Relação Brasil-EUA nasceu sob doutrina
Monroe e mudou de paradigma no século 20
A decisão de
James Monroe de reconhecer a independência do Brasil, em maio de 1824, ocorreu
no contexto da doutrina lançada meses antes pelo então presidente dos Estados
Unidos. Sob a justificativa de afastar o risco da recolonização, a chamada
doutrina Monroe preconizava que o hemisfério Ocidental (ou simplesmente as
Américas) deveria ser parte do campo da influência americana.
A relação bilateral,
que completa 200 anos neste domingo (26), atravessou diferentes etapas, com
momentos de maior aproximação e outros de afastamento --além de uma mudança de
paradigma na década de 1960.
Durante boa parte do
século 19 não foi claro se a ambição dos EUA de substituir as potências
europeias como principal polo de poder na América Latina iria se concretizar.
Afinal, naquela época era com o Reino Unido que os governos latino-americanos,
entre eles o Império do Brasil, mantinham seus principais laços econômicos e
políticos.
No caso específico do
Brasil, segundo explica a professora da Unifesp (Universidade Federal de São
Paulo) Cristina Pecequilo, a história do relacionamento bilateral nasceu ainda
sob uma contradição perigosa para o império: o mesmo país que ajudava o Brasil
a consolidar sua independência de Portugal preconizava ideais republicanos e de
democracia (ainda que à época bastante limitada) perigosos para um regime
essencialmente monárquico.
Segundo a
especialista, Washington não via grandes inconvenientes de ter um governo
inspirado nas monarquias europeias no hemisfério que, na ótica americana,
deveria estar livre dos vícios do velho continente.
De forma bastante
pragmática, os primeiros diplomatas do Departamento de Estado achavam
conveniente um país de expressão regional que servia como força estabilizadora
na América do Sul, formada por um apanhado de repúblicas menores. Além do mais,
as ações dos EUA direcionadas aos países latino-americanos à época tinham mais
foco no México (que perdeu metade do seu território numa guerra com seu vizinho
do norte) e na América Central.
As primeiras décadas
dessa história tiveram momentos marcantes, como a viagem em 1876 do imperador
Dom Pedro 2º aos EUA. Entre outros compromissos, ele participou da abertura da
Exposição Universal da Filadélfia ao lado do então presidente Ulysses Grant.
Entusiasta das
inovações da sua época, ficou maravilhado com o telefone recém-inventado por
Alexander Graham Bell.
Se no início a
influência dos EUA sobre o Brasil foi mais retórica do que prática, a situação
começou a mudar a partir do momento em que os americanos resolveram questões
internas, principalmente o fim da Guerra de Secessão e a expansão territorial
em direção ao Pacífico.
Na virada para o
século 20, a consolidação interna permitiu que os EUA fortalecessem a ideia que
Monroe havia lançado ainda em 1823.
Do lado brasileiro, o
contexto era favorável. A abolição da escravidão e a troca para o regime
republicano tinham diluído contradições que persistiam na relação bilateral.
Os EUA vinham
mostrando uma pujança econômica que indicava uma mudança no tabuleiro da
geopolítica mundial. Esse fenômeno foi percebido pelo mais celebrado diplomata
brasileiro, José Maria da Silva Paranhos Júnior.
De acordo com a
professora Pecequilo, um dos pioneirismos do Barão do Rio Branco foi justamente
enxergar que o polo de poder rapidamente se transferia da Europa para a América
do Norte. Diante desse diagnóstico, ele atuou para reposicionar o Brasil.
"Rio Branco
estabeleceu como prioridade uma relação pragmática com os EUA. Ele foi um
visionário, percebeu que Brasil e EUA eram os dois grandes poderes
hemisféricos, e que o eixo do poder mundial estava mudando para a América por
causa dos EUA", afirma Pecequilo.
Segundo a professora,
um dos pilares da política externa nacional nos primeiros anos do século 20 era
contar que a aproximação política com os EUA renderia concessões de Washington
que seriam benéficas para o Brasil.
A chegada ao poder de
Getúlio Vargas trouxe novos componentes para essa dinâmica. Por um lado, o
líder brasileiro usou o flerte com a Alemanha Nazista para garantir
financiamento americano para a CSN (Companhia Siderúrgica Nacional), base da
sua política de industrialização.
Entrou na guerra do
lado dos Aliados, e o Brasil mandou tropas para combater na Europa.
Por outro, os EUA
então liderados por Franklin Roosevelt --que visitou o Brasil em 1936 e em
1943--apostaram na chamada política da boa vizinhança e na revitalização do
pan-americanismo. O principal símbolo na cultura popular dessa época foi a
criação do personagem Zé Carioca por Walt Disney.
Ao longo das décadas
seguintes, a opção pelos EUA como eixo da política externa começou a sofrer
questionamentos sob o argumento de que as concessões esperadas com esse caminho
não estavam valendo a pena.
Esse movimento
culminou na Política Externa Independente da década de 60, quando o Brasil
passou a advogar que também podia se relacionar economicamente com o bloco
socialista na Guerra Fria.
Apesar de um
realinhamento no início da ditadura militar, afinal os EUA apoiaram o golpe de
1964, a necessidade de manter alguma autonomia em relação à Washington voltou a
ganhar força pouco depois.
"Costa e Silva,
Médici e Geisel tiveram políticas que vão buscar uma autonomia em relação aos
EUA na Guerra Fria", diz Pecequilo.
A ditadura seguia a
orientação americana no combate ao comunismo, mas frustrou Washington em outros
temas: ao não assinar o tratado de não-proliferação nuclear em 1968, na
aproximação com a China e no aprofundamento das relações com o Oriente Médio,
para citar alguns exemplos.
Na década de 1970
houve ainda conhecidos atritos entre a ditadura e o presidente Jimmy Carter,
que deu nova ênfase à pauta de defesa dos direitos humanos e de liberdades
civis.
O fim da ditadura
ajudou a retirar a pressão sobre o tema dos direitos humanos e, de acordo com
Pecequilo, o governo José Sarney (1985-90) promoveu uma espécie de
"limpeza na agenda". Apesar disso, algumas divergências permaneceram
evidentes, entre elas a causada pela decisão do Brasil de proteger seu mercado
de informática e o impulso pela integração regional.
Uma nova reaproximação
ocorreu com a chegada de Fernando Collor ao poder, em 1990. Para a professora
da Unifesp, o período Collor foi a "alinhamento pleno e automático"
com Washington.
Ela define os anos
Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) como de "alinhamento
pragmático", sucedido por um renovado discurso pró-autonomia com Lula.
A primeira passagem de
Lula pelo Planalto e a de sua sucessora, Dilma Rousseff, assistiram a uma
mudança significativa que trouxe reflexos para as relações econômicas entre os
dois países: desde 2009 o principal parceiro comercial do Brasil passou a ser a
China, que desbancou os EUA da posição.
No terceiro mandato de
Lula, após um hiato de alinhamento radical nos dois anos em que Jair Bolsonaro
e Donald Trump coincidiram no poder, prevalece a retórica de autonomia.
Os Estados Unidos
apoiaram a transição de poder de Bolsonaro para Lula e foram peça fundamental
em desestimular movimentos golpistas nas Forças Armadas. Também prontamente
condenaram os ataques antidemocráticos de 8 de Janeiro, vistos pela
administração Joe Biden como uma espécie de reedição dos ataques ao Capitólio
em 2020.
Mas o governo Biden
não esconde a frustração com o que considera falta de gratidão do governo Lula.
A percepção se consolidou com as críticas de Lula à postura dos EUA na Guerra
da Ucrânia --o petista chegou a acusar os americanos de fomentarem o conflito.
O futuro do
relacionamento nascido em 1824 tende a ser pautado pela principal disputa da
geopolítica na atualidade, a Guerra Fria 2.0 entre China e EUA. Nessa queda de
braço entre gigantes, o governo brasileiro alega adotar uma posição de
equidistância.
Mas, como a Folha
mostrou, está cada vez mais difícil para a diplomacia brasileira manter essa
posição.
Quem quer que ganhe as
eleições na Casa Branca neste ano, seja Biden ou Trump, deve aumentar o tom de cobrança
para que outros países se afastem de Pequim ou boicotem produtos chineses.
¨
Ultradireita lusa
poupa brasileiros em discurso anti-imigração
João Gabriel de Lima
Lisboa "A Europa precisa de uma limpeza." Este é o slogan do partido
Chega, da ultradireita portuguesa, em seu programa eleitoral para o Parlamento
Europeu. Num evento no último dia 19 em Madri, o líder da legenda, André Ventura,
deu o tom da campanha: "Não podemos ter essa entrada massiva de imigrantes
islâmicos e muçulmanos na Europa".
Ventura foi aplaudido
no encontro Viva 24, promovido pelo partido Vox, da ultradireita espanhola, que
reuniu representantes de várias siglas do mesmo espectro ideológico. A
ultradireita europeia vem atuando em bloco para aumentar sua representação no
Parlamento.
O Chega é famoso pelas
bravatas xenófobas desde que o partido foi fundado, em 2019, época em que seu
líder criticava e ofendia a comunidade cigana em Portugal.
Causou surpresa,
assim, a declaração do vice-líder do partido, António Tânger Correa, num debate
entre candidatos ao Parlamento Europeu: "Há uma imigração que consideramos
excelente, que são os brasileiros. Os brasileiros durante bastante tempo melhoraram,
em muito, a parte comercial em Portugal, com um atendimento muito melhor e
muito mais humano do que tínhamos antigamente".
O que estaria levando
o Chega a poupar os brasileiros no discurso anti-imigração? "Há
basicamente dois fatores", diz o cientista político italiano Riccardo
Marchi, autor do livro "A Nova Direita Antissistema - o Caso Chega".
"O Chega tem sido
financiado por pequenos empresários, muitos deles do setor de restaurantes do
sul do país. Esses empresários têm dito a Ventura que precisam dos imigrantes
brasileiros." O Chega foi o partido mais votado em Faro, capital da região
do Algarve, ao sul de Portugal --destino turístico favorito de europeus do
norte em busca de praias ensolaradas.
Entre os cerca de 400
mil brasileiros que vivem atualmente em Portugal com documentos regularizados,
muitos efetivamente trabalham em hotéis e restaurantes --o tal
"atendimento mais humano". Um relatório do Observatório das
Migrações, no entanto, mostra um número cada vez maior de brasileiros entre
empresários e profissionais liberais.
O segundo fator seria
religioso. "Muitos dos fundadores do Chega foram influenciados por
pregadores evangélicos brasileiros, que acompanhavam através do YouTube",
diz Marchi. "E hoje são os evangélicos brasileiros que procuram o Chega,
convidando os políticos do partido a conhecer os templos."
Outra explicação para
a boa vontade do Chega com os brasileiros é a proximidade cada vez maior entre
André Ventura e Jair Bolsonaro. Ventura publicou vídeos de apoio ao brasileiro
na campanha presidencial de 2022, e Bolsonaro retribuiu a gentileza nas eleições
legislativas de 2023 --em que o Chega tornou-se o terceiro partido de Portugal.
Na ocasião, o Chega elegeu um brasileiro com cidadania portuguesa, Marcus
Santos, à Assembleia da República. Santos disse em entrevistas que despertou
para a militância política ao frequentar comícios de Bolsonaro no Brasil. Os
afagos não impedem que alguns eleitores do Chega ofendam os imigrantes
brasileiros. Marcus Santos, que é negro, já foi vítima de memes racistas na
internet. O bordão "volta para a tua terra" ainda é recorrente na
caixa de comentários quando o Chega posta vídeos sobre brasileiros em seu canal
do YouTube. No Viva 24, em Madri, André Ventura encerrou sua fala com uma
peroração anticorrupção: "Como dizem nossos amigos brasileiros, lugar de
bandido é na cadeia".
A questão da
imigração, no entanto, ainda é a principal bandeira do partido na campanha
europeia. O tema não é tão forte em Portugal quanto em países como França e
Holanda, mas vem ganhando espaço no rastro de episódios de violência. Há duas
semanas, imigrantes argelinos e marroquinos foram agredidos na cidade do Porto
por extremistas de ultradireita. Capturados pela polícia, alguns dos agressores
confessaram a motivação racista dos ataques.
Grupos religiosos que
são vítimas de violência acusam o Chega de estimular esse tipo de agressão. Na
mesma época dos episódios do Porto, viralizou nas redes sociais um vídeo que
mostra um homem no metrô de Lisboa portando um kirpan, pequeno punhal curvo que
é um símbolo da religião sikh.
Ao comentar as imagens
do vídeo, Ventura se queixou da "insegurança cada vez maior" nas ruas
de Lisboa recorrentemente
apontada como uma das capitais mais seguras da Europa.
Em encontro na
Assembleia da República promovido pela sigla Bloco de Esquerda, Sukhwinder
Singh Jolly, um dos líderes da comunidade sikh de Lisboa, disse que "uma
desconfiança está a ser plantada". A lei portuguesa proíbe o porte de
armas brancas, mas abre exceções para peças de valor histórico ou religioso. Um
portal da comunidade sikh recomenda que os adeptos da religião usem o kirpan
por baixo da roupa.
Outra explicação para
a boa vontade do Chega com os brasileiros é a proximidade cada vez maior entre
André Ventura e Jair Bolsonaro.
Ventura publicou
vídeos de apoio ao brasileiro na campanha presidencial de 2022, e Bolsonaro
retribuiu a gentileza nas eleições legislativas de 2023 em que o Chega elegeu uma bancada de 50
deputados num universo de 230, tornando-se o terceiro partido de Portugal.
Na ocasião, o Chega
elegeu um brasileiro com cidadania portuguesa, Marcus Santos, à Assembleia da
República. Santos disse em entrevistas que despertou para a militância política
ao frequentar comícios de Bolsonaro no Brasil.
Os afagos não impedem
que alguns eleitores do Chega ofendam os imigrantes brasileiros. Marcus Santos,
que é negro, já foi vítima de memes racistas na internet. O bordão "volta
para a tua terra" ainda é recorrente na caixa de comentários quando o
Chega posta vídeos sobre brasileiros em seu canal do YouTube.
No Viva 24, em Madri,
André Ventura encerrou sua fala com uma peroração anticorrupção: "Como
dizem nossos amigos brasileiros, lugar de bandido é na cadeia". Desta vez
não houve bordões contra brasileiros no canal do Chega no YouTube.
Fonte: FolhaPress
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