imediatamente após a Segunda Guerra Mundial.
As ideias de Keynes
para uma moeda internacional foram veementemente rejeitadas pelas autoridades
estadunidenses.
Mais tarde, os EUA
utilizaram seu poder de veto no FMI para bloquear medidas que poderiam ter
tornado os Direitos Especiais de Saque (DES) da instituição uma moeda plena
de status internacional. Até hoje, os DES continuam sendo
secundários e quase sem relevância fora do FMI.
Os EUA encaram as
discussões incipientes sobre a desdolarização entre os países BRICS com
profunda desconfiança, e é provável que o país interfira a cada passo para
bloquear iniciativas e gerar divergências entre os membros do BRICS.
Pode-se perguntar, por
exemplo, se a Índia e a África do Sul estarão imunes às pressões vindas dos EUA
sobre este assunto.
O meu próprio país, o
Brasil, atualmente segue uma política externa independente sob a liderança do
Presidente Lula, mas um futuro governo com uma orientação diferente poderá ser
relutante em desagradar aos EUA numa questão tão crítica.
Isso nos leva
diretamente à segunda dificuldade política mencionada acima.
Será o BRICS
suficientemente coeso, como grupo, para enfrentar esse desafio complexo?
Com base na minha
experiência prática no processo BRICS, gostaria de alertar contra o otimismo
demasiado na resposta a essa questão.
Mesmo quando havia
apenas cinco países na mesa, as dificuldades para chegar a acordos sobre
medidas concretas – por exemplo na criação e implementação do fundo monetário
do BRICS (o Arranjo Contingente de Reservas, CRA) e do Novo Banco de
Desenvolvimento (o NDB) – eram verdadeiramente surpreendentes.
Primeiro, devido às
diferentes perspectivas e interesses nacionais entre os cinco países.
Em segundo lugar,
infelizmente, devido à falta de talento e competência técnica de muitos dos
funcionários que representam os cinco países nessas negociações e nos
mecanismos financeiros resultantes destas.
Compreendo
perfeitamente que esta é uma afirmação dura, mas se quisermos abordar
seriamente as questões desafiadoras da desdolarização e das alternativas à
moeda dos EUA, precisamos ser realistas e ter um mínimo de autocrítica.
A expansão do BRICS,
iniciada em 2024, irá agravar ainda mais os problemas de coordenação e as
vulnerabilidades políticas.
Com nove ou dez países
membros (a depender da aceitação e adesão da Arábia Saudita), é possível prever
que haverá um desafio ainda maior para avançar em qualquer questão prática.
Observadores externos,
pessoas que não são especialistas e mesmo acadêmicos conceituados desconhecem
frequentemente tais obstáculos.
Alguns somam o Produto
Interno Bruto (PIB) e as populações do BRICS ou do BRICS+ para concluir,
precipitadamente, que o grupo se tornou uma grande força no mundo.
Alguns países, creio
que a China e a Rússia estão entre eles, querem expandir ainda mais o grupo.
Na retórica da
imprensa, supostamente o BRICS expandido está destinado a tornar-se um fórum
para o Sul Global.
Isto pode parecer bom,
mas também poderia ser perguntado: será que um grande e rápido aumento no
número de membros do grupo não resultará, em última análise, em uma
transformação do BRICS+ em algo parecido com uma “ONU do Sul”, talvez tão
ineficaz como a própria ONU?
Contudo, não sejamos
demasiado negativos. A verdade é que o grupo BRICS inclui países importantes.
Os quatro membros
originais – Brasil, Rússia, Índia e China – estão entre os gigantes do mundo.
A China é hoje a maior
economia, em termos de PIB em paridade de poder de compra, tendo ultrapassado
os EUA por uma margem considerável.
Os países do BRICS
partilham uma insatisfação de longa data com a arquitetura monetária e
financeira internacional existente. Nessas décadas iniciais do século XXI, os
motivos de insatisfação só cresceram.
As instabilidades
financeiras, econômicas e políticas aumentaram dramaticamente, mas o Ocidente
não dá sinais de fazer as adaptações e concessões necessárias para acomodar o
BRICS e outras nações de mercados emergentes.
Além disso, a
disfuncionalidade do sistema monetário internacional baseado no dólar, que
remonta à década de 1960, se torna cada vez mais óbvia.
Assim, temos o dever
de buscar estar à altura desses desafios. Se não conseguirmos fazê-lo como
grupo, talvez a China tome para si a responsabilidade de tomar medidas para
promover a desdolarização.
No entanto, como
sublinhou Gao Bai em seu artigo, não é nada evidente que a China tenha os meios
e esteja verdadeiramente interessada em substituir o dólar estadunidense pela
sua própria moeda.
Para uma economia que
ainda não está totalmente madura em termos financeiros , o “privilégio
exorbitante” pode muito bem tornar-se um “fardo exorbitante”.
O professor Gao
colocou questões relevantes. Estaria a China pronta e interessada em tornar o
renminbi uma moeda totalmente conversível (um requisito para a moeda chinesa
substituir o dólar estadunidense de forma significativa)?
Estaria a China
preparada para aceitar a valorização resultante do aumento da procura
internacional pela sua moeda?
Que efeitos teria a
valorização da moeda chinesa na competitividade de suas exportações e na
balança de pagamentos em conta corrente?
Será que um grande
aumento no papel do renminbi não entraria em conflito com a estratégia chinesa
bem-sucedida e de longa data de proteger cautelosamente a sua economia e o seu
sistema financeiro da turbulência internacional?
E, por último, mas não
menos importante, a China está preparada para provocar a ira dos EUA contra
quem se esforce seriamente para substituir o dólar?
Devido a essas e
outras incertezas, é bastante difícil esperar que a China lidere sozinha o
processo de desdolarização.
Isso nos traz de volta
ao BRICS. Supondo que o grupo seja capaz de superar os problemas de
coordenação, as vulnerabilidades políticas e a escassez de pessoal
especializado, o esforço poderá ser distribuído entre os diversos países
membros. O considerável fardo político e técnico seria, então, partilhado.
Como presidente do
BRICS em 2024, a Rússia já começou a trabalhar numa revisão do sistema
internacional e em possíveis iniciativas do BRICS nessa área.
Pouco se sabe sobre
até que ponto o BRICS irá conseguir avançar sob a liderança russa este ano.
Em qualquer caso,
sendo até agora a principal vítima da transformação do dólar estadunidense e do
sistema financeiro ocidental em armas, pode-se esperar que a Rússia faça tudo o
que estiver ao seu alcance para avançar a agenda da desdolarização.
O Brasil, próximo
presidente do grupo em 2025, continuará, espero, onde a Rússia parou.
Fonte: Por Paulo Nogueira Batista Jr., editorial da revista Wenhua
Zongheng
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