sexta-feira, 31 de maio de 2024

Tragédia no RS gera alerta para cidades brasileiras se prepararem para novos desastres

Cientistas, engenheiros e urbanistas já sabem qual é o roteiro para evitar que novos temporais provoquem um desastre tão grave quanto aquele que deixou mais de 160 mortos no Rio Grande do Sul, e que completa um mês nesta quarta (29).

O passo a passo da prevenção começa com estudos detalhados das áreas de risco no estado, passa pela elaboração de um plano de ação com as medidas mais e menos urgentes, e segue com a realização de obras e outras medidas de prevenção.

Em paralelo, as autoridades também precisam desenhar planos de contingência para que os órgãos públicos e a população saibam exatamente o que fazer quando vier a próxima chuva forte.

Os pesquisadores ouvidos pela Folha apontam que entre as principais lições das enchentes no Sul está a constatação de que é urgente mudar a maneira como ocupamos as bordas de arroios, córregos, rios e lagos. Em suma, significa mudar a forma como as cidades foram construídas ao longo do século 20.

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"Os cursos d'água sempre representaram um obstáculo à urbanização: as cidades cresciam, se desenvolviam, e quando chegavam na beira do rio e era canalizado, desviado, tamponado ou assoreado. E obviamente isso vai gerar um impacto", diz o arquiteto e urbanista William Mog, pós-doutorando na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).

Para os especialistas, margens de rios e outras áreas alagáveis terão de ser desocupadas, áreas verdes ampliadas, os diques e comportas que protegem a região metropolitana de Porto Alegre devem ter sua manutenção intensificada e o monitoramento climático e os sistemas de alerta para desastres aperfeiçoados.

A receita para o desastre das enchentes é conhecida há décadas pelos especialistas. A pavimentação de concreto e asfalto faz com que a água seja canalizada com mais velocidade, facilitando o transbordamento em vez de amortecer a chuva (o que é feito pela vegetação e pelo solo). Canalizações malfeitas, barreiras e aterramentos que se multiplicaram na capital Porto Alegre podem agravar o problema, empurrando a águas para áreas vizinhas.

Mog é assessor técnico na área de habitação e urbanismo do Ministério Público gaúcho. Ele diz que é necessário encarar rios e córregos "não mais como um obstáculo, mas como um principal parâmetro para se pensar a urbanização, ou seja, construir a cidade a partir do rio e respeitando o rio".

Isso pode implicar, no casos mais drásticos, na remoção de bairros ou cidades quase inteiras. Essa medida já é discutida em municípios como Roca Sales e Muçum. À beira do rio Taquari, ambos foram atingidos por três temporais no último ano.

A remoção é uma solução extremamente cara que levará anos para ser concluída, sendo necessário começar pelas áreas de maior risco a inundações e deslizamentos. Segundo o engenheiro Carlos Tucci, professor aposentado do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS, pode custar ao menos R$ 20 mil por família.

Mais do que isso, é necessário garantir que essas regiões não sejam reocupadas de forma irregular como acontece com frequência por falta de acesso da população mais pobre à moradia.

"Fica muito claro que sempre a população de baixa renda é mais afetada, e isso chama atenção para um instrumento [de política pública] muito importante, que é a regularização fundiária", diz a arquiteta Heleniza Campos, professora do Programa de Pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional da UFRGS. "Muitas vezes essa regularização acaba se voltando contra a população, porque ela vai acabar ficando numa área inadequada para moradia."

Outro consenso entre especialistas é que nada disso é realizado se os municípios trabalharem sozinhos, isolados. Como as bacias hidrográficas abrangem regiões inteiras, é necessário coordenar várias prefeituras para que os projetos funcionem.

Campos chama atenção para a necessidade de retomar o planejamento metropolitano que, segundo ela, foi sucateado nos últimos anos, culminando em 2017 com o decreto do fim da Metroplan, fundação que coordenava a integração de saneamento, ocupação do solo e transportes, entre outros serviços de Porto Alegre.

"Enxugando corpo técnico, reduzindo a capacidade de serviços e de manutenção da infraestrutura, você vai colocando a população numa situação de risco aos poucos", diz a professora.

ALERTA CLIMÁTICO PRECISA SER DIDÁTICO, DIZ PROFESSOR

O professor Carlos Tucci espera que o desastre gaúcho sirva para colocar a gestão de inundações no centro do debate público brasileiro. Ele trabalha numa proposta de reforma dos sistemas de prevenção contra enchentes da capital gaúcha. O projeto inclui inspeções nos diques e comportas, recuperação do sistema antienchentes e revisão da infraestrutura da cidade.

"Até hoje não há acessos decentes para fora da cidade, e é preciso planejar para que hospitais, escolas e postos de saúde estejam em lugares seguros", diz Tucci.

Já no monitoramento de chuvas e níveis dos rios, ele diz, há espaço para uma reformulação que traga informações mais críticas para os moradores. Idealmente, informações da previsão do tempo, da topografia, das áreas de risco e do nível dos rios seriam integrados para prever quais endereços têm mais chance de serem atingidos.

"No Brasil, temos previsão de chuva mas não do nível da água nos locais de interesse. Como alguém vai saber se com 100 mm ou 200 mm de chuva, o nível da água vai chegar na casa dele?", questiona ele.

Esse monitoramento integrado é uma das mudanças mais difíceis de se alcançar, segundo o meteorologista Giovanni Dolif, coordenador-geral substituto de Operação e Modelagem do Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais). "Os modelos não enxergam a formação de cada nuvem de tempestade", ele diz.

Aumentar o número de locais monitorados está nos planos do Cemaden, responsável pelo principal serviço de alertas para o risco de inundações, deslizamentos e secas extremas no país hoje são pouco mais de 40 municípios gaúchos que recebem o serviço do órgão federal, embora o trabalho seja complementado por serviços estaduais e municipais.

Dolif também cita a necessidade de treinamento de equipes nos municípios e melhoria dos dados que são coletados pelo governo. "É preciso de capacitação. Tem muitos municípios que não sabem direito o que fazer quando chegam os alertas, alguns sequer têm Defesa Civil. Os municípios precisam se estruturar."

O governo estadual do Rio Grande do Sul afirmou que, atualmente, mais de 270 municípios gaúchos têm planos de contingência que detalham procedimentos em caso de desastres. Afirma também que estão em andamento melhorias nos sistemas de monitoramento, com a instalação de um radar meteorológico que em fase final de implementação.

"Foram investidos mais de R$ 25 milhões no serviço que irá monitorar a região metropolitana de Porto Alegre e mais um raio de 150 quilômetros", diz o governo gaúcho.

A gestão Eduardo Leite (PSDB) também afirma que pretende modernizar seus sistemas de monitoramento de eventos climáticos extremos.

"Para os casos de situações climáticas, em que a gravidade não tinha precedentes, o governo iniciou um mapeamento de novas tecnologias e sistemas utilizados em outros estados e países, para verificar a viabilidade da implantação em território gaúcho o mais breve possível", disse o governo, em nota. "De 2023 a 2024, o Estado empenhou R$ 579 milhões em recursos para o enfrentamento a desastres naturais em diversas frentes."

O governador também anunciou a criação do Comitê Científico de Adaptação e Resiliência, para "colaborar no desenvolvimento de estudos, propostas e soluções em diversas frentes de trabalho" de adaptação do estado a mudanças climáticas.

 

•        Barragens potencializam risco de inundações com intensificação de eventos climáticos

Desde a última semana, o governo do Rio Grande do Sul monitora a Usina Hidrelétrica (UHE) Bugres, cujo risco de rompimento é iminente. As hidrelétricas 14 de Julho, que já teve rompimento parcial, em Bento Gonçalves, e Dona Francisca, em Nova Palma, além da Pequena Central Hidrelétrica (PCH) Salto Forqueta, em São José do Herval/Putinga, estão em nível de alerta. Ou seja, exigem providências para manutenção das condições de segurança.

Não por pouco, os extremos climáticos, que têm se intensificado no Brasil e provocaram a destruição de municípios inteiros no Rio Grande do Sul nas últimas semanas, trazem uma preocupação extra aos brasileiros que vivem no entorno das barragens com risco de rompimento em todo o país. “A estrutura destas obras está preparada para chuvas severas como as que atingiram os municípios gaúchos?”, muitos se questionam.

que existem, pelo menos, 26 mil barragens no país, sendo que 2.946 delas contam com algum grau de risco de rompimento.

Ao todo, um milhão de pessoas vive em áreas ameaçadas pelo rompimento desses reservatórios. São estruturas antigas que não comportam grande quantidade de chuvas. Quando rompem, quem mais sofre, como sempre, é a população mais pobre. Existem milhares de barragens não vistoriadas e elas são um perigo, não só no Rio Grande do Sul, mas em todo o Brasil.

Apesar disso, em 2019, o governador Eduardo Leite (PSDB) revogou o decreto que regulamentava a Política Estadual dos Atingidos por Empreendimentos Hidrelétricos no Estado do Rio Grande do Sul.

A lei previa justamente a implementação de medidas de segurança e reparação para comunidades que vivem próximas aos empreendimentos. Ou seja, era um instrumento legal que poderia ser usado para garantir a proteção da vida dos atingidos a partir de ações de fiscalização, criação de planos emergenciais e envolvimento da população na formulação de políticas para a prevenção de desastres, entre outras garantias.

•        Deterioração das barragens

Por isso, hoje, a situação dos atingidos é de grande apreensão. Pois, à medida que as chuvas se intensificam, as águas penetram e encharcam os solos, chegando até as represas, aumentando seu volume e provocando o transbordamento. Segundo especialistas, outra consequência dos eventos extremos é a forte infiltração de água na estrutura das barragens, o que pode dissolver partes sólidas de sustentação. Vale destacar que o impacto desses eventos é cumulativo e que alguns municípios do Rio Grande do Sul já foram atingidos três vezes por grandes enchentes somente no último ano. 

São muitos os riscos associados: chuvas intensas, falta de fiscalização e até estruturas de barragens abandonadas. Um exemplo é a barragem da Lomba do Sabão, que fica na divisa entre os municípios de Viamão e Porto Alegre.

É uma barragem feita nos anos 1940, que há 10 anos foi desativada e, desde então, está abandonada pelos prefeitos neoliberais que se sucederam aqui na capital.

Então, essa mistura de precarização, de abandono dessas estruturas, de irresponsabilidade, de falta de fiscalização do Estado transforma o entorno das barragens em um local de exclusão, um local de sofrimento, um território de sofrimento, para o povo que vive perto dessas estruturas.

Regina Alvalá, doutora em Meteorologia e diretora substituta do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (CEMADEN), destaca que, muitas barragens no Brasil estão próximas de áreas densamente urbanizadas, como no estado de Minas Gerais e na região norte do país.

“Então vamos precisar realmente de estudos, de análises que, de fato, considerem esses cenários de eventos mais extremos, para pensar em planos de prevenção e minimizar, por exemplo, os impactos que eventos climáticos possam ter sobre essas barragens, especialmente as de rejeitos de minério. Sobretudo, as que são muito próximas de áreas mais urbanizadas”, afirma a cientista.

Vale ressaltar que a estrutura das barragens de muitas barragens construídas em meados do século passado foram projetadas levando-se em consideração estatísticas históricas de pluviosidade que eram muito diferentes do cenário atual.

Há uma nova realidade de chuvas extremas concentradas, uma nova situação que não estava nas estatísticas daquela época em que as grandes barragens foram idealizadas. Portanto, todos os empreendimentos com barragens, sejam de hidrelétricas, para abastecimento de água ou de rejeitos, todos eles precisam rever os seus sistemas de segurança para contemplar a nova realidade climática.

Sim, existe uma margem de segurança nos projetos de barragens, mas que leva em consideração estatísticas da normalidade. Agora é uma situação de anormalidade e, nessa nova realidade, não dá para afirmar se são ou não seguras. Como a gente não sabe exatamente onde vão ocorrer as próximas grandes chuvas, todas elas devem ser analisadas.

•        Plano de adaptação às mudanças climáticas foi engavetado no RS

No caso dos municípios gaúchos, o problema ambiental causado pelas barragens é agravado pelo desmonte das políticas ambientais. Além de ter revogado a Política dos Atingidos no seu mandato anterior, o governador Eduardo Leite reduziu o orçamento para a Defesa Civil, engavetou a Política Estadual de Gestão de Riscos de Desastres e ignorou  medidas de mitigação dos efeitos e de adaptação recomendadas por cientistas contratados pelo próprio estado.

Nem as enchentes que atingiram o Vale do Taquari (RS) no último ano, que deixaram dezenas de vítimas fatais, motivaram grandes esforços de prevenção. Em oito meses (desde a última enchente), nenhuma casa foi construída e as ações de socorro planejadas foram completamente incapazes de salvar vidas agora.

Então, a estrutura de estado não tem aprendido com os eventos climáticos? Essa situação que vivemos também é fruto da boiada que estava passando no governo Bolsonaro, com o desmonte da legislação ambiental. Essa boiada que passou hoje afeta milhões de brasileiros e milhares de gaúchos.

O dirigente ainda associa à má gestão pública os transbordamentos da capital gaúcha, pois, na década de 1970, foi inaugurado o sistema de contenção das cheias dos rios Guaíba e Gravataí, com 14 comportas e 23 bombas de sucção.

O sistema foi projetado para suportar a elevação do nível das águas dos rios em até seis metros. “Mas com uma chuva de 5,30 metros o sistema já se rompeu. Rompeu por quê? Porque não suportou 20 anos de governos municipais que não fizeram a manutenção, que não fizeram o devido acompanhamento desse sistema anti-cheias. Das 24 bombas instaladas, só quatro funcionaram. Isso mostra o nível de abandono do sistema”, argumenta Maggi.

•        O futuro climático previsto por cientistas já começou e exige que cidades reduzam vulnerabilidades

Para Alvalá, o caso do Rio Grande Sul confirma previsões da ciência do clima para um futuro que se converteu em presente. “Até praticamente o final da década passada, a gente usava o verbo conjugado no futuro. No futuro, os eventos climáticos vão ficar mais intensos, mais frequentes. E o que efetivamente vemos nessa década é uma confirmação do que foi anunciado”.

Segundo a pesquisadora, tudo indica que esses extremos vão ser cíclicos.

“Tivemos chuvas bastante expressivas no estado no mês de junho de 2023, com 116 mortes, depois em setembro, com 54 mortes. Em novembro, as chuvas provocaram mais cinco mortes e agora testemunhamos esse desastre, que ainda está acontecendo, com centenas de vidas perdidas. Então, no intervalo de menos de um ano, as tragédias foram se repetindo. Já é inequívoco que as mudanças climáticas aconteceram. O planeta está mais quente e, obviamente, os desastres são mais severos. A gente está agora olhando para a questão das enchentes, mas a gente pode olhar também para o outro lado: há regiões que estão sendo mais impactadas pela escassez de chuvas”, analisa Alvalá.

Há também uma avaliação de cientistas da área de que, na verdade, vários eventos influenciaram no desastre gaúcho: uma frente fria, ondas de calor, seca na Amazônia e o fenômeno El Niño, que - combinados com a devastação ambiental no território -  acabaram agravando a situação e resultando em tantas vítimas fatais.

Para Regina Alvalá, as mortes não são consequência apenas dos eventos ditos naturais, mas de uma combinação de fatores.

“O que a gente tem que olhar? A ameaça tem aumentado, certo? Só que o risco de desastres, ele é uma combinação da ameaça, da exposição, da vulnerabilidade, da capacidade ou não de lidar com os desafios, mitigação, etc. Então, se aumentou o nível da ameaça, que é a chuva intensa, se não reduzir a vulnerabilidade e a exposição, obviamente, os desastres vão ser mais impactantes.

A cientista explica que esse é o dever de casa que a maioria dos gestores públicos ainda não fizeram: os planos de adaptação para lidar com eventos mais frequentes, embora o Brasil tenha avançado muito na última década no que diz respeito à ciência de desastres.

“A própria criação do Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais) é o exemplo concreto de que estamos conseguindo monitorar e alertar, mas precisamos agora de política de adaptação. No caso desse evento do Rio Grande do Sul, nós já apontamos o risco das enchentes no dia 29”, afirma Regina. Para que os alertas salvem vidas, porém, os municípios precisam levar os dados em conta para executar políticas de moradia, planos de emergência, evacuação e gestão de riscos.

De acordo com a diretora, apesar do cenário estarrecedor provocado pelos extremos climáticos, é preciso celebrar os casos em que a ciência já ajudou gestores públicos a proteger vidas.

“Tem conhecimentos que são gerados aqui que têm sido realmente incorporados pelo poder público no contexto, obviamente, das especificidades de cada município ou instância de gestão”, afirma.

Como exemplo, Alvalá cita os caso de Santos, no litoral paulista, que tem usado as projeções climáticas no seu planejamento urbano, tendo em vista a questão da elevação do nível do mar.

Outro município que tem investido em prevenção, segundo a pesquisadora, é Petrópolis. “Então, já percebemos que Petrópolis investiu, principalmente depois de 2022, em várias ações de segurança.

As chuvas do final de março deste ano resultaram em mais de 500 deslizamentos de terra no município, mas eles conseguiram estabelecer 67 pontos de apoio, o que garantiu a proteção de muitas vidas. Imagine se, nesses 500 deslizamentos de terra, em metade deles a população ainda estivesse ali nas suas moradias? Poderíamos ter tido um número de mortes muito grande. Foram quatro mortes registradas durante esse evento.

 É fundamental que essa gestão de riscos, que é mandatária, seja feita de forma mais organizada e mais participativa

Não deveria haver nenhuma morte, mas esse número poderia ter sido maior, tendo em vista os desastres que já aconteceram em anos anteriores, causando centenas de mortes. Podemos dizer, portanto, que o monitoramento, os alertas e os planos de evacuação tiveram um resultado positivo”, concluiu.

 

Fonte: FolhaPress/Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB)

 

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