Juliana Rosas: ‘Como cobrimos tragédias?’
Já se vão cerca de
três semanas do início das enchentes que atingiram diversas cidades do Rio
Grande do Sul, causando mortes, deslocamentos e perdas irreparáveis. Desde
então, vimos muitas notícias e reportagens sobre o desastre, pois os efeitos
permanecem e a água não deu trégua. Por isso, é difícil em tão pouco tempo (e
espaço) fazer uma análise de como a imprensa vem cobrindo tais acontecimentos.
Há e houve diversos
tipos e estilos de coberturas: as que focaram no factual, na tragédia, na
análise, na questão ambiental, política, etc. Como mencionado, já se passaram
semanas, daí termos visto análises mais aprofundadas e com ênfase na questão
climática. Poderíamos questionar se as enchentes tivessem sido graves, mas
durado apenas um dia, se veríamos análises assim.
De modo geral, no
jornalismo tradicional, classificaria a cobertura como positiva. Assim como
aconteceu em veículos independentes. Meios de alcance nacional como Folha de S.
Paulo e o jornalismo da Rede Globo cobriram tanto os acontecimentos cotidianos
como fizeram análises e trouxeram especialistas para falar sobre a questão
ambiental e também sobre a onda de notícias falsas e fabricadas que solaparam
as redes.
Para falar sobre as
relações entre os casos, vou citar o capítulo “Democracia, crise climática e
jornalismo” do professor e pesquisador canadense, Robert A. Hackett. De modo
geral, o que Hackett reflete neste texto é como o jornalismo se comporta ou o
que é esperado dele em determinados tipos de contextos democráticos.
A abordagem liberal de
mercado na democracia ignora o poder excessivo da riqueza concentrada nos
processos de elaboração de políticas. Rejeita a ameaça à igualdade política e
até à liberdade individual significativa colocada pelo crescente fosso entre ricos
e pobres, um fosso reforçado pelas políticas neoliberais de cortes nos
programas sociais, nos serviços públicos e na tributação dos ricos. Ignora a
erosão, por uma cultura de individualismo aquisitivo, do sentido de comunidade
que sustenta a governança democrática. E de uma perspectiva ecológica, a
adulação dos direitos de propriedade e a procura de ganhos privados por parte
do liberalismo de mercado veem-se desconfortavelmente ao lado da aceitação
verde de soluções coletivas e da intervenção governamental para os desafios
ambientais, e da necessidade de restrições ao consumo individual (Hackett,
2017, p. 41).
O autor afirma que em
democracias onde predomina o liberalismo de mercado, a proteção ao meio
ambiente não é a principal preocupação. E esta afirmação conecta a cobertura
sobre tragédias ambientais e as chamadas fake news.
• Tipos e concepções de democracia
As democracias podem
ser classificadas com base no modo como se organizam e podem apresentar
diferentes estágios de desenvolvimento. O termo é amplo e de difícil definição,
mas por questões de simplificação e metodologia, tentaremos fazê-lo. Segundo a
maneira do cidadão expressar sua vontade, os sistemas democráticos de governo
podem se organizar de maneira direta ou indireta. Pode-se estabelecer três
tipos básicos de democracia: direta, representativa e participativa (ou
semidireta).
O sistema político no
Brasil pode ser chamado de representativo, mas a Constituição Federal de 1988
permite uma ampla participação popular, que, caso fosse efetivamente aplicada,
poderia colocar o país no patamar de democracia participativa, o que na prática,
praticamente inexiste. As concepções
sobre a extensão atribuída às garantias de liberdade podem ser nomeadas de
democracia liberal, social-democracia e democracia neoliberal.
• Democracia, economia, jornalismo
O atual governo
federal, ao contrário do anterior, é, pelo menos na teoria, preocupado com
questões humanas, sociais e ambientais. É, também, um governo preocupado em
fazer a economia crescer. Historicamente, governos brasileiros não tiveram
políticas públicas fortes na área ambiental, tampouco os cidadãos têm grande
preocupação ou mesmo interesse neste campo. O jornalismo preocupado ou cobrindo
questões ambientais de forma mais significativa também é relativamente recente.
De secas a queimadas,
passando por enchentes e extinção de animais, as reportagens podiam apresentar
as tragédias no sentido grego, onde a peça “Édipo rei” é um clássico exemplo.
Ou seja, tragédia é algo ao qual não podemos escapar. Obra divina ou da natureza.
Nem sempre se questionava o social.
Durante a pandemia de
Covid-19, os estados da região Sul foram os que mais resistiram ao isolamento
social. Muito se ouvia que não deviam parar de trabalhar. O professor Pablo
Ortellado, coordenador do Debate Político Digital, iniciativa que monitora as principais
plataformas digitais, afirmou que um dos achados do projeto é que cerca de um
terço do que circula sobre a catástrofe no X (antigo Twitter) é conteúdo com
ataques aos governos federal, estadual e municipais. Nas redes sociais,
circulam afirmações que os governos não estão fazendo o suficiente e que
iniciativas privadas e individuais poderiam fazer melhor.
É uma concepção não
apenas desinformada da realidade – pois há um esforço nacional para ajudar
nesta catástrofe, ações do Exército, Aeronáutica, poderes executivos e
legislativos, incluindo de outros estados, mas uma visão individualista,
capitalista e elitista do que se passa. Ainda sobre ações nacionais, há
inclusive equipes de Bombeiros partindo de estados do Nordeste – ou seja, do
outro lado do país e, é importante mencionar, uma região que tanto sofreu
preconceito da região Sul – para ajudar em resgates.
Do lado do jornalismo,
desde o início das enchentes, estas são notícia dos principais jornais de
diferentes estados e regiões. Não só notícia, mas são chamadas de capa. E por
falar nisso, as capas de algumas das principais revistas das últimas semanas, a
exemplo de Veja, Isto é e Carta Capital, trazem reportagens sobre as enchentes,
com diferentes abordagens, seja sobre a solidariedade, emergência climática ou
decisões políticas.
É um fato que o
jornalismo nasceu e floresceu com o capitalismo. E foi adotado e adaptado por
diferentes regimes econômicos e de governo. Da mesma forma que atentamos aos
vieses políticos de cobertura, devemos prestar atenção em como determinados
meios cobrem tragédias deste tipo. E mesmo que mostrem soluções e abordem a
crise climática, devemos perceber suas contradições.
A Rede Globo, em
diferentes veículos, seja em podcasts ou reportagens televisivas, trouxe ótimas
reportagens sobre a questão ambiental. No entanto, possui patrocinadores
avessos a tais questões. O mesmo pode se dizer da Folha de S. Paulo. Seu
podcast Café da Manhã produziu excelentes episódios sobre a catástrofe sulista,
entrevistou especialistas, falou de falhas de políticas públicas na questão
climática. Porém, é um programa agora cada vez mais interrompido para anúncio
de patrocinadores. Compreensível, mas só demonstra que o jornalismo sempre
esteve entre a cruz e a espada, entre informação pública e financiamento
privado.
Para terminar assuntos
tão complexos, diria que há algo de errado com a frase que o jornalismo repete
à exaustão: devemos desconfiar de tudo. Historicamente, brasileiros já possuem
desconfiança em relação à política e aos políticos, pois sempre se sentiram
lesados por estes, o que era frequentemente verdade. Em relação às fake news,
também deve-se desconfiar e procurar fontes confiáveis.
Do mesmo modo que não
se deve ingenuamente acreditar em tudo, tampouco cidadãos devem desconfiar de
todos os políticos e políticas públicas. Essa desconfiança exagerada nos levou
a ainda mais tragédias durante a pandemia de Covid-19, fez o país cair nos índices
de vacinação, fez a população desdenhar da educação e da ciência, nos faz achar
que política pública é esmola e – olha aí o efeito bumerangue – fez o índice de
confiança no jornalismo cair ainda mais.
A cobertura de
tragédias deve tratá-la como ocorrência ou acontecimento terrível e ir a fundo
nas causas e consequências. Pessoas e governos devem esquecer a ideia grega e
compreender que o meio ambiente não suporta mais alguns estilos de vida. Os
jornalistas devem desconfiar durante seu processo de apuração para que a
audiência confie em seu trabalho. Uma democracia depende da confiança da
população em seu governo. A democracia é mais saudável com um jornalismo não só
vigilante, mas confiável.
• A inserção dos refugiados e deslocados
climáticos na cobertura da catástrofe no RS. Por Eloisa Beling Loose e Claudia
Herte de Moraes
As enchentes severas
em diferentes municípios gaúchos provocaram uma fuga em massa. Muitos gaúchos
tiveram que abandonar suas casas. Impossível não se comover com as imagens de
desabrigados e desalojados, com poucos pertences, carregando crianças, animais
domésticos e o que mais pudesse ser levado nas mãos diante do caos instalado.
Para onde ir?
A situação vivenciada
por grande parte da população atingida, transmitida por canais de comunicação
diversos, acabou trazendo à tona a expressão “refugiado climático”. O repórter
Juliano Castro, da RBS, foi um dos primeiros a trazer essa questão para a cobertura
das enchentes na televisão. Depois disso, muitos outros jornalistas e
comentaristas colaboraram para popularizar a ideia de que, se não fosse a crise
climática, essas pessoas não teriam que deixar suas casas.
O Nexo trouxe este
debate, indicando que o uso do termo pode ser uma forma de clamar pela atenção
ao desafio da emergência climática, que passa a ser cada vez mais presente na
vida de milhões de pessoas no planeta.
Na cobertura da
imprensa, ao longo dos últimos dias, pode-se observar que tanto as imagens como
a referência ao deslocamento humano são destacados. G1, Uol, Folha de S.Paulo e
outros veículos enfatizaram a questão em seus títulos. As cidades foram abandonadas
porque foram inundadas e/ou ainda apresentavam riscos de isolamento,
desabastecimento, dentre outros. A imagem de “cidades fantasmas”, como foram
retratadas Porto Alegre e Eldorado do
Sul, reforçam o efeito do deslocamento
massivo.
Há uma diferença entre
deslocados e refugiados climáticos/ambientais: os primeiros seriam aqueles
sujeitos à migração forçada por catástrofes climáticas, mas que não chegaram a
atravessar fronteiras internacionais; já os refugiados são aqueles que, motivados
pela mesma situação, são obrigados a deixar seu país de origem. A situação dos
refugiados climáticos está inserida no Direito Internacional, com regulação
específica e uma agência da ONU dedicada ao tema, a ACNUR. Juridicamente, a
expressão “refugiado” não deve ser usada no caso da situação vivenciada pelos
gaúchos. Ademais, é preciso ter cuidado para não banalizar o uso, já que a
saída temporária das casas não é o mesmo que
não conseguir retornar para o lugar em que se vivia devido às
consequências geradas pelas chuvas fortes.
No entanto, sob o
ponto de vista do jornalismo, faz
sentido nomear essa consequência das enchentes com o adjetivo climático,
realçando a conexão entre a intensificação das mudanças climáticas e a maior
frequência dos eventos extremos. Além disso, dar visibilidade ao números de
desabrigados e desalojados revela parte da dimensão da tragédia, já que ser
obrigado a deixar o lugar que se vive, para além dos prejuízos materiais, traz
perdas imateriais, de memórias, pertencimento e convívio, que são imensuráveis.
A crônica da
jornalista Juliana Bublitz, de ZH, descreve os momentos em que os moradores de
classe média da capital Porto Alegre são avisados sobre a urgência da evacuação
no dia 6 de maio. A cena é de estranhamento, com ruas lotadas, impaciência,
insegurança, medo, incerteza. O relato lembra o sentido de estar fora de seu
lugar, traz a dimensão humana do desastre que se transfigura em tragédia diante
de fatores agravantes, como a falta da manutenção do sistema de bombas que
retiravam a água da cidade. Contudo, é sempre bom ressaltar, as classes
vulnerabilizadas tendem a sentir esse impacto de forma mais aguda e prolongada,
por não terem as mesmas condições socioeconômicas para lidar com os efeitos em
cascata provocados pela eclosão do desastre.
A análise de Leonardo
Sakamoto no UOL, no mesmo dia, é direta: “Não temos guerra, mas teremos cada
vez mais refugiados ambientais”. Ele afirma: “tudo o que tem acontecido,
ocorrido, essas pessoas mortas, ilhadas, desaparecidas, desabrigadas, e esses
refugiados ambientais. [Isso] que a gente tem que cravar. O pessoal fala ‘o
Brasil não tem refugiados, tragédia, vulcão, terremoto, guerra’. Tem sim!”.
O resultado dos
eventos climáticos extremos no Rio Grande do Sul é desolador. Levando-se em
conta um dos pressupostos do Jornalismo Ambiental, o engajamento, pensamos que
há pertinência de trazer a referência da urgência e da relevância dos fatos.
Desta forma, o jornalismo demonstra sua função social e política na sociedade.
Neste sentido, usar o termo refugiado climático pode ser um caminho para
evidenciar a conexão com o colapso do clima. Isso aparece na reportagem do
Intercept Brasil: “Segundo números da Defesa Civil, divulgados na manhã desta
quarta-feira, 8, 95 mortes foram confirmadas, e há 128 pessoas desaparecidas.
Mais de 158 mil gaúchos precisaram deixar suas casas por causa das enchentes
que assolam o estado. Nove mil só na capital, Porto Alegre. Mais de 66 mil
pessoas estão em abrigos espalhados pelos 414 municípios afetados – mais de
dois terços do estado. São os chamados refugiados climáticos: pessoas
submetidas a um deslocamento forçado por conta de um evento climático extremo
que coloca em risco sua existência.”
No dia 8 de maio, em
função da calamidade gaúcha, um projeto de lei foi apresentado pedindo a
definição da condição de “deslocado interno por questões climáticas”, como
informa Sakamoto. A proposta do deputado pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ) diz
que “Entende-se como deslocado interno por questões climáticas, qualquer
pessoa, residente no Brasil, forçada a deixar seu habitat tradicional,
temporária ou permanentemente, por causa de uma perturbação ambiental
acentuada, desencadeada ou não por terceiros, que comprometam sua existência
e/ou afete seriamente sua qualidade de vida”. O objetivo desta mudança é
facilitar o acesso a políticas públicas, em especial ao financiamento da casa
própria no programa Minha Casa, Minha Vida. A questão foi repercutida no UOL,
por Sarah Moura no dia 9 de maio.
Assim, embora o termo
siga em discussão nos organismos internacionais de Direitos Humanos para uma
definição aceita para fins jurídicos, na esfera do debate público e diante da
calamidade e do sofrimento humano, acreditamos que o uso das expressões refugiado
climático ou ambiental é uma forma de o jornalismo visibilizar algumas
consequências humanas que nem sempre aparecem em meio à cobertura a partir dos
números. Quem sabe, ao pensarmos no que sustenta a designação de um deslocado
ou refugiado climático, possamos recordar que o objetivo maior de uma Nação
é dar condições dignas de vida e
segurança ao seu povo. E sem cuidado ambiental isso não é possível.
Fonte: Blog da
Boitempo/Observatório da Imprensa
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