quarta-feira, 29 de maio de 2024

Mesmo com desastres regulares, adaptação climática ainda não é prioridade em municípios no Brasil

As chuvas históricas que inundaram boa parte do Rio Grande do Sul neste mês não foram o primeiro desastre recente causado por eventos climáticos extremos no Brasil. Mas elas precisam ser o ponto de inflexão para que o poder público, especialmente nos municípios e nos estados, acorde definitivamente para a vulnerabilidade de nossas cidades ao clima extremo.

O quadro é crítico. Como destacou a Agência Senado, dados da Plataforma Adapta Brasil, do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), indicam que 3.679 municípios brasileiros – cerca de 2/3 do total nacional – têm baixa ou baixíssima capacidade adaptativa para desastres geohidrológicos. Esses municípios estão particularmente vulneráveis a eventos extremos, mas mesmo aqueles que possuem uma capacidade mais razoável de adaptação podem se ver impotentes em meio a um desastre como o do RS.

“Ali no Rio Grande do Sul, a parte sul do mapa mostra que esta era uma região com capacidade razoável de adaptação à mudança do clima. E olhe o que a gente está vivenciando”, destacou Ana Toni, secretária nacional de mudança do clima do Ministério do Meio Ambiente (MMA), em audiência no Senado. “Imagine [o impacto] nos estados do Norte, muitos do Nordeste e do Centro-Oeste [onde a capacidade é baixa ou baixíssima]. A nossa capacidade adaptativa é muito falha”.

O Globo destacou uma pesquisa da Confederação Nacional dos Municípios (CNM) que identificou que apenas 22% dos gestores em nível municipal consideram que suas cidades estão preparadas para enfrentar os efeitos das mudanças climáticas. A principal lacuna está na falta de capacidade técnica e financeira.

“O estudo também indica que 68% dos municípios relatam nunca terem recebido recursos de estados ou do governo federal para atuar na prevenção às mudanças climáticas, o que contribui para a falta de adaptação e preparação, deixando-os mais vulneráveis”, afirmou Paulo Ziulkoski, presidente da CNM.

“Todos os desastres, os extremos de calor, com mortes, perdas de qualidade de vida e econômicas que sofremos, nos mostram o tamanho colossal do nosso atraso. Por isso, a adaptação está no centro de todas as discussões. É urgente, mas viável”, pontuou Andrea Santos, professora da COPPE/UFRJ e secretária do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas, a’O Globo.

A urgência da adaptação climática também foi reiterada pelo climatologista Carlos Nobre. “A adaptação ficou em segundo plano, mas se tornou urgente. Os desastres estão vindo mais depressa. Os extremos explodiram. E a adaptação está atrasada. O Brasil teve avanços significativos em cortes de emissões e caminha positivamente nessa área, mas adaptar é uma emergência”, disse ao Valor.

•        Brasil investe pouco (ou quase nada) em prevenção de desastres

Separada por duas ruas da margem do rio dos Sinos, a casa onde mora Ana Carolina Dutra da Silva, em São Leopoldo (RS), tem um plano de evacuação. Foram décadas vendo a enchente levar tudo até a família criar uma estratégia. Eles monitoram o nível do rio em tempo real por conta própria, suspendem os móveis ao sinal de ameaça e, em situações mais críticas, a casa do avô, quatro ruas acima, vira abrigo.

Eles seguiram o roteiro durante as chuvas extremas do início de maio, mas, desta vez, o plano não foi suficiente. A água cobriu 1,60 metro da casa, construída acima do nível da rua, e a família ainda não pode voltar para o lar. "Nosso preparo é feito à base da experiência mesmo. Nunca houve um treinamento, nada", conta Silva à DW, lembrando perdas que sofreram em enchentes passadas.

O município, da região metropolitana de Porto Alegre, até investiu na década de 1970 num sistema de proteção contra inundações com construção de diques e casas de bombas. Mas faltou dar atenção – e dinheiro – a um plano estruturado, comenta Heverton Lacerda, da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan).

"No que se refere aos municípios atingidos pelas enchentes deste ano, fica constatado que não há prevenção, sequer sentimento de risco para catástrofes desta dimensão", avalia Lacerda.

Em São Leopoldo, o investimento na área da defesa civil em 2023 se restringiu à compra de lonas plásticas para "manter estoque para atendimento de emergência", segundo consulta da DW ao Portal de Transparência. Foram pelo menos R$ 213 mil gastos de agosto a dezembro numa única casa de ferragens. Cada lona custou R$ 1.424.

•        Falta de política e dinheiro para prevenção

A falha não é exclusiva da cidade gaúcha. "O Brasil carece de política que possa ser chamada de política de adaptação e de prevenção a risco de desastre, de perdas e danos. É um problema estrutural de financiamento dessas políticas", avalia Alessandra Cardoso, economista do Instituto de Estudos Socioeconômico (Inesc).

Uma tentativa de criar uma estratégia permanente aconteceu em 2011. Naquele ano, a tragédia na região serrana do Rio de Janeiro deixou quase mil mortos e o governo federal, então liderado por Dilma Rousseff, precisava dar uma resposta. Surgiu, no ano seguinte, o Plano Nacional de Gestão de Riscos e Resposta a Desastres.

Diversos ministérios estavam envolvidos sob coordenação da Casa Civil. Um mapeamento de áreas de risco para inundações e deslizamentos foi feito, e o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) foi criado.

"Teve no Brasil um investimento inédito na parte da prevenção de 2012 a 2017. Mas ele foi caindo com a crise econômica e política que culminou com o impeachment da presidente Dilma", diz Victor Marchezini, sociólogo e pesquisador do Cemaden.

Foi um período de exceção à regra. O habitual, adiciona Marchezini, é a liberação de dinheiro em resposta aos desastres. E nem tudo pensado em 2012 saiu do papel: o Fundo Nacional para Calamidades Públicas, Proteção e Defesa Civil (Funcap) não entrou em funcionamento até hoje.

"Teríamos um fundo para pensar na parte da prevenção e que auxiliasse numa resposta mais ágil quando os municípios precisam de dinheiro numa circunstância de desastre", pontua o sociólogo.

O governo de Luiz Inácio Lula da Silva agora tenta tirar do papel outro ponto daquela iniciativa de 2012, o Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNPDC). A política quer munir as Defesas Civis de estratégias e dinheiro para lidar com prevenção, mitigação, preparação, resposta e recuperação após os desastres.

•        Só depois que o desastre acontece

O recurso que chega às cidades para prevenir e mitigar os desastres é insuficiente. Uma análise publicada em 2023, que incluiu 1.993 municípios, mostrou que 72% deles não têm orçamento para atividades de proteção e defesa civil. Em mais da metade das cidades pesquisadas (59%), esse órgão conta com um ou dois funcionários. O estudo analisou dados de 2018 a 2022.

Quando o dinheiro chega, em 94% dos casos, é depois de uma tragédia. Apenas 6% foram destinados à mitigação e prevenção, a depender da variação anual, mostrou a pesquisa.

A maior parte dos recursos destinados à Defesa Civil no país, cerca de um terço, vai para carros-pipa no Nordeste em operações feitas pelo Exército. "Em alguma medida, esse gasto já é uma atividade de resposta à calamidade da seca. Esse é basicamente o único orçamento que se mantém durante muitos anos no governo", comenta Renato Eliseu Costa, professor na Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas.

O outro principal gasto é com o Cartão de Pagamento da Defesa Civil (CPDC). Este cartão é, na prática, uma transferência bancária feita pelo governo federal aos municípios que decretam estado de emergência ou de calamidade após terem vivenciado um desastre.

Segundo dados disponibilizados no Portal da Transparência, o total repassado via CPDC tem aumentado a cada ano. De 2020 a 2023, o valor praticamente triplicou: foi de R$ 116 milhões a R$ 339 milhões.

"Não se planeja o risco. Então se paga caro pelo desastre. Não é uma preocupação, historicamente, destinar uma parte dos recursos para prevenção de desastres. A alocação desses recursos acaba acontecendo muito mais por medidas emergências quando ocorrem os desastres", afirma Fernanda Damacena, advogada especialista em Direito dos Desastres e uma das autoras do estudo.

Cardoso, do Inesc, concorda que o governo disponibiliza hoje pouco recurso para fazer frente a este enorme risco de desastres, potencializado pelas mudanças climáticas. "Estados e municípios estão longe de ter capacidade de colocar um plano em prática por conta própria. O governo federal tem um papel central na coordenação", avalia.

•        O pós-desastre

Desde o início das enchentes recordes no Rio Grande do Sul, no fim de abril, o governo federal disponibilizou cerca de R$ 60 bilhões em crédito para ações emergenciais para medidas como compra e distribuição de alimentos, remédios e reconstrução de infraestrutura – como estradas.

Como tem feito há anos em projetos que atua, Damacena vai tentar acompanhar o que aconteceu nas cidades afetadas e como o dinheiro foi gasto. Mas há um grande furo no sistema de informações. "Faltam dados sobre os processos de reconstrução. Tivemos muitos desastres no passado recente e não se sabe o que foi restaurado, o que aconteceu exatamente. Vamos ver como será no Rio Grande do Sul", comenta.

Não adianta usar dinheiro para reconstruir tudo do mesmo jeito, pontua Marchezini, do Cemaden. Análise de dados apontam que o modelo de desenvolvimento levado a cabo em muitos lugares atingidos, com degradação de bacias hidrográficas, uso indiscriminado do solo, desmatamento ilegal, criaram as condições para uma grande catástrofe.

"De que adianta um determinado setor do governo criando os riscos de desastre no território, e, no mesmo governo, uma outra instituição tentando lidar com os próprios riscos que o governo criou? É uma inconsistência", justifica.

•        Desastres ambientais afetaram 418 milhões de brasileiros em 94% das cidades, diz estudo

Um estudo realizado pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM), ainda não publicado na íntegra, mostra que, entre 2013 e 2023, 94% dos municípios brasileiros (ou 5.233 dos 5.570) precisaram decretar situação de emergência ou calamidade pública por conta de eventos climáticos. Como detalha um vídeo produzido pela CNM e divulgado no 3º dia da Marcha dos Prefeitos, realizada entre segunda-feira (20) e ontem (23) em Brasília, foram 64.742 decretos do tipo em municípios de todo o Brasil nesse período, afetando 418 milhões de pessoas – em média, é como se toda a população do país fosse afetada duas vezes.

Esses desastres causaram, no período, 2.667 mortes e R$ 639,4 bilhões em prejuízos, sendo R$ 81 bilhões às prefeituras, segundo o levantamento. Mas, de acordo com Paulo Ziulkoski, presidente da CNM, os repasses federais para ações de defesa civil, gestão de riscos, prevenção, respostas, reabilitação e reconstrução não chegaram perto do necessário. “De tudo isso, o governo federal autorizou R$ 9,5 bilhões, nesses anúncios ao longo desses anos de todos os governos, e o que foi pago foi R$ 3 bilhões”, afirmou à Agência Brasil.

Diante desses desafios, a confederação de municípios apresentou duas propostas que classificou como “estruturantes” para o enfrentamento às mudanças climáticas. A primeira é uma PEC, apoiada pelo deputado federal Gilson Daniel (Podemos-ES), que busca firmar na Constituição o Conselho Nacional de Mudanças Climáticas e o Fundo Nacional de Mudanças Climáticas (o Fundo Clima, com recursos fora do orçamento da União), hoje previstos em leis ordinárias, e a Autoridade Climática Nacional, promessa do governo desde o início do mandato e que ainda não foi criada.

Já a segunda medida é a criação de um consórcio entre municípios para “atuar em ações concretas para prevenir, mitigar e enfrentar os efeitos das mudanças do clima”, como define a CNM, chamado Consórcio Nacional para Gestão Climática e Prevenção de Desastres. “Dados e estudos mostram que os municípios não estão preparados para enfrentar as questões climáticas. Então, o consórcio será esse ponto de união e enfrentará essa questão”, explicou Joanni Henrichs, consultora da CNM, durante o painel “Desafios Municipais no Enfrentamento das Mudanças Climáticas”, parte da programação da Marcha.

Também presente no mesmo evento, a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, destacou a importância da colaboração entre os entes federativos para responder à emergência climática. “Não podemos continuar fazendo apenas a gestão do desastre, precisamos de gestão de risco”, afirmou. “Precisamos de um programa de Estado e não de governo, um fundo de recursos do Estado brasileiro”, disse, citada pela Agência CNM. Ziulkoski, presidente da entidade municipalista, destacou a importância de se colocar a prevenção aos desastres no orçamento, e que esse dinheiro efetivamente chegue aos municípios.

 

Fonte: ClimaInfo/Deutsche Welle/((O))eco

 

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