Mulheres trans precisam de cuidados
específicos de saúde; entenda
Estima-se que, no
Brasil, 4 milhões de pessoas sejam transgêneras ou não
binárias, conforme dados do Banco Mundial. Parte dessa população se
reconhece como mulher, vivendo os desafios de ter a identidade de gênero
diferente daquela atribuída ao nascimento.
Fatores como estigma,
discriminação e preconceito contribuem para afastar essa população dos serviços
de saúde. A Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis e Transexuais, que
completa 12 anos em 2023, busca promover a saúde integral dessas pessoas e
contribuir para a redução das desigualdades.
No mês internacional
das mulheres, se faz necessário abordar a cobertura de atendimentos oferecidos
para aquelas que lutam pelo respeito à sua condição de mulher. Nesta
sexta-feira (31), o Dia Internacional da Visibilidade Trans promove a conscientização sobre os direitos dessa
população, incluindo o acesso pleno à saúde.
“Um bom primeiro ponto
é que saúde da mulher inclui mulheres trans. Normalmente o termo é usado para
se referir exclusivamente à mulher cisgênero e isso acaba gerando mais uma
barreira ao acesso de mulheres trans e
travestis aos serviços de saúde. Um outro ponto muito relevante é que os
cuidados de saúde puramente biológicos que eu vou oferecer a uma mulher trans
depende de diversos fatores”, afirma o médico Caio Portela, do Núcleo de
Cuidados em Saúde para Pessoas Trans do Hospital Sírio-Libanês.
O especialista explica
que, quando se aborda a saúde de mulheres trans, a terapia hormonal é um dos pontos mais
recorrentes. No entanto, o cuidado integral vai além da hormonioterapia.
“O mais comum é que
pensemos em hormônios na frente de
tudo, mas nem todas as mulheres trans estão sob o uso de algum desses
medicamentos. O caminho escolhido por aquela mulher alinhar a sua expressão de
gênero com a sua identidade de gênero vai determinar os cuidados mais
específicos que precisarei ter com ela. Nesse sentido, vou precisar considerar
as condições de saúde, doenças pré-existentes, outros medicamentos de uso
habitual, hábitos de vida, a facilidade de acesso ao sistema de saúde, emprego,
renda, rede de apoio”, explica.
Os cuidados
específicos serão determinados de acordo com o que está sendo ou já foi
realizado para a transição de gênero, de acordo com o médico. O acompanhamento
médico e multiprofissional permite uma abordagem mais completa da saúde.
“Precisamos encarar a
realidade que nem todas as pessoas tem acesso a tudo, mas, num cenário ideal,
muitos acompanhamentos regulares podem ser importantes. O psicólogo é
importante para pessoas com questões de saúde mental, por exemplo. Ser
transgênero expõe a pessoa a uma imensa quantidade de estresse pelas múltiplas
violências do cotidiano e isso pode ter reflexos no corpo e na mente”, diz.
O médico
infectologista Álvaro Furtado, do Hospital das Clínicas de São Paulo, destaca a
importância do cuidado em saúde mental de mulheres
trans.
“Existe uma situação
bastante grave dessa população de falta de acesso à saúde e as evidências
mostram que todo esse estresse de minoria que é vivenciado pelas pessoas LGBTQIA+ traz problema para a saúde. Então, o acompanhamento de
saúde mental nesse processo de hormonioterapia é fundamental. Durante a
transição, pode haver disforia [crise de angústia] que também tem que ser
avaliada”, pontua.
·
Acompanhamento
periódico
A busca pela afirmação
da identidade é ponto importante para as mulheres trans, assim como para todas
as pessoas. Quando esses cuidados dependem de um serviço de saúde que se mostra
inacessível, as pessoas podem se submeter a procedimentos sem acompanhamento, o
que pode ser perigoso.
“O uso desacompanhado
de hormônios faz com que as pessoas usem as drogas inadequadas, do jeito
inadequado, sem controles preventivos importantes e sem que se note possíveis
danos, que controlamos com exames e conversas periódicas. Esse é um problema
bem grande. As mulheres trans acabam se expondo a riscos que podem custar suas
vidas pela falta de acompanhamento adequado – o que muitas vezes é causado pela
falta de acesso e inexistência de profissionais qualificados. Quanto maior a
vulnerabilidade, menor o acesso. Quanto menor o acesso, maior o risco”, afirma
Portela.
O combate ao
preconceito e à desigualdade de gênero estão entre as prioridades da nova
gestão do Ministério da Saúde. Inicialmente, o Sistema Único de Saúde (SUS)
incorporava essas usuárias somente com a política de prevenção e tratamento
a infecções sexualmente transmissíveis (ISTs). Entretanto, ainda na primeira década dos anos
2000, especialistas em saúde pública trabalharam para essa mudança de
paradigma, como explica a Coordenação-Geral de Atenção Especializada do
Ministério da Saúde.
Com a edição de uma
portaria em 2013, a pasta redefiniu e ampliou a cobertura do SUS para essa
população. O regramento prevê a habilitação de estabelecimentos de saúde na
modalidade ambulatorial e hospitalar, garantindo a integralidade do cuidado
para as pessoas trans. Os serviços ambulatoriais devem oferecer acompanhamento
clínico, pré e pós-operatório, além da hormonização, realizados por uma equipe
multiprofissional.
Mais tarde, outra
portaria, de dezembro de 2022, alterou os critérios para a cirurgia de redesignação sexual e
construção da neovagina. “Para passar pela intervenção há critérios, é preciso
ter mais de 21 anos e ter passado pelo acompanhamento clínico e hormonal por
dois anos, sendo que esse último é autorizado no SUS a partir dos 18 anos de
idade”, explica a Coordenação-Geral de Atenção Especializada.
“As consultas
ginecológicas serão importantes para as mulheres trans e travestis que tenham
se submetido à cirurgia de redesignação e possuam neovaginas. Os objetivos, no
entanto, são diferentes, já que vamos observar outras coisas, que também vão
depender do tipo de cirurgia, da técnica utilizada e dos hábitos daquela
mulher. Mulheres trans não submetidas às cirurgias genitais não necessitam de
consultas ginecológicas”, afirma o médico do Sírio-Libanês.
Embora a cobertura
compreenda as diferentes necessidades das pacientes, a oferta é deficitária por
múltiplos fatores. Atualmente há 12 estabelecimentos de saúde habilitados
pelo Ministério da Saúde para
esse tipo de atendimento. Desses, somente cinco são habilitados na modalidade
hospitalar. “Programas que acolhem essas pessoas e os serviços de saúde são mal
estruturados e acolhem mal essas mulheres trans, sem contar as situações de
violência que acontecem e precisam ser bastante discutidas”, afirma Furtado.
“Existem muitas
questões sociais implicadas também. O assistente social pode ser um
profissional fundamental para que temas como educação, empregabilidade, renda e
suporte sejam tocados. Vale lembrar que saúde é um conceito amplo e ultrapassa
nosso corpo físico e suas questões biológicas. A alimentação também é
importante e, se possível, deve ser acompanhada. Em resumo, os acompanhamentos
regulares devem ser direcionados a necessidade de cada uma e ultrapassam
bastante as questões hormonais”, complementa Portela.
¨ Saúde amplia acesso de pessoas trans a procedimentos
ginecológicos e urológicos
O Ministério da Saúde
alterou as restrições de gênero de 271 procedimentos médicos oferecidos pelo
SUS (Sistema Único de Saúde) como forma de ampliar o acesso a exames, cirurgias
e outros procedimentos por pessoas transexuais e travestis. A medida foi publicada
por meio da portaria SAES/MS Nº 1.693, no Diário Oficial da União, no dia
10 de maio.
A revisão foi
feita considerando uma liminar proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no
escopo da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 787, que
determina ao Ministério da Saúde a
adoção de medidas para adequação e atualização dos sistemas de informação,
incluindo o SIA-SUS (Sistema de Informação Ambulatorial) e o SIH-SUS (Sistema
de Informação Hospitalar).
Antes da medida,
determinados exames e procedimentos ginecológicos ou urológicos só poderiam ser
feitos por um ou por outro sexo, feminino ou masculino. Isso dificultava o
acesso de homens transexuais a exames ginecológicos e obstétricos e de mulheres
transexuais e travestis a exames urológicos e proctológicos, por exemplo, por
terem mudado a informação do sexo em seus documentos de identificação.
Em matéria publicada anteriormente na CNN, o ginecologista Sérgio Henrique Pires Okano, professor da USP
e membro do departamento científico LGBTQIAP+ da Associação Brasileira de
Estudos em Medicina e Saúde Sexual (Abemss) explica que, apesar das mudanças, o
corpo dos homens trans possuem órgãos reprodutores femininos e que o
acompanhamento médico para essa população deve ser contínuo, assim como o
acompanhamento das mulheres cisgênero (que se identificam com o gênero
atribuído no nascimento).
Isso também vale para
mulheres transexuais, que necessitam de cuidados de saúde especializados,
determinados de acordo com o que está sendo ou já foi realizado para a
transição de gênero, de acordo com Caio Portela, do Núcleo de Cuidados em Saúde
para Pessoas Trans do Hospital Sírio-Libanês, também em matéria já publicada na CNN. O
acompanhamento médico e multiprofissional permite uma abordagem mais completa
da saúde.
·
O que mudou?
Por meio da portaria,
a pasta modifica, na Tabela de Procedimentos, Medicamentos, Órteses, Próteses e
Materiais Especiais do SUS, o atributo sexo, adotando o termo “ambos” para
procedimentos como mamografia, ultrassonografia
pélvica e transvaginal, consultas pré-natal, mastectomia, quimioterapia,
radioterapia e hormonioterapia, parto, entre outros. Com isso, não há mais
restrição de gênero para a realização desses procedimentos.
Entre outros exames e
procedimentos contemplados pelas mudanças, estão:
- Ultrassonografia de bolsa escrotal;
- Ultrassonografia de próstata;
- Tratamento hormonal preparatório para cirurgia de
redesignação sexual;
- Tratamento de ginecomastia;
- Radiografia de câncer ginecológico;
- Radioterapia de pênis;
- Radioterapia de próstata;
- Biópsia do colo uterino;
- Colposcopia;
- Teste rápido de gravidez;
- Vasectomia.
Fonte: CNN Brasil
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