Na capital da soja, agronegócio revela seu
apartheid
Vista de cima, a
cidade que se orgulha do título de Capital Nacional do Agronegócio evidencia um
abrupto recorte social e econômico. A BR-163 funciona como se fosse uma
fronteira que divide duas realidades opostas, tal qual o muro que separa Israel
e Palestina.
Na margem oeste, uma
economia pujante enfileira lojas de marcas de luxo, ocupa as ruas com
caminhonetes que custam centenas de milhares de reais e erguem mais e mais
casas e condomínios de alto padrão.
A leste da rodovia,
carros fabricados há décadas circulam por ruas que foram asfaltadas pela
primeira vez há menos de cinco anos, numa paisagem que se compõe de construções
simples de tijolos à mostra e placas de excursões para o Maranhão – que levam e
trazem de lá os trabalhadores anônimos que servem até a própria vida na cadeia
de produção do ouro do Cerrado, a soja.
A geração de riqueza e
de desigualdade no Centro-Oeste são faces do mesmo projeto de desenvolvimento
colocado em prática a partir da década de 1970. Baseado numa lógica de ocupação
de terras da Amazônia e Cerrado por colonos oriundos do Sul do país, este
projeto foi turbinado pela globalização das commodities alimentares e
consolidou a vocação brasileira de fazendão do mundo – e também sua
incapacidade de alimentar a própria população.
“O projeto de
colonização foi uma iniciativa do Governo Federal [nos anos de ditadura
militar], que permitiu que empresas comprassem grandes quantidades de terra e
organizassem comercialmente e estrategicamente a venda dessas terras”,
contextualiza Vitale Joanoni Neto, professor pesquisador da Universidade
Federal do Mato Grosso (UFMT).
A estratégia, em suma,
foi criar grandes lotes rurais conectados a lotes urbanos. Assim, a empresa
colonizadora tornava seu produto mais atraente com a promessa aos futuros
fazendeiros do Cerrado de que criaria cidades planejadas. Era verdade: em
Sorriso, que a colonizadora urbanizou, floresceram bairros que oferecem alta
qualidade de vida. O problema ficou para quem não coube neste projeto de
desenvolvimento. Os trabalhadores do agro chegaram depois, ficaram sem terras,
sem casas e apartados das oportunidades de progresso.
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Brasil, o país da soja
Hoje, o Brasil ocupa a
liderança no ranking global de produção de soja, um total de 319,9 milhões de
toneladas na safra de 2022/23 – Sorriso é o município que mais colaborou para
isso, com 2,1 milhões de toneladas. De toda a soja que o país exporta, 75% vai
para a China, onde serve principalmente como ração para porcos, proteína animal
mais consumida pelos chineses.
Os 167 bilhões de
dólares que entram na balança comercial brasileira para comprar tanta soja são
fundamentais para a nossa economia: colaboram para o crescimento do PIB e para
a estabilização do real diante do dólar.
Na perspectiva local,
o dinheiro do agronegócio impôs uma revolução para os municípios do
centro-norte do Mato Grosso. O PIB per capita de Sorriso, por exemplo, saltou
de R$ 27.583,96 em 2010 para R$ 98.309,14 em 2020, e em 2021 chegou a R$
131.899,11 – em um período no qual a população da cidade quase dobrou, de
66.521 para 110.635 no último censo, em 2022.
Em uma região do
Brasil onde a riqueza vem do que a terra dá, quem não tem terra faz o quê? Essa
é a pergunta que um enorme contingente de moradores de Sorriso se faz – de
acordo com dados do Cadastro Único, cerca de 30% da população vive em situação
de vulnerabilidade social. A região, de acordo com Atlas do Espaço Rural Brasileiro, é a de maior concentração de terras de todo o país. E quem
luta por terra vive na pele uma outra face do apartheid social imposto pelo
agro.
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Assentamento
Alvorecer: “Querem encurralar a gente”
Há mais de duas
décadas, Milton e Eva Batista vivem de forma itinerante pelos municípios do
centro-norte de Mato Grosso. A casa recém-construída dentro do Assentamento
Alvorecer é a quinta moradia da família no período – todas as anteriores foram
demolidas por caminhões e tratores em ações de reintegração de posse.
“Essa é a primeira
casinha de madeira que eu construí. Foi sozinho, Deus e eu”, conta Milton, que
é pai de seis filhos, três deles criados dentro de assentamentos de ocupação de
terra. Antes dessa construção, ele e a família viveram anos debaixo de lona.
O casal, ambos de 65
anos, está desde dezembro de 2022 no Assentamento Alvorecer, quando recebeu o
convite do líder comunitário Gerson Sousa Santana para voltar à zona rural.
Antes, passaram pelo que chamam de “sofrimento” de morar na periferia urbana de
Sorriso. “A gente foi pra cidade vestindo só a roupa do corpo”, se emociona
Milton. Para trás, havia deixado três anos de trabalho investido numa ocupação
que foi destruída e destinada ao cultivo de soja.
Além da terra na qual
puderam se abrigar no Assentamento Alvorecer, eles encontraram também histórias
semelhantes. A primeira ocupação, em 2014, foi totalmente revertida em menos de
7 meses. Após o despejo, se organizaram como associação e ocuparam de forma
definitiva um território de 180 hectares pertencente à União – onde, à época,
viviam 113 famílias.
Uma das mais
influentes famílias sojeiras da cidade reivindica para si a posse dessas
terras, e a pressão sobre o Judiciário surtiu efeito: em 2019, uma liminar
reduziu em mais de 90% o tamanho do assentamento. “Nos disseram que queriam
encurralar a gente no chiqueiro”, recorda Gerson, presidente da associação.
Os moradores relatam
uma ação de despejo violentíssima. A começar por uma ilegalidade: Gerson afirma
que nem ele, nem o advogado constituído pelo assentamento receberam notificação
judicial. Tratores e helicópteros chegaram de surpresa e deram poucos minutos
para que os assentados juntassem seus poucos pertences e se amontoassem no
espaço de 16,9 hectares definidos pela decisão do Judiciário. A terra onde eles
viviam e plantavam hoje cultiva apenas soja e milho para uma família.
A lógica do apartheid
foi reproduzida no campo. No lugar do muro, os fazendeiros abriram uma valeta
de 2 metros de altura entre os dois territórios – um buraco intransponível onde
já caíram e morreram animais que ajudam no sustento das atuais 80 famílias que
vivem no assentamento. Na Justiça, a associação pleiteia o seguinte acordo: 5
hectares para cada unidade familiar, com reserva nativa inclusa. “O pedido é de
moradia digna e terra para trabalhar, só isso”, resume Gerson.
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Assentamento Jonas
Pinheiro: “O agro quer pegar de volta”
O Assentamento
Alvorecer é vizinho do Assentamento Jonas Pinheiros – do qual, inclusive, os
moradores dependem para o abastecimento de água e energia elétrica. Mais bem
estruturado, o Jonas Pinheiro está em fase muito mais avançada de regularização
fundiária, ainda que siga enfrentando questionamentos legais.
O assentamento foi
regularizado pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária)
em 1999, ano em que as primeiras famílias se instalaram nos 7.300 hectares que
compõem o projeto. O casal Marcio Manoel da Silva e Maria Boaventura de Sousa Silva
(conhecida como Sula) chegou em 2002 e desde então sobrevive da agricultura
familiar: “Tudo o que a gente sabe fazer é produzir alimentos”, afirma Marcio.
Eles, assim como as mais de 400 famílias assentadas, correm também risco de
despejo.
Em 2021, a Justiça
anulou o processo de desapropriação de toda área. Um processo movido pela
família que foi proprietária da fazenda reivindica reaver a terra, devido a
falhas no processo de regularização por parte do Incra. A ameaça de despejo
gerou reações diversas entre os moradores: alguns desistiram de vez da viver da
terra e houve até quem passou mal. “Teve gente que desmaiou e foi parar no
hospital”, relata Sula, que é presidente da Cooperativa dos Pequenos Produtores
Rurais do Vale do Celeste (Coopercel).
“Quando viemos para
cá, ninguém dava nada por essa terra. Era considerada quase improdutiva”,
recorda Marcio. “Agora que provamos que dá pra produzir aqui, que a terra tem
valor, o agronegócio quer pegar de volta”. A produção no Jonas Pinheiro se
mostrou especialmente profícua durante a pandemia de covid-19: os agricultores
receberam da Prefeitura – por tempo determinado – um bom kit de maquinários e
tratores e responderam com safra recorde de hortifrutis e hortaliças, que foram
distribuídos aos moradores da cidade.
O anúncio do Plano
Safra, com foco em agricultura familiar, em meados de 2023 trouxe aos
produtores a expectativa de levantar recursos para a compra de novos
equipamentos e maquinários e, assim, repetir de forma sustentada o bom
desempenho dos anos da pandemia. E então, novo balde de água fria: o
assentamento teve suas solicitações negadas devido a um embargo ambiental. Isso
porque a área destinada para reserva ambiental coletiva de todo o Jonas
Pinheiro está invadida.
As invasões ao trecho
definido como reserva ambiental ocorrem desde o início do Projeto de
Assentamento. Começou com alguns assentados em busca de hectares a mais para
plantar. Depois de duas décadas, não há praticamente mais vegetação nativa e o
perfil de invasores se transformou: o espaço está quase todo ocupado por
plantações de soja e por pasto tomado de gado branco.
Para Sula e Marcio, se
trata de mais uma forma do agronegócio estrangular o crescimento da agricultura
familiar. Um ciclo no qual, sem recursos, os produtores têm baixa produtividade
e acabam por desistir da lida. E muitos arrendam suas terras dentro do próprio
assentamento exatamente para que laranjas entrem na política interna das
associações e convençam cada vez mais produtores a atenderem aos interesses dos
grandes latifúndios: plantar mais soja.
Moradora de bairro
pobre de Sorriso mostra a casa que sofre com as enchentes e com problemas de
falta de saneamento básico. Foto: Fellipe Abreu/Mongabay
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Agrotóxicos: doenças
em humanos e extermínio entre animais
A invasão da soja
dentro do Projeto de Assentamento Jonas Pinheiro traz novos problemas. Os
relatos são vários de que aviões voam baixo sobre os lotes arrendados
despejando agrotóxicos sobre a terra. No Assentamento Alvorecer, os produtores
descrevem cenas parecidas. “No tempo da plantação da soja, eles vêm com o avião
para passar veneno, mas eles não abrem só na parte deles, eles jogam veneno nas
nossas terras. Faz uma chuva de veneno e destrói as nossas frutas”, conta
Gerson. “Minha mãe passou mal por causa do agrotóxico, e tive que tirar ela
daqui e pagar um aluguel na cidade”, conclui.
As mais recentes
evidências científicas dão razão a Gerson. Publicado em 2023, o documento “Ambiente, saúde e agrotóxicos desafios e perspectivas na defesa
da saúde humana, ambiental e do(a) trabalhador(a)”, produzido por pesquisadores da Universidade Federal do Mato
Grosso, consolida dados que relacionam uso de agrotóxicos e incidência de
câncer no estado entre 2001 e 2016.
Neste espaço de 15
anos, a incidência média de casos de câncer em Mato Grosso cresceu 19,45%. Mas
o que chama mais atenção é que o crescimento de notificações foi acentuado nos
municípios do centro-norte mato-grossense, entre eles Sorriso – cujo consumo de
agrotóxicos é destacado como o maior do estado, com mais de 2 milhões de litros
apenas no ano base de 2019. Enquanto a incidência média de câncer no estado é
de 166,97 casos por 100 mil habitantes, na capital do agronegócio é de 304,35
casos por 100 mil habitantes.
O documento conclui
que há “forte correlação” entre consumo de agrotóxicos e casos de câncer e
acrescenta “correlação positiva com as incidências de intoxicações agudas,
mortes por intoxicações, cânceres infantojuvenis, malformações fetais, abortos
e suicídios”.
O uso indiscriminado
de pesticidas causa efeito ainda mais devastador entre as maiores polinizadoras
do reino animal. O produtor Zauri José Biavatti, apelidado de Bispo, administra
há 19 anos suas terras, localizadas entre o PA Jonas Pinheiro e uma das maiores
fazendas de soja à margem da BR-163. Ele também observa que a frequência de
voos para pulverização de agrotóxicos aumenta a cada ano. Assim como a taxa de
letalidade de suas abelhas.
“Sempre morreu abelha,
mas a média era de duas colmeias por ano, no máximo três. De 2020 para cá subiu
muito e agora, em 2023, de 19 colmeias eu perdi 15”, relata Bispo. Não é um
caso isolado.
A mais de 30
quilômetros de distância, o agricultor Oridio Queiroz testemunhou um extermínio
dentro de sua propriedade. “Você não pode tirar todo o mel de uma vez, então eu
tinha colhido o mel só de três caixas – e estava tudo bem”, conta. “Dois dias
depois um amigo me ligou e disse que eu precisava ver minhas abelhas. Quando
cheguei aqui, eu fiquei triste demais da vida. Não tinha mais abelha, elas
estavam todas mortas”. Seu Queiroz perdeu cerca de 250 quilos de mel – o que
representa, em termos financeiros, cerca de R$ 12 mil – e mais de 10 anos de
criação de colmeias.
Diversas perícias em
distintos pontos do município de Sorriso identificaram que a causa mortis das
abelhas foi o uso excessivo de agrotóxicos. O caso mais emblemático foi a
condenação de um fazendeiro produtor de algodão a pagar uma multa de R$ 225
mil, responsável pelo extermínio de mais de 100 milhões de abelhas entre
Sorriso, Sinop e Ipiranga do Norte. As investigações feitas pelo Instituto de
Defesa Agropecuária de Mato Grosso (Indea) constataram a presença do princípio
ativo fipronil.
À reportagem,
produtores denunciaram o uso ilegal de pesticidas contrabandeados do Paraguai,
sem registro na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
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Mercado de luxo em
expansão
No núcleo urbano de
Sorriso, há bairros que não devem à paisagem de cidades ricas dos Estados
Unidos. A pujança econômica tem símbolos evidentes nas ruas, o mais proeminente
deles é a multiplicação de pick-ups e SUVs. As caminhonetes compõem mais de 10%
da frota total de veículos da cidade, em especial as de grande porte, como as
da linha RAM, que custam a partir de R$ 240 mil. Apenas em 2023 foram
registrados mais de 12 mil emplacamentos de veículos desta categoria no
município.
O mercado imobiliário
também vive seu boom em Sorriso. Desde 2020, o preço médio do metro quadrado
subiu 80% no município, hoje estimado em R$ 2772,35 – em São Paulo, cidade mais
rica do país, o metro quadrado médio fechou 2023 em R$ 7.153, segundo o Relatório
de Compra e Venda do Quinto Andar. Nos condomínios de alto padrão de Sorriso,
como o Cidade Jardim e o Green Park, o valor das mansões subiu até 140% nos
últimos quatro anos.
A inflação para os
mais ricos – que chegam a pagar cerca de R$ 1 mil em peças de roupas nas lojas
de luxo da Avenida João Brescansin – alcança também quem tem menores
rendimentos. Na parte oeste da cidade, casas de padrão classe média (sala,
cozinha, banheiro, lavabo, dois quartos e garagem para dois carros) podem
custar mais de R$ 6 mil de aluguel. Na parte leste, a mais pobre, o aluguel de
casas simples de três cômodos (sala/cozinha, um quarto e um banheiro) sai quase
sempre por mais de R$ 2 mil.
Seu Milton e Dona Eva,
no período entre o despejo e o reassentamento no Alvorecer, moraram meses no
bairro de Nova Fraternidade, na periferia da cidade. Eles dividiam uma casa de
quatro cômodos com outra família. Os R$ 1.500 pagos no aluguel de metade do
imóvel comprometiam quase integralmente a renda familiar. “Tinha dia que eu
trabalhava de manhã pra ter dinheiro para jantar à noite. Às vezes nem isso, e
dependíamos da ajuda das pessoas”, se emociona Milton.
“A gente precisa
plantar porque está tudo caro”, reclama Eva. Na terrinha que o casal mantém
dentro do assentamento, ela mostra as plantações de mandioca, cana, melancia,
laranja, banana, abacate, quiabo e maracujá. “É tudo para consumo nosso. A
gente planta com nosso suor mesmo e, aí, não precisa comprar”.
Uma preocupação que se
justifica nas gôndolas dos mercados: o preço da cesta básica em Mato Grosso é
um dos cinco mais altos do país; em Sorriso, o valor é maior que a média do
estado.
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Risco de morte aos
trabalhadores do agro
Quem não tem acesso à
terra precisa trabalhar e, evidentemente, as vagas que se abrem são quase todas
relacionadas ao agronegócio. Na média nacional, o rendimento médio do
trabalhador do agro é R$ 2.381,00 (dados de dezembro de 2023 do Centro de
Estudos Avançados em Economia Aplicada – CEPEA Esalq/USP), cerca de 15%
inferior ao rendimento médio do trabalhador de serviços.
Pressionados ao mesmo
tempo pelo elevado custo de vida da cidade e por salários insuficientes,
trabalhadores se submetem a empregos com carga horária elevada e condições de
segurança insuficientes. Uma equação que muitas vezes resulta em tragédia.
O trabalho “Agronegócio e acidentes de trabalho letais em armazéns
graneleiros do Mato Grosso”, realizado pelos
pesquisadores Luciano Bomfim e Jacob Binsztok, da Universidade Federal
Fluminense, agrupou informações de todo o país entre os anos de 2019 e 2021. A
pesquisa constatou que as mortes estão concentradas no estado de Mato Grosso:
foram 17 óbitos dos 37 registrados no Brasil. Revelou também o não cumprimento
das normas de segurança como a principal causa das mortes – em 70% dos óbitos,
os funcionários não faziam uso dos equipamentos de segurança necessários para a
função.
O tipo de acidente
predominante é o soterramento: foram 28 mortes de trabalhadores afogados a seco
dentro de silos carregados de grãos – os demais tipos foram desabamento (3),
queda (3) e inalação de gases (3). Foi desse modo, asfixiado em um silo de soja,
que Francisco Neves da Silva perdeu a vida aos 36 anos, em maio de 2021 – um
acidente que matou mais dois colegas dele: Francisco Carvalho dos Santos, de 32
anos, e Francisco das Chagas Abreu, de 21 anos.
era migrante
maranhense. Desde jovem empregava os músculos na lida do armazenamento de
grãos, de onde obtinha renda para se sustentar e para mandar algum valor para a
mãe, no Maranhão. Casou-se com Beatriz Bandeira, cabeleireira, com quem
mantinha há mais de dez anos uma família, composta ainda de mais três filhos
dela.
Beatriz acompanhou in
loco parte do trabalho de resgate do Corpo de Bombeiros, que durou mais de 10
horas. No fim daquela tarde, ela recebeu diversas ligações de um amigo do
casal, perguntando por notícias do Rap – apelido de Francisco Neves. A
insistência chamou a atenção, e Beatriz exigiu saber o que houve. E então
recebeu a notícia: três homens estavam soterrados na fazenda onde seu marido
trabalhava, em Nova Ubiratã, município vizinho, a aproximadamente 30 km de
Sorriso.
“Peguei minhas coisas
e fui direto pra lá. Toda vez que eu ligava pro meu marido e ele não atendia,
tinha certeza de que ele estava envolvido”, conta. Às 3h15 daquela madrugada, o
primeiro corpo foi retirado – o de Francisco Carvalho. Na sequência, um novo
corpo aparecia. “Quando os bombeiros levantaram a maca lá no alto, mesmo de
longe eu reconheci. Eu reconheci meu esposo pela bota dele. Quando desceram
ele, eu e o meu cunhado chegamos perto, e a gente viu que ele tinha partido”,
se emociona.
A terceira vítima,
Francisco das Chagas, foi resgatado do silo com vida. Enquanto seus colegas
foram soterrados por toneladas de soja, o corpo dele escorregou para uma área
onde a entrada dos grãos foi bloqueada. Sem vaga na rede pública de saúde na
cidade, ele foi levado ao Hospital Regional de Sinop, onde morreria três dias
depois – óbito por envenenamento, decorrente das mais de 10 horas em que inalou
o ar preso entre os grãos.
À época, o Sargento BM
Moraes, do Corpo de Bombeiros, disse ao site MT Notícias: “Infelizmente nenhum
dos trabalhadores estavam usando equipamento de segurança. Então foi uma
negligência e será apurado posteriormente pelos órgãos competentes”. Até agora,
não houve condenações.
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Violência urbana
explode: crime organizado coopta os jovens
Beatriz viveu duas
tragédias que simbolizam as mazelas sofridas pela população de Sorriso que é
apartada da riqueza promovida pelo agro. Além de perder seu companheiro,
engolido pela soja, perdeu também seus filhos para o crime: o mais velho foi
executado com tiro enquanto andava de moto e o mais novo, seis meses depois,
sequestrado por bandidos encapuzados e fortemente armados dentro de casa – o
jovem está desaparecido há quatro anos.
São crimes como esses
que engordam as estatísticas de Sorriso. O ranking elaborado pelo Fórum
Brasileiro de Segurança Pública em 2023 coloca a cidade como a sexta maior taxa
de assassinatos do país (70,5 casos por 100 mil habitantes) – é a primeira da
lista fora da região Nordeste e a única da região Centro-Oeste a figurar na
lista das 50 mais violentas. O índice de Sorriso é três vezes superior à média
nacional (23,4 homicídios por 100 mil pessoas).
A onda de violência
começou a se formar em 2013, mas tomou impulso nos últimos dois anos, de acordo
com Naldson Ramos, coordenador do Núcleo de Estudos da Violência e Cidadania da
Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). Pouco mais de dez anos atrás, a
facção criminosa paulista PCC começou a se posicionar em pontos estratégicos do
Mato Grosso para tentar controlar rotas do tráfico de drogas da Bolívia para o
Brasil. Durante muito tempo, o controle territorial do crime no estado esteve
com a facção fluminense Comando Vermelho (CV).
A situação ficou
especialmente crítica em 2022. Um racha interno do CV em Sorriso resultou no
nascimento de uma nova facção, composta exclusivamente de criminosos da região.
O grupo dissidente identificado como Tropa Castelar formou aliança com o PCC,
que entrou pela primeira vez na cidade. A disputa por pontos de venda, domínio
territorial e cooptação de agentes das forças de segurança deflagrou uma guerra
que mata indefinidamente – integrantes ou não das facções.
Naldson Ramos, que
estuda os dados de violência da cidade, afirma que é um erro a avaliação de que
se trata apenas de “bandido matando bandido”, como foi dito pelo governador do
estado, Mauro Mendes (União Brasil). Ao colocar uma lupa sobre os números de
homicídios, ele identifica também crescimento de mortes que decorrem de
violência policial e de conflitos corriqueiros entre homens armados.
“Há um mercado
consumidor de drogas com muito dinheiro em Sorriso. Temos registros de que as
festas dos jovens ricos são regadas a álcool com cocaína, skank e anfetaminas”,
informa Nadson. “Então vira um território muito rentável para os traficantes e
aumenta o risco de brigas que resultam em uso de arma de fogo”.
O aumento da
criminalidade é, talvez, o efeito colateral da desigualdade social e econômica
que mais chegue aos olhos de quem se beneficia dela. A concentração de renda e
a baixa remuneração da força de trabalho do cidadão médio compõem a tempestade
perfeita para que as facções criminosas cooptem jovens para o mundo do crime.
Fonte: Mongabay
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