Quem compete com o Brasil pela liderança do
'Sul Global'?
Uma oportunidade para
brilhar. É assim que diversos meios de comunicação e analistas internacionais
enxergam o período atual da política externa brasileira.
Nesse contexto, qual a
força do Brasil nessa batalha pela liderança do 'Sul Global'? E quem são os
outros concorrentes ao posto de 'capitão' desse grupo tão heterogêneo e etéreo?
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O que é o 'Sul
Global'?
Apesar do nome, o 'Sul
Global' nada tem a ver com uma divisão geográfica, mas sim com as estruturas
socioeconômicas, aponta Sara Stevano, professora da Universidade de Londres e
economista especializada em desenvolvimento. "Eu consideraria como parte
do 'Sul Global' um país que tem uma estrutura econômica típica de contextos
pós-coloniais, o que significa que a economia é normalmente baseada na
exportação de commodities primárias ou mesmo bens manufaturados considerados de
menor valor agregado", diz. O conceito também inclui as nações
consideradas parte da "periferia da economia global" ou que mantêm
uma certa dependência em relação aos países do 'Norte Global', em especial,
Estados Unidos e Europa. "O espaço que os tomadores de decisões políticas
têm nos países do 'Sul Global' tende a ser mais estreito do que nos países do
'Norte Global'", afirma Stevano.
O termo é muito usado
no contexto da mobilização de alguns países em torno de preocupações e
interesses comuns, especialmente diante da relação com as grandes potências em
questões como comércio ou mudanças climáticas. Na prática, atualmente tais
interesses se manifestam principalmente por meio do Grupo dos 77 (G77) nas
Nações Unidas. Formado por 134 países, o grupo afirma fornecer os meios
"para os países do Sul articularem e promoverem os seus interesses
econômicos coletivos e reforçarem a sua capacidade de negociação conjunta em
todas as principais questões econômicas internacionais dentro do sistema das
Nações Unidas e promover a cooperação Sul-Sul para o desenvolvimento". China
e Brasil, por exemplo, estão entre os que defendem uma reforma da ONU para
aumentar a representatividade e o direito à voz das nações do 'Sul Global'.
Sara Stevano ressalta,
porém, que há diferenças muito grandes entre os países que pertencem ao grupo
que não devem ser ignoradas. Brasil e Moçambique, por exemplo, são ambos
considerados parte do 'Sul Global' e possuem economias baseadas na exportação
de commodities. Mas enquanto o Brasil é um ator de influência no grupo, cujo
PIB (produto interno bruto) chegou a US$ 2,17 trilhões em 2023, o país africano
terminou o ano com US$ 20,8 bilhões, segundo o Fundo Monetário Internacional
(FMI). "Há países que estão na periferia da periferia", diz Stevano. Da
mesma forma, os interesses e as bases das relações cultivadas por cada uma das
nações com seus parceiros do Sul — e as potências do Norte — diferem
profundamente. Essa heterogeneidade está no cerne dos argumentos dos críticos
ao termo, que temem que seu uso possa reforçar dicotomias e estereótipos
imprecisos e ultrapassados.
Antes do termo 'Sul
Global', a expressão '3º Mundo' era usada com frequência. O conceito surgiu
durante a Guerra Fria e englobava as nações que não pertenciam nem ao chamado
'1º Mundo' (nações ocidentais e desenvolvidas) nem ao '2º Mundo' (composto
pelas nações socialistas e comunistas). Outros conceitos, como 'país
desenvolvido' ou 'em desenvolvimento', também ganharam mais espaço nas
discussões internacionais. No entanto, segundo Sara Stevano, são expressões
associadas a uma ideia de desenvolvimento linear que raramente é verdadeira. "Essa
linguagem tem um ponto cego muito significativo, que é o fato de existirem
relações de poder em jogo na economia global", diz. "De certa forma,
a terminologia 'Sul Global' deixa isso mais claro."
Quais são, então, os
países que se destacam no 'Sul Global' — e por quê?
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China: força econômica
e política
A China, segunda maior
economia do mundo, é um caso bastante único — e por isso está no foco de muitos
dos críticos da expressão 'Sul Global'. O país passou por acelerado crescimento
econômico a partir da década de 80. Entre 1994 a 2022, teve uma alta média
anual de 8,7% no PIB, com um pico em 2007 (+14,2%). Há quem aponte que não só a
posição econômica da China diante da economia global, mas também os níveis de
influência geopolítica exercidos pelo país atualmente, são incompatíveis com os
conceitos do 'Sul Global'.
Mas para Nikita Sud,
professora da Universidade de Oxford (Reino Unido) e especialista no tema, as
experiências passadas com o imperialismo justificam a inclusão no grupo. O
grande período de influência europeia na China começou com as chamadas Guerras
do Ópio entre 1839 e 1860, travadas contra o Império Britânico e motivadas
principalmente pelo comércio do ópio. "As ideias pregadas (pelo
colonialismo) de dominação racial e civilização continuam até hoje. E é por
isso que a China se vê como parte do 'Sul Global' apesar de competir
economicamente com os EUA atualmente", diz Sud. "Mas a política
local, a origem do país e a hierarquia baseadas no racismo alinham a China mais
com o Sul do que com o Norte." O próprio governo chinês só passou a falar
com mais frequência sobre o assunto e a se definir como parte do grupo
recentemente (antes usava o termo "família de países em
desenvolvimento").
Em setembro de 2023,
durante o discurso anual na Assembleia Geral das Nações Unidas, o
vice-presidente chinês, Han Zheng, disse que a China é um membro natural do Sul
Global pois "respira o mesmo ar que outros países em desenvolvimento e
partilha com eles o mesmo futuro". Há quem veja nesse posicionamento mais
uma estratégia para se opor à "hegemonia do Oeste" e disseminar uma
imagem de grandeza. "Para concretizar o sonho do presidente Xi de
rejuvenescer a grande nação chinesa, a China precisa assumir um papel de
liderança no mundo e o Sul Global serve de veículo para isso (...)",
afirmou Robin Schindowski, analista do think tank Bruegel, em um artigo de
2023. No entanto, segundo o especialista em China, "preocupações
internas" do governo Xi também levaram o governante a impulsionar essa
agenda. "Embora os fatores estratégicos não devam ser negligenciados, as
preocupações internas mais humildes desempenham um papel igualmente importante
na procura da China por mais oportunidades nas economias emergentes, especificamente
os problemas de longa data do país com o excesso de capacidade
industrial." Mas são justamente a força econômica e política da China que
colocam o país como uma das lideranças do 'Sul Global'.
Em uma reportagem
publicada em abril, a revista inglesa The Economist utilizou um índice
produzido pelo Centro Pardee para Futuros Internacionais (PCIF, na sigla em
inglês), da Universidade de Denver, nos Estados Unidos, para comparar o nível
de influência de alguns países entre os membros do G77. Os Estados Unidos têm
se destacado como o país com maior influência nas nações do grupo desde a
década de 1970, mas a China aparece cada vez mais como um rival de peso, de
acordo com o levantamento. Segundo o Índice Formal de Capacidade de Influência
Bilateral (FBIC) do PCIF, a influência chinesa começou a crescer a partir dos
anos 2000 e deve ultrapassar a americana nas próximas décadas.
Ainda de acordo com o
índice, a "capacidade de influência" da China sobre o G77 é
aproximadamente o dobro da exercida pela França, o terceiro país mais influente
entre o grupo, e cerca de três vezes a do Reino Unido, da Índia ou dos Emirados
Árabes Unidos. O índice é calculado com base em dados que abrangem as dimensões
econômica, política e de segurança da influência bilateral formal. Isso inclui
interações como intercâmbio diplomático, transferências de armas e comércio de
mercadorias, mas não ações menos transparentes, como o financiamento de atores
não estatais ou tentativas de interferir em eleições. Os dados do FBIC apontam
maior influência chinesa em 31 países do G77, com destaque para Paquistão,
Bangladesh, Rússia e outros Estados do Sudeste Asiático.
Outro foco da
influência chinesa é a África.
A China apoiou vários
movimentos de independência africanos durante a Guerra Fria e, atualmente, a
presença da potência asiática no continente se manifesta principalmente por
meio de investimentos externos diretos, ajuda financeira, projetos de infraestrutura
e empréstimos. Em 2013, a Iniciativa Cinturão e Rota (BRI) da China foi lançada
por Xi Jinping, apresentando a ambição de revigorar a antiga rota comercial da
seda ao longo de parte da costa da África Oriental. Teoricamente, isso deveria
ter concentrado o investimento chinês na África Oriental, mas muitos outros
Estados africanos também procuraram oportunidades através da BRI, fazendo com
que a iniciativa se expandisse rapidamente. Desde então, a BRI assistiu à
construção de inúmeros projetos de infraestruturas em toda a Ásia e África,
financiados por empréstimos chineses.
O projeto também
chegou a países latino americanos: atualmente, 22 nações da América Latina e
Caribe fazem parte da BRI. O comércio entre a China e os países
latino-americanos, aliás, bateu um recorde histórico em 2023. A troca de
mercadorias entre a região e o gigante asiático ultrapassou US$ 480 bilhões,
segundo cálculos da BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, com
base em dados da Administração Aduaneira da República Popular da China (AGA, na
sigla em inglês). A balança comercial foi relativamente equilibrada, com um
ligeiro superávit favorável à América Latina, de US$ 2 bilhões. O novo recorde
no comércio de mercadorias com a China constitui mais um passo em uma tendência
ascendente que tem sido registrada ao longo deste século.
O intercâmbio
bilateral do país asiático com a América Latina e o Caribe (ALC) mal girava em
torno de US$ 14 bilhões no ano 2000, segundo a Comissão Econômica para a
América Latina e o Caribe (Cepal). A China também assinou nos últimos anos
tratados de livre comércio com Chile, Costa Rica, Equador, Nicarágua e Peru, e
já negocia com outras nações da região.
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Índia e a 'ponte entre
o Sul e o Ocidente'
No bloco informal, a
Índia é a grande concorrente da China e aparece no Índice Formal de Capacidade
de Influência Bilateral (FBIC) como o país mais influente para seis nações do
G77 — entre elas, vizinhos como Sri Lanka e Butão. Mas assim como Pequim, Nova
Déli também tem buscado expandir sua influência para além de seus arredores,
com foco especial na África. O número de embaixadas indianas no continente
passou de 25 para 43 entre 2012 e 2022, segundo a The Economist.
O primeiro-ministro
indiano, Narendra Modi, afirma ainda que o país é o quarto maior parceiro
comercial africano e a quinta maior fonte de investimento direto estrangeiro na
região. O país também se destaca na área da tecnologia, com importação de
sistemas e plataformas digitais, incluindo tecnologias de identidade
biométrica. Segundo um relatório do Centro de Investigação Econômica e
Empresarial (CEBR, na sigla em inglês), uma empresa de consultoria com sede em
Londres, a Índia deverá manter um forte crescimento de cerca de 6,5% ao ano
entre 2024 e 2028, e tornar-se a terceira maior economia do mundo até 2032,
ultrapassando o Japão e a Alemanha. Apesar da ascensão meteórica de sua
economia, a Índia continua a se classificar como parte do 'Sul Global' e
impulsiona sua posição de liderança no bloco informal. O país organizou e
presidiu em 2023 dois encontros da cúpula Voz do Sul Global, criada por Modi
para realizar encontros online sobre desenvolvimento financeiro, crise
climática e outros temas de interesse.
A abordagem indiana,
porém, é distinta da chinesa.
Enquanto Pequim se
projeta como uma alternativa clara aos Estados Unidos, Nova Déli busca angariar
influência se posicionando como um intermediário ou uma ponte entre seus
aliados do Sul e o Ocidente. O governo Modi mantém uma relação especialmente
próxima com os EUA, mas, ao mesmo tempo, adota posições bastante pragmáticas em
política externa, se recusando, por exemplo, a condenar a Rússia pela invasão à Ucrânia. "Só porque o país se identifica com o 'Sul Global' e é
conveniente formar um bloco de aliados para negociar, por exemplo, questões
climáticas, não significa que na hora de fazer comércio, atrair investimentos
ou contrair empréstimos, ele não possa procurar um país do Norte", diz
Nikita Sud.
Quando se trata da
defesa por reformas no sistema internacional, a posição indiana também reflete
sua postura pragmática.
Na última reunião
anual do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), realizada em
outubro passado, China e Índia tomaram posições opostas na discussão sobre a
reforma das instituições financeiras multilaterais e as cotas de voto dos
países-membros no FMI. Enquanto o governo indiano apoiou a proposta dos EUA
para um aumento "equiproporcional" das cotas de contribuição
financeira sem alteração no poder de voto dos países-membros, a China defendeu
um aumento de ambas as cotas como forma de refletir a crescente participação
dos países em desenvolvimento na economia global. Em tese, as cotas dos países
no FMI estão relacionadas à participação de cada um deles na economia mundial.
Essas cotas determinam, entre outros fatores, o poder de voto dos países dentro
do organismo internacional e a possibilidade de acesso a financiamentos de
emergência. Atualmente, China e Índia possuem, respectivamente, 6,4% e 2,75%. O
Brasil detém 2,32% das cotas. Os Estados Unidos têm 17,43% das cotas, enquanto
Alemanha e Reino Unido detêm 5,59% e 4,23%, respectivamente.
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Brasil e as agendas
prioritárias de Lula
Para muitos analistas,
o Brasil também é um candidato forte ao posto de "líder" do 'Sul
Global'. A ideia foi bastante debatida durante os dois primeiros governos do
presidente Lula, que sempre teve essa como uma de suas agendas prioritárias em
termos de política externa.
Com a volta do petista
para um terceiro mandato, o país voltou a ser apontado pela imprensa
internacional como uma voz nesse debate. "Lula está se autodenominando o
novo líder do Sul Global – e desviando a atenção do Ocidente", diz uma
matéria de abril do jornal britânico The Guardian. A reportagem afirma que 2024
será um teste para a ambição do presidente, já que o Brasil está na presidência
rotativa do G20 e sediará a reunião de cúpula do grupo em novembro (além da
COP30 em 2025). Um dos pontos principais da política de Lula para o 'Sul
Global' é a reforma do Conselho de Segurança da ONU, com a criação de assentos
permanentes para nações em desenvolvimento, além de equilíbrio do poder de
veto.
Em uma entrevista no
início do mês, Lula advogou por uma ampla reforma nos organismos financeiros
multilaterais, como o FMI. E que os países que têm grandes dívidas externas
possam pagar apenas parte delas, usando o restante em investimentos em suas
infraestruturas nacionais. "Uma coisa que queremos defender (no G20) é a
mudança no sistema financeiro, criado após a Segunda Guerra. Aquelas
instituições não funcionam mais. Elas sufocam os países", afirmou o
presidente. O petista também defende que os países mais ricos e desenvolvidos
colaborem mais e financeiramente com os países pobres na luta contra o
aquecimento global e desmatamento. Essa ideia é apoiada por outras nações do
'Sul Global', mas tem encontrado obstáculos nas últimas negociações. Os países
industrializados têm se mostrado relutantes em se comprometer financeiramente,
preocupados especialmente com a possibilidade de serem responsabilizados
legalmente pelos impactos da mudança climática no processo.
Em um artigo publicado
no final de 2023, os pesquisadores Christopher S. Chivvis e Beatrix Geaghan‑Breiner,
do think tank Fundo Carnegie para a Paz Internacional, afirmaram que apesar da
tradição brasileira de independência e não-alinhamento em termos de política
externa, a autonomia do país se fortalece à medida que o impasse entre EUA e a
China se amplia e o peso político e econômico da nação cresce. "O Brasil
quer evitar uma ordem mundial estruturada apenas pela competição entre grandes
potências e, em vez disso, espera uma ordem multipolar onde os Estados do seu
tamanho tenham mais voz nas instituições internacionais e maior influência em
geral. Na opinião do Brasil, o surgimento de novas potências, especialmente a
China, promete uma era de 'multipolaridade benigna', na qual o poder do
Ocidente será reduzido e a influência das nações em ascensão será
reforçada", argumentaram os pesquisadores.
Mas para Laura Trajber
Waisbich, diretora do programa de Estudos Brasileiros da Universidade de
Oxford, falta ao Brasil protagonismo e capacidade de liderança em algumas
áreas. "O Brasil tem capacidade de liderar em algumas agendas, mas em
outras não", diz a especialista. "E em quais áreas apostar deve ser
uma decisão estratégica e pragmática". Para Waisbich, o país se destaca
quando o assunto é a agenda ambiental e a reforma das organizações ambientais,
dois temas que fazem parte do programa de política externa brasileiro há anos.
Por outro lado, quando assuntos de segurança com menor proximidade ao Brasil
estão em discussão, o país pode escorregar ao tentar se colocar como
protagonista. "Existe capacidade de liderança, de articulação e de ser uma
fonte de inspiração para discussões sobre problemas globais, mas [o Brasil] não
deveria ter a pretensão de ser um modelo ou líder para tudo", diz.
Leonardo Ramos,
professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas),
explica que o desafio de Lula em avançar com a agenda relativa ao Sul é maior
hoje do que no passado. "O mundo mudou e muitas questões delicadas
surgiram desde a última presidência do Lula, como as tensões entre Estados
Unidos e China, a guerra na Ucrânia, o conflito em Gaza e a ascensão da nova
direita", diz.
Segundo o especialista,
em alguns momentos a política externa obriga os países a se alinharem ou
condenarem um dos lados envolvidos nos confrontos, causando constrangimentos e
prejudicando a ideia de não alinhamento defendida por muitas das nações do Sul.
"E as próprias tensões domésticas e a polarização extrema têm ocupado mais
a atenção hoje do que no passado. Com tudo isso, ele tinha mais margem de
manobra e respaldo interno." Para Nikita Sud, nos últimos meses, dois
países chamaram a atenção por seu posicionamento mais assertivo do que o normal
frente à guerra em Gaza: Brasil e África do Sul.
Enquanto o governo
sul-africano apresentou uma acusação de genocídio contra Israel na Corte
Internacional de Justiça (CIJ), a diplomacia brasileira tem sido bastante
crítica à atuação de Israel no enclave palestino e chegou a votar a favor de
uma resolução da ONU que conclama o fim da venda e transferência de armamentos
aos israelenses. Segundo a professora da Universidade de Oxford, por terem se
posicionado de forma distinta daquela incentivada pelos Estados Unidos, as
nações se projetaram como "vozes" mais relevantes na disputa pela
liderança de uma nova ordem global, apesar de terem sido alvo de muitas
críticas.
Mas para o diplomata
Paulo Roberto de Almeida, ex-ministro-conselheiro na Embaixada do Brasil em
Washington e ex-assessor especial do núcleo de Assuntos Estratégicos da
Presidência da República, os posicionamentos pouco neutros do Brasil têm
justamente o efeito contrário e prejudicam sua busca por liderança. Segundo
Almeida, o governo do presidente Lula tem investido em uma política externa
excessivamente "partidária e personalista" que causa fricções com as
grandes potências do Ocidente. O diplomata cita, em especial, a posição em
relação à invasão da Ucrânia pela Rússia. Apesar de defender uma mediação pela
paz, o presidente brasileiro fez declarações que foram entendidas como uma
forma de apoio brando à Rússia.
Em janeiro de 2023,
durante visita do chanceler alemão Olaf Scholz ao Brasil, Lula chegou a dizer
que a Rússia estava errada em invadir a Ucrânia, mas também sinalizou para
culpa do próprio país invadido. “Continuo achando que quando um não quer, dois
não brigam”, afirmou. Em maio do ano passado, ao participar do G-7, no entanto,
Lula disse que condenava a violação da integridade territorial da Ucrânia. "A
insistência do Brasil em considerar todas as partes legítimas e a falta de
neutralidade recente têm minado a posição do Brasil como líder", diz
Almeida.
Ainda segundo Paulo
Roberto de Almeida, a busca por uma maior cooperação com outros países em
desenvolvimento não deve vir em detrimento da relação com Estados Unidos e
Europa - algo que tem acontecido, segundo ele. "Essa aproximação de Lula
com os países proponentes de uma nova ordem global tem causado alguns problemas
com os tradicionais parceiros do Brasil no Ocidente, Estados Unidos e Europa
Ocidental basicamente."
Laura Trajber
Waisbich, de Oxford, discorda. "Não precisa ser um ou outro", diz.
"Às vezes pode haver uma decepção ou um desacordo mútuo, mas na minha
percepção é um desacordo que afeta apenas partes da relação bilateral, não o
todo." Segundo a especialista, países como Reino Unido, EUA, Japão e
Noruega, por exemplo, têm demonstrado confiança em relação à liderança do
Brasil na área ambiental, apesar de tomarem posições distintas em relação a
temas como a guerra na Ucrânia. Para além da política externa, o cenário
econômico mundial mudou profundamente desde os primeiros governos de Lula.
Entre 2002 e 2010, o
PIB brasileiro teve um crescimento médio de 4,1%, ancorado, sobretudo, no
crescimento das exportações de matérias-primas e commodities do Brasil para
nações em vertiginoso crescimento, como a China. Já em 2023, Lula assumiu em um
momento de crescimento menor, inflação persistente e contas públicas afetadas
pela pandemia de covid-19. Ao mesmo tempo, há sinais de que o legado construído
pelo atual presidente e pelo Brasil de forma geral ainda garante uma boa
posição, segundo analistas. "O Lula foi o único chefe de Estado de país
emergente que participou das reuniões de cúpula do G77, do G20 e do Brics ano
passado, certamente já pensando em reforçar essa posição de liderança",
diz Leonardo Ramos, professor da PUC-Minas.
Os dados do índice
elaborado pelos pesquisadores da Universidade de Denver mostram que o Brasil é
o campeão de influência em três países do G77: Bolívia, Paraguai e Uruguai. O
cálculo considera o ano de 2022 como referência. O Brasil foi o país com maior
influência sobre a Argentina até 1997, segundo o FBIC, mas ficou atrás dos
Estados Unidos nos últimos anos.
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África do Sul: 'líder
moral'
Correndo nas margens
da disputa, está mais um dos membros "mais antigos" dos Brics, a
África do Sul. O país se juntou em 2011 ao grupo que começou com Brasil,
Rússia, Índia e China em 2008, mas é atualmente considerado um dos integrantes
mais antigos, já que Argentina, Egito, Etiópia, Irã, Emirados Árabes Unidos e Arábia
Saudita foram convidados a aderir ao bloco. A
aliança, aliás, tem papel central no avanço da ideia do 'Sul Global'
atualmente.
A própria expansão do
grupo após a 15ª Cúpula do Brics, em 2023, foi considerada um enorme passo para
que o 'Sul Global' tome o centro do palco da política global.
O presidente da África
do Sul e anfitrião daquela reunião de cúpula, Cyril Ramaphosa, disse à imprensa
que uma ampliação ainda maior é esperada para os próximos anos. Segundo ele, os
Brics "embarcaram em um novo capítulo no seu esforço para construir um
mundo que seja mais justo, honesto, inclusivo e próspero". Sob a liderança
de Ramaphosa, a segunda maior economia da África (atrás apenas da Nigéria,
segundo dados de abril de 2024 do FMI) tem expandido sua força de liderança.
Para Anthoni van
Nieuwkerk, professor da Universidade da África do Sul, o presidente "está
restaurando a posição e o papel do país como líder moral global". "As
mensagens e o tom usado por Ramaphosa sugerem um líder assertivo do Sul que
compreende como o mundo funciona. Ele não tem medo de desafiar a narrativa
dominante e está preparado para colocar sobre a mesa as exigências do Sul
Global", afirmou, em um artigo publicado no portal The Conversation em
dezembro de 2023. Essa ideia foi reforçada especialmente pela apresentação da
denúncia à Corte Internacional de Justiça em Haia contra Israel e pelo
posicionamento da diplomacia sul-africana frente ao conflito na Ucrânia.
Segundo Van Nieuwkerk,
quando se trata da guerra travada no Leste Europeu, a África do Sul é
especialmente motivada a advogar pela paz diante das consequências econômicas
do confronto na África, que já sofre com a insegurança alimentar e energética. Ramaphosa
liderou uma missão de paz africana para o confronto, que apesar de ter
fracassado em seus esforços de negociação, foi interpretada como um sinal da
busca por liderança regional e global do presidente sul-africano, diz. Ao lado
do Brasil, a África do Sul também é uma voz importante nas negociações da
Organização Mundial do Comércio (OMC) sobre agricultura e um intermediário
entre países desenvolvidos e em desenvolvimento.
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Rússia: o debate sobre
o 'R' dos Brics
Em agosto de 2023,
durante o Fórum Empresarial do Brics em Joanesburgo, na África do Sul, o
presidente Lula destacou a importância do bloco para o avanço dos países em
desenvolvimento, classificando o grupo como a "força motriz" do 'Sul
Global'. Mas há grande discussão em torno do papel do 'R' dos Brics entre os
países em desenvolvimento. Apesar de sua clara oposição às potências do
Ocidente, há quem questione a inclusão da Rússia entre os países do 'Sul
Global'. "Assim como a China, a Rússia se encaixava nas leituras de
potência média ou potência emergente quando esses conceitos se popularizaram.
Mas vai ficando cada vez mais claro que são potências 'reemergentes' — foram
grandes no passado, tiveram problemas e depois voltaram a crescer", diz
Leonardo Ramos, da PUC-Minas.
O especialista
ressalta, porém, que enquanto a China se alinhou mais ao 'Sul Global' por
muitos anos — por sua política de não interferência —, a tensão da Rússia com o
chamado "mundo Ocidental" sempre foi mais inflamada. Ao mesmo tempo,
o governo russo parece interessado em promover a ideia de uma aliança contra o
'Norte Global' e usar alianças com o Sul a seu favor. "A Rússia vem se
engajando de maneira explícita com alguns países do Sul Global nas últimas
décadas, de forma a tentar desempenhar algum papel importante para que esses
países votem com a Rússia em fóruns internacionais", diz Ramos.
Em fevereiro, Moscou
organizou o primeiro "Fórum pela Liberdade das Nações", com 400
delegados de 60 nações, para reunir os países do 'Sul Global' contra o que
chamou de "neocolonialismo Ocidental". No ano anterior, sediou uma
reunião de cúpula entre Rússia e África, durante a qual o presidente Vladimir
Putin anunciou o cancelamento de mais de US$ 20 bilhões em dívidas históricas
de nações africanas, segundo a agência de notícias estatal Tass. O governo
russo também fez lobby pela expansão dos Brics e enviou o ministro das Relações
Exteriores, Sergey Lavrov, em várias viagens pelo 'Sul Global'. Mas quando o
tema é o confronto com a Ucrânia, o alinhamento absoluto não é a realidade.
China, Índia e Brasil
adotaram uma posição mais neutra. Mas outros integrantes do 'Sul Global' têm
demonstrado inclinação maior a apoiar o lado ucraniano, especialmente em
votações nas Nações Unidas. Ainda assim, segundo o professor da PUC-Minas, os
países do sul não deixam de ter um papel importante na política externa russa
por representarem uma alternativa para importações e exportações em um momento
de tensão e sanções internacionais. Os dados compilados pelo Índice Formal de
Capacidade de Influência Bilateral (FBIC) também mostram um crescimento da
influência de Moscou sob o G77 nas últimas décadas, com previsão de expansão
ainda maior até 2035.
Fonte: BBC News Brasil
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