Frei Gilvander Moreira: ‘Formas e gêneros
literários na Bíblia?’
Lamentavelmente
predomina no meio do povo religioso a leitura fundamentalista da Bíblia
ancorada no falso princípio segundo o qual a Bíblia não deve ser interpretada,
mas apenas posta em prática. Entre os muitos métodos de se interpretar a
Bíblica, o pior de todos e único método repudiado pela Comissão Bíblica do
Vaticano (Igreja Católica) é o método fundamentalista. Ingenuamente, muitas
pessoas pensam que basta ler e automaticamente o que lhe vem à cabeça à
primeira vista seja a interpretação correta do texto bíblico lido. Ledo engano.
Como nem tudo que reluz é ouro, assim também muita coisa que lhe vem à mente a
partir de suas pré-compreensões ao ler um texto bíblico pode não ser o que o
texto quis/quer dizer. Se ignorarmos que os textos bíblicos são literaturas
escritas em outros contextos muito antigos, com certos pretextos e intenções,
se não buscarmos compreender as formas e os gêneros literários dos textos,
ficará muito difícil compreender o significado mais profundo de cada passagem
bíblica. Será muito grande o risco de se projetar nos textos bíblicos
pré-compreensões recheadas de ideologia dominante, seja ela cultural ou
religiosa.
As formas e os gêneros
literários nascem da maneira como as pessoas se expressam, oralmente ou por
escrito; daquilo que elas desejam comunicar; do ambiente humano que as
circundavam; da própria maneira como as pessoas se comunicam e interagem com os
seus ouvintes. Raramente nascem da intenção do/a autor/a de querer adaptar sua
linguagem à realidade vital do povo. A Bíblia é literatura e como tal deve ser
lida e bem interpretada. “Não vivemos do mesmo modo todos os momentos, nem
todas as realidades. Nossa atitude vital muda segundo a nossa situação, o
momento, a idade, o interesse e a intenção. E a linguagem muda de registro e se
articula de modos distintos quando ocorre uma dessas mudanças”.
Como a Palavra de Deus
não chega diretamente aos humanos, mas é mediada pela palavra humana, Deus
escolheu os seus profetas para a transmissão da sua mensagem, daí a importância
de conhecer as diversas formas usadas para a transmissão dessa Palavra para melhor
captar e acolher a sua mensagem. Ela começou com a tradição oral depois foram
nascendo gradativamente os primeiros escritos, por volta de 1200 antes da era
cristã, com o cântico de Débora, mais tarde o cântico de Miriam. Contudo
permanece a pergunta: O que são formas e gêneros literários?
O pensamento humano
torna-se concreto quando se transforma em palavra, em sua forma oral ou
escrita, por meio de formas e gêneros literários. Esta forma depende do
ambiente, do lugar geográfico e social que a pessoa ocupa, do público ao qual
pertence e ao qual se dirige sua mensagem, daquilo que a pessoa deseja
comunicar. A Palavra de Deus não nos chega diretamente, mas chega a nós em
palavra humana, ou seja, pela mediação de homens e mulheres a serviço de Deus.
Por isso, interpretar sensatamente sempre os textos é necessário.
Um nordestino que vive
na sua comunidade do nascimento até se tornar idoso e que viajou pouquíssimas
vezes tem um jeito de se expressar diferente de um ribeirinho do Beiradão do
rio Madeira no sul do estado do Amazonas onde se vive no meio da floresta, sem
cavalo, sem moto, sem jegue, andando nas águas dos igarapés, lagos e rios,
ouvindo os pássaros… Cada região do estado ou do país tem sua cultura e com ela
seu jeito de falar, escrever e se comunicar. Logo, não podemos imaginar que a
Bíblia escrita ao longo de 1300 anos, entre o ano 1200 antes da era cristã e o
ano 110 da era cristã, recolhendo uma imensa pluralidade de experiências de
vida de muitos povos e circunstâncias diferentes, signifique para nós o que
aparenta ser à primeira vista. E mais! Ninguém é tábula rasa ao ler ou ouvir os
textos bíblicos. Todos nós lemos ou ouvimos os textos bíblicos com nossas
pré-compreensões que, se não forem questionadas, podem nos induzir a falsas
interpretações dos textos bíblicos. Por isso, a necessidade de compreendermos
as formas e os gêneros literários bíblicos.
·
O que é forma literária?
De origem latina, a
palavra forma pode significar fôrma, molde, imagem, figura e
não tem um sentido uniforme e unívoco; às vezes, é confundida com gênero ou espécie, o
que não corresponde. Não há uma dicotomia entre forma e conteúdo, antes “há
uma íntima fusão entre os dois estratos ou modos de ser do texto… ambos se
concentram num único objeto, a palavra escrita”. Forma e conteúdo são como
carne e unha, estão sempre juntas, salvo exceções. A forma é tida muitas vezes
como invólucro, mas não corresponde exatamente a isto, porque entre forma e
conteúdo há uma integridade dinâmica e concreta que tem um conteúdo em si
próprio, fora de qualquer correlação. Conteúdo e forma são inseparáveis, se
revelam e se expressam no texto literário. A forma literária pressupõe o que se
diz, ou seja, o conteúdo e o modo de como se diz. Ambos estão
inter-relacionados e são correlatos no ato de expressão. Como diz a filosofia
moderna: só se pode conhecer o que está no tempo e no espaço, também na
comunicação escrita só se escreve um conteúdo usando uma forma.
As formas literárias
são as diferentes maneiras, pelas quais, os meios de expressão literária se
organizam, em função de um efeito que o/a autor/a pretende alcançar. Elas
carregam características comuns para poder classificá-los, por exemplo, entre
as diferentes figuras de linguagem como a metáfora, a comparação e outras. No
caso da metáfora há a transferência para uma palavra, características de outra,
por exemplo o Sl 103,14: “O Senhor se lembra do pó que somos nós”. Há
uma identificação do pó com o ser humano. É uma comparação condensada sem o
conectivo como. No Sl 103 a comparação do ser humano com o pó é para combater o
orgulho, a arrogância do ser humano? Ou teria outro pretexto? Levantar esse
tipo de pergunta é imprescindível para se chegar a uma interpretação justa.
Outra figura de
linguagem é a comparação com o conectivo ‘como’: “O homem!… seus dias são
como a relva: ele floresce como a flor do campo; roça-lhe um vento e já
desaparece, ninguém mais reconhece seu lugar” (Sl 103,15). Compara o ser
humano com a relva e a flor do campo, que hoje existem e amanhã não mais, são
efêmeros, passam como a relva e a flor do campo, mas tem a vocação de ser relva
cotidianamente e vicejar como a flor do campo.
Muitos estudiosos da
Bíblia estabelecem diferença entre forma e gênero. A forma designaria
para eles a unidade literária de extensão menor, já fixada oralmente ou por
escrito. E por gênero designaria a unidade maior, mais extensa
e global. Este gênero é identificado, reconhecido e classificado com base em
três critérios fundamentais: os motivos formais; os motivos de conteúdo; e a
situação vivencial que deu origem ao texto. Para entender melhor o que é gênero
é preciso detalhar quais são os motivos de forma, conteúdo e situação
vivencial.
·
O que é Gênero Literário?
A palavra Gênero como Forma vem
do latim e significa linhagem, família. É uma questão muito antiga já discutida
entre os filósofos gregos. Ele não tem uma forma unívoca e serve também para
designar categorias literárias nos seus diferentes níveis como a prosa, poesia,
poesia lírica, poesia épica, a novela, o soneto, ode, epigrama. No seu sentido
etimológico, gênero pode significar também sexo, família, linhagem, espécie. Os
gêneros literários são imanentes e ao mesmo tempo transcendem a obra, porque é
possível encontrar as semelhanças entre as obras, o que torna possível a
abstração, que por sua vez, vai além de cada obra.
Nenhuma narrativa pode
ser paradigma em sua totalidade para outras do mesmo gênero. O paradigma é por
definição parte da teoria, do conceito, da abstração. Há características que
são constantes em cada gênero e outras são variáveis. As constantes são as que
os identificam. Podem ser classificados por analogia ou semelhança. Enfim, pode
ser um pouco amargo buscar e tentar compreender as formas e os gêneros dos
textos bíblicos, mas é caminho salutar e necessário para se compreender de
forma justa e sensata os textos bíblicos, ainda mais atualmente em tempos de
fascismo e de extrema-direita usando e abusando de textos bíblicos e do nome de
Deus para impor projetos de morte, projetos idolátricos que são repudiados com
veemência pelos profetas e profetisas bíblicas.
Fonte: Combate Racismo
Ambiental
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