'Tenha fé', 'Seja guerreiro' e outras
frases para não dizer a quem está com uma doença grave
Receber a notícia de
que um familiar ou um amigo querido foi diagnosticado com uma doença
grave nunca é fácil — e a relação que
desenvolvemos com essas pessoas num momento tão delicado pode afetar
diretamente o bem-estar delas, apontam
especialistas.
Isso vale para
pacientes com câncer, mas também para aqueles que estão com
outros quadros graves, que incluem doenças agudas (infarto, AVC…) ou crônicas
(esclerose múltipla, asma, problemas cardíacos…). Todas essas
condições representam alguma ameaça à continuidade da vida.
Muitas vezes, frases
ditas em visitas e conversas informais com a melhor das intenções trazem mais
prejuízos que benefícios, segundo profissionais da saúde ouvidos pela
reportagem.
É o caso, por exemplo,
de recomendações sobre religiosidade que
não consideram as crenças individuais, aquelas que indicam tratamentos
alternativos ou as comparações com outros
pacientes que apresentam quadros parecidos — confira mais exemplos ao longo da
reportagem.
A seguir, pacientes e
especialistas em cuidados
paliativos ou luto ouvidos pela BBC News Brasil explicam por que esses
comentários podem ser danosos — e como é possível dar apoio e acolhimento numa
situação dessas.
·
'Meu amigo teve essa
mesma doença' ou 'E eu, que sofri com…'
A médica Ana Claudia
Quintana Arantes, que se especializou em temas relacionados ao envelhecimento,
aos cuidados paliativos e à morte, tem o hábito de visitar os pacientes em
horários menos convencionais — ou, como ela mesmo define, "em horários
impróprios".
"Faço isso porque
gosto de entrar em contato com os profissionais de enfermagem de todos os
períodos, bem como com as visitas que estão no quarto", diz ela.
Arantes é autora dos
livros A Morte é um Dia que Vale a Pena Viver e Histórias
Lindas de Morrer, lançados pela Editora Sextante.
"Nesses momentos,
a gente se depara com as mais diversas situações. Há sempre aquele paciente que
está cansado, abatido, teve um dia difícil, com notícias ruins, e tem aquela
visita que chega tarde e não vai embora nunca."
"Quanto mais
grave a doença ou mais jovem o paciente, maiores são as chances de ele ouvir
coisas absolutamente desnecessárias e inadequadas", diz.
Arantes conta a
história de uma paciente com câncer grave e que recebeu uma visita nada
agradável.
"O horário de
visitas terminava às 22h e a amiga dela chegou às 21h40. Entrou no quarto sem
bater e logo disse: 'Ah, você não sabe, acabei de vir do pilates. Nossa, a aula
foi tão puxada… Pelo menos estou fortalecendo os meus músculos e tenho muito mais
disposição pra fazer minha pós-graduação'."
"A visitante nem
perguntou se a amiga estava bem e não sabia falar de outra coisa que não fosse
dela própria", diz a médica.
Ao saber do pedido de
entrevista da BBC News Brasil, Arantes perguntou a alguns pacientes que ela
acompanha quais são as frases que geram maior incômodo neles.
Além da falta de
sensibilidade citada no exemplo anterior, alguns indivíduos mencionaram que são
bombardeados com comparações descabidas.
"'Nossa, você
quebrou o fêmur? E eu, que já fraturei os dois de uma só vez?'; 'Ah, você tem
diabetes? E minha mãe, que tem diabetes, colesterol alto e hipertensão?';
'Caramba, você acabou de fazer cirurgia na vesícula? Tenho um conhecido que
precisou operar a vesícula, a amígdala, a tireoide e o apêndice'",
exemplifica a médica.
As comparações, diz
ela, "não chegam a invalidar a experiência do outro, mas mostram como quem
está falando essas coisas não olha para o amigo ou familiar doente."
"Não importa
quantos ossos você quebrou. O que importa naquele momento é a dor daquela
pessoa, não se alguém que você conhece passou por uma experiência pior ou
melhor", argumenta ela.
Arantes também
desencoraja o uso de exemplos e histórias similares, independentemente do final
que elas tiveram.
"Quando eu estava
grávida, tive pressão alta. Daí pessoas próximas vieram me contar de casos de
gestantes com o mesmo quadro que morreram, perderam o bebê, tiveram um
AVC…"
"Para que isso?
Você já está numa condição delicada e ouvir histórias assim não ajuda em
nada."
O médico Rodrigo
Castilho, presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos, também avalia
que trazer histórias semelhantes ou fazer comparações do tipo não trazem
quaisquer benefícios.
"A gente não pode
comparar. Cada ser humano é único e deve ser tratado como tal."
·
'Tenha fé' ou 'Pense
positivo'
Outro ponto sensível
nessas relações com indivíduos diagnosticados com doenças graves envolve a
religião — ou ainda o que alguns podem chamar de uma certa positividade tóxica.
Não raro, durante
visitas em hospitais ou mesmo em conversas pelo telefone, as pessoas fazem
comentários baseados apenas nas próprias crenças — sem se preocupar com a fé do
outro, apontam os especialistas.
Ao ser questionado
sobre o assunto, Castilho se lembra de uma história que testemunhou num
hospital.
"Um líder
espiritual muito bem intencionado chegou para um paciente, que estava frágil, e
perguntou se poderia fazer uma oração. Daí ele impôs as mãos e começou a dizer
em voz alta que Deus iria libertar, tirar todo mal e fazer o sujeito levantar
da cama. Terminada a reza, ele simplesmente foi embora."
"Logo depois, fui
conversar com esse paciente. Perguntei se estava bem e o que estava sentindo.
Ele me respondeu que só pedia a Deus para que fosse embora sem
sofrimento."
Para o médico,
exemplos como esse mostram uma falta de sintonia. Afinal, o líder religioso
queria trazer algo positivo, um valor que ele considerava importante para
aquele momento. No entanto, nesse exemplo, a pessoa que era alvo das rezas
ansiava por algo completamente diferente.
A médica Tânia Maria
Alves, coordenadora do Ambulatório de Luto do Instituto de Psiquiatria do
Hospital das Clínicas de São Paulo, entende que o costume de falar de religião
num contexto desses tem a ver com incertezas que abalam todos os lados dessas
relações.
"Estar diante da
morte é algo que traz muitas incertezas: quando ela vai ocorrer? O que acontece
depois? O que será de mim?", lista a psiquiatra. "São questões muito
angustiantes. E uma forma que temos de lidar com elas é a religião. Cada sistema
de crenças e doutrinas monta um corpo de respostas sobre o que são vida e
morte."
"Então esses
comentários são tentativas de responder às angústias existenciais, para as
quais não temos respostas definitivas", complementa.
Arantes classifica a
imposição de crenças e doutrinas a um paciente com uma doença grave como um
"sequestro espiritual".
"Isso é uma
violência sem precedentes. Dizer coisas como 'tenha fé', 'pense positivo' ou
'aceite determinada figura religiosa no seu coração' traz uma percepção de que
aquela pessoa é insuficiente e atravessa uma situação difícil por culpa própria
ou falta de uma conexão com o espiritual", afirma.
A médica sugere que,
caso você queira transmitir algo de sua espiritualidade para alguém querido que
está numa situação de ameaça à vida, procure fazer por contra própria, no
particular, sem necessariamente falar disso para o resto do mundo.
"E, claro, você
pode perguntar para o paciente se a religião é algo importante para ele. Daí,
se houver abertura, é possível questionar se há alguma oração ou ritual que a
pessoa se identifique e que gostaria de dizer ou fazer em companhia."
"Essa é uma
maneira respeitosa de se aproximar da dimensão da espiritualidade do
outro", emenda ela.
·
'Você é um guerreiro'
ou 'Vai vencer essa luta/batalha'
O uso de termos
bélicos e militares é algo muito frequente na hora de falarmos sobre doenças
graves.
É o caso, por exemplo,
da "luta contra o câncer", "do paciente que venceu a batalha
contra as sequelas do AVC" ou "dos guerreiros que lidam diariamente
com a esclerose múltipla".
As fontes ouvidas pela
BBC News Brasil avaliam que essas frases não fazem sentido no contexto da saúde
— e na maioria das vezes, segundo eles, não estão alinhadas com as expectativas
dos pacientes.
"Esses termos
podem não estar em sintonia com o momento de vida ou os valores daquela pessoa
e vão ser prejudiciais", diz Castilho.
Seguindo essa lógica,
um indivíduo que se curou do câncer — e, portanto, "venceu a guerra"
— é celebrado como um vitorioso.
Mas como fica a
situação de quem morreu em decorrência dessa enfermidade? Não parece justo
considerar essa pessoa como uma "perdedora" ou
"derrotada"...
Quando algum paciente
ouve frases do tipo, Arantes tem a resposta na ponta da língua.
"Costumo sugerir
que eles digam: 'Olha, preciso de paz para atravessar essa fase. Eu não luto,
não sou treinado para isso. Estou apenas vivendo. A guerra não é uma coisa boa
para ninguém. Nem para mim, nem para o câncer. O que preciso agora é buscar uma
maneira de conviver com o tumor, para que ele fique quietinho, sem me
incomodar'", diz.
·
'Por que você não
tenta esse outro tratamento?'
A comunicadora Giulia
Gamba tem esclerose múltipla — uma condição que afeta a comunicação entre o
cérebro e o corpo — e é diretora executiva da Crônicos do Dia a Dia — uma
associação que reúne indivíduos com doenças crônicas.
Ela conta que
pacientes são bombardeados com indicações de tratamentos vindos das mais
variadas fontes.
"O que tentamos
fazer nessas situações é adotar uma abordagem que não afasta quem faz a
sugestão, mas, ao mesmo tempo, mostra a importância de seguir uma medicina
baseada em evidências", pondera ela.
"Temos diversos
grupos de WhatsApp com pacientes e fazemos uma moderação acirrada, pois as
pessoas sempre compartilham dicas e terapias que não são necessariamente as
mais indicadas."
Arantes observa que as
sugestões de tratamento alternativos englobam coisas antigas — e supostamente
"naturais" — até as tecnologias avançadas — que não necessariamente
estão indicadas.
"Os pacientes
recebem dicas que vão desde garrafadas, pílulas e óleos feitos de plantas até
aparelhos de ressonância bioenergética que só estão disponíveis na
Áustria", exemplifica.
Arantes diz:
"Sempre lembro aos meus pacientes que tudo com potencial de cura também
possui um potencial de toxicidade. Além disso, esses outros tratamentos podem
interagir com as medicações convencionais e afetar o funcionamento de
órgãos."
"Outra coisa
importante: os médicos conhecem os tratamentos que prescrevem e sabem como
lidar com os possíveis efeitos colaterais decorrentes da prescrição que
fazem", diz. "Já a sua vizinha ou sua tia geralmente não têm ideia do
que fazer caso o tratamento que elas indicaram gere alguma complicação."
·
'Nossa, mas nem parece
que você está doente…'
Gamba ainda lembra que
nem toda doença tem sinais aparentes. Ao contar que tem esclerose múltipla, ela
já ouviu: "Nossa, mas você parece tão normal…"
"Muitas pessoas
entendem que alguém com esclerose múltipla, diabetes, dermatite atópica ou
câncer deve se colocar num determinado lugar ou se encaixar em certas
características", observa ela. "É como se a nossa condição viesse à
frente de qualquer outra característica."
A diretora-executiva
da CDD destaca que, no caso da esclerose múltipla, cerca de 80% dos pacientes
convivem com a fadiga — um incômodo que na maioria das vezes não é tão aparente
para quem está do lado de fora.
"E muita gente
relativiza esses sintomas, como se eles não fossem reais", diz Gamba.
·
'Não fale de morte,
isso atrai coisa ruim'
É inevitável que
pessoas com doenças graves reflitam sobre o fim da vida — algo que pode
incomodar quem está em outra situação.
"Quando o
paciente chega nos momentos finais, é importante que ele comunique se gostaria
de ter acesso a recursos para prolongar a vida ou não, onde deseja morrer, o
que quer falar para as pessoas mais próximas…", destaca Alves.
Castilho diz que
"nossa sociedade ainda associa a morte com uma derrota, um fracasso".
"Todos nós
sabemos que, em determinado momento da vida, vai aparecer uma doença
irreversível e progressiva. Esse é um processo natural, que acontece com 85% da
população", calcula o médico. Os outros 15% morrem de forma súbita.
Para o médico, é
importante que, com a aproximação dessa fatídica despedida, os desejos da
pessoa que vai partir estejam alinhadas com as expectativas de todos que a
cercam.
"Se a morte fosse
um fracasso, todos os nossos antepassados teriam falhado", diz.
"Ainda vemos a morte como algo pornográfico, que precisa ser escondido.
Não levamos crianças aos velórios. Ao falar de morte, algumas pessoas batem na
madeira para espantar o azar. Precisamos mudar isso em nossa sociedade."
·
O que fazer (ou dizer)
nessas situações?
Se existem certas
frases que devem ser evitadas num contexto desses, os especialistas também
apontam algumas outras coisas que podem significar um alento importante.
Os entrevistados pela
BBC News Brasil foram unânimes em afirmar a necessidade de fazer uma escuta
ativa.
"A pessoa precisa
ouvir de fato para entender quais as reais necessidades que o amigo ou o
familiar tem", diz Gamba. "Muitas vezes, há uma busca por adivinhar o
que o paciente precisa. Mas seria muito mais fácil perguntar diretamente para ele."
Castilho concorda:
"Nesses momentos, não basta ter simpatia. É preciso desenvolver a empatia,
se colocar no lugar do outro e estar disponível para ouvir".
Arantes destaca que
esse apoio pode ser prático, ao auxiliar nas tarefas que ficaram para trás com
uma internação, um procedimento ou uma rotina repleta de exames.
"Não adianta
dizer coisas como 'conta comigo' ou 'se precisar, é só me ligar'. Você pode
propor uma ajuda real, segundo as necessidades da pessoa", sugere.
"É o caso de
fazer uma compra no supermercado, resolver coisas na farmácia, passar na
padaria, dar caronas, jogar água nas plantas, preparar uma refeição para a
família, levar o cachorro para passear…", complementa a médica.
Segundo a
especialista, ser propositivo é a melhor maneira de demonstrar suporte a quem
está com uma doença grave.
"Se você não
consegue encontrar um tempo para ajudar uma pessoa que ama e que está em
apuros, há algo muito errado com sua agenda, com sua vida ou com sua capacidade
de definir prioridades", conclui.
Fonte: BBC News Brasil
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