LOBBY: Mais uma dose… de
açúcar?
Estava calor, era
carnaval e eu queria beber, mas não engordar. Sim, o pontapé inicial para essa
reportagem não foi dos mais nobres. Mas… quem nunca? Naquele dia, um colega me
ofereceu como opção a bebida queridinha do momento – ao menos nos rolês paulistanos:
o Xeque Mate. Para me convencer, ele disse: “É de rum.”
Já faz parte do
conhecimento popular a noção de que uma long neck equivale
mais ou menos, em calorias, a um pão francês de 50 gramas: é o “pão líquido”.
Claro que é um pão líquido piorado porque tem alto valor calórico, pouco valor
nutricional e álcool. Mas, por causa disso, quem não quer engordar por vezes
escolhe destilados. Também são calóricos, mas, como se toma menos doses,
parecem uma opção mais certeira. Quando dei o primeiro gole no Xeque Mate,
levei um susto. Era muito doce. Parecia que eu estava tomando um refrigerante
alcoólico.
Em geral, o açúcar não
passa despercebido por mim. Sou dessas pessoas que tomam tudo sem adoçar: café,
suco, chá, qualquer tipo de bebida. Faz uns quinze anos que não experimento nem
uma gota de refrigerante. Nesse caso, não é uma preocupação com calorias, mas
uma tentativa de ser saudável. Não que eu seja a miss saúde, mas mudei muito
minha alimentação ao longo dos anos, principalmente cortando açúcar e produtos
ultraprocessados – uma grande conquista pra quem já teve uma dieta baseada em
“sucos” de saquinho e lasanhas prontas do supermercado.
Pra tentar entender se
eu estava certa, se aquela bebida era mesmo açucarada, ou calórica, virei a
latinha em busca da informação nutricional. Afinal, nesse processo de tentar me
alimentar de forma mais saudável, me tornei uma grande leitora de rótulos.
E aí, pela primeira
vez, me dei conta que bebidas alcoólicas não têm informação nutricional. Aqui
no Brasil, elas trazem, isso sim, a lista de ingredientes. No caso do Xeque Mate, essa lista consiste
de extrato natural de erva mate tostada, rum, açúcar, suco de limão
concentrado, extrato natural de guaraná, corante caramelo, benzoato
de sódio, ácido ascórbico e CO2. O açúcar vem em terceiro lugar, e sabemos que
os ingredientes são listados por ordem de quantidade. Mas fiquei sem saber
quanto açúcar adicionado tem ali ou quantas calorias existem na lata.
Vale dizer que a
empresa mineira que produz o Xeque Mate, e que leva o nome da bebida, começou
pequena, fundada por dois colegas. Tem seu mercado localizado principalmente em
Belo Horizonte e São Paulo. A Xeque Mate Bebidas está crescendo bastante rápido: foram 730% de 2023 para 2024.
Mas está longe do impacto das gigantes.
Comecei a procurar
outras bebidas desse tipo, da categoria de drinks prontos, que estão cada vez
mais populares. A Ambev tem todo um catálogo, nas linhas Mike’s e Beats. Essa
última vem lançando um sabor novo por ano: caipirinha, limão, mojito, moscow mule
e gin tônica. Gim – ou gin – é o destilado queridinho de quem está fazendo
dieta. Então, fui olhar esse rótulo.
Na Beats GT, os
ingredientes são: água gaseificada, dry gin, açúcar, acidulantes: ácido cítrico
e ácido tartárico, aroma natural de gin tônica e reguladores de acidez: citrato
trissódico e ácido málico. Isso deu pra ler na versão em lata. A Beats long
neck, para piorar, imprimiu o rótulo no “pescoço” da garrafa, perto da
tampa. É praticamente impossível ler. Além de terem adição de açúcar, os
chamados “drinks prontos” são destinados a um público jovem. A Xeque Mate, com
8% de teor alcóolico, tem como slogan “o verão dentro da lata”. O marketing da
Beats foca em ser a bebida “da galera”, pra ser levada “em qualquer rolê”. A
linha tem a cantora Anitta como head de criatividade e
inovação. Surgiu como Skol Beats no ano 2000, e foi passando de uma cerveja com
um pouco mais de álcool, destinada a eventos de música eletrônica, para uma
linha de bebidas alcoólicas mistas, até investir nos drinks prontos. Tem 7,9%
de teor alcoólico.
Outra linha de drinks
prontos da Ambev, a Mike’s, tem teor alcoólico menor – 5% – mas sua lista de
ingredientes é extensa. No sabor pitaya, ela é propagandeada como “leve,
refrescante e cheia de sabor”. Os ingredientes são: água gaseificada, vodka,
açúcar, concentrado de cenoura roxa, suco concentrado de limão clarificado,
acidulante ácido cítrico, regulador de acidez citrato de sódio e aromatizante.
Apesar de a publicidade da Mike’s dar uma ideia de frescor – no comercial
da versão limão, um homem entrega a bebida pro colega
de dentro de um limoeiro, quase como se tivesse sido colhida do pé – essa
bebida tem todos os ingredientes para ser classificada como um
ultraprocessado.
Outros grupos já estão
entrando na dança: em outubro de 2023, a Amstel lançou a linha Vibes, sua
estreia na categoria ready to drink, ou em bom português, bebida
pronta. “É mais palatável, então, principalmente pra quem está começando a
consumir, é mais atrativo”, diz Laura Cury, coordenadora do projeto Álcool da
ACT Promoção e Saúde. “É uma lógica parecida com cigarros com sabores, como o
mentolado. Facilita o consumo e a iniciação de um público mais jovem, e também
das mulheres, que historicamente bebem menos.”Uma reportagem da revista Exame de
2023 diz que mais de 20% do faturamento da Ambev vem de produtos que não
existiam no portfólio nos dois anos anteriores – e a maior parte dos novos
produtos lançados são drinks prontos. Uma pesquisa da Insight
Ace Analytic calculou que o mercado global desses produtos movimentou 36
bilhões de dólares em 2022 e deve chegar a 97 bilhões em 2031. A Nielsen
Scantrack, especialista em pesquisa de varejo, já mostrava um crescimento
de 60% no setor durante a pandemia.
Além dos jovens, o
setor mira as mulheres, que representam um mercado em ascensão. Elas são mais
de 90% do faturamento dos vinhos em lata da
Lovin, uma startup que nasceu em 2021 e a marca quer atrair a geração Z. Ingredientes do
Lovin vinho branco frisante: fermentado de uvas, sacarose e conservante INS
224.
Segundo o IBGE,
as mulheres foram responsáveis por aumentar o índice de adultos que consomem
álcool no Brasil, que passou de 23,9% em 2013, para 26,4% em 2019. Para piorar,
o relatório do Sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças
Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), produzido pelo Ministério da
Saúde, mostrou um aumento de mulheres que consomem álcool de forma abusiva:
dobrou de 7,8% em 2006 para 15,2% em 2023.
“Temos uma pesquisa de
saúde escolar que mostra que as meninas na faixa etária de 13 a 15 anos começam
a beber antes e bebem mais que os meninos. E as pessoas que se tornam
dependentes na vida adulta são as que começaram em idade precoce e de forma
intensa”, diz Zila Sanchez, chefe do Departamento de Medicina Preventiva da
Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM/Unifesp).
No relatório da
Nielsen, chamam atenção os motivos pelos quais os consumidores estão indo atrás
dos drinks prontos: buscam conveniência (não querem ter que preparar uma gin
tônica do zero), menos calorias e a ideia de consumir melhor, em vez de
consumir mais. Mas será que nós estamos consumindo melhor ao ingerir essas
bebidas? Será que estamos consumindo menos calorias? Se tem açúcar adicionado,
por que não sabemos quanto açúcar tem ali?
·
O que tem dentro
Em 2020, a Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) alterou a
regra para a rotulagem nutricional de
alimentos. A rotulagem frontal entrou em vigor em
outubro de 2022, ainda que repleta de exceções e adiamentos. Todo fabricante que
vende produtos com alto teor de açúcar adicionado, sódio e gorduras saturadas
tem de fornecer essa informação na frente da embalagem, na forma de uma lupa.
Na parte traseira, tornou-se obrigatória a declaração de açúcares totais ou adicionados.
Isso vale para todos
os alimentos e bebidas não alcoólicas, mas não vale para as bebidas alcóolicas.
Segundo a norma, a tabela nutricional de bebidas alcoólicas é voluntária. Os
fabricantes colocam a tabela no rótulo se quiserem. E, neste caso, estão liberados
para declarar apenas o valor energético total do produto.
Pedi informação
nutricional para a Xeque Mate, que respondeu que está mudando a fórmula do
produto, e que as informações completas logo estarão na lata e divulgadas nos
canais de comunicação. Pedi também a tabela nutricional da Beats para a Ambev.
A empresa respondeu que, como a tabela nutricional não é obrigatória, prefere
não comunicá-la. Ou seja, a informação completa não está só fora da embalagem:
não se consegue nem pedindo.
Aqui quem ganhou uma
estrelinha no quesito transparência foi a Vibes,
da Amstel, que colocou a tabela nutricional voluntariamente na parte de trás da
lata. No sabor “strawmelon”, que parece ser um mistura das palavras “morango e
melancia”, em inglês, a lata fornece a lista de ingredientes (água gaseificada,
açúcar cristal, álcool etílico, aroma natural acidulante: ácido cítrico,
regulador de acidez: citrato trissódico, e corantes: vermelho allura ac,
tartrazina e amaranto), e também a tabela nutricional. Por ela descobrimos que
a lata tem 78 calorias, 8,4 g de açúcares adicionados (23% do
consumo diário recomendado), 8,7 gramas de carboidratos, não tem
proteínas, gorduras totais, saturadas ou fibras, e tem 25mg de sódio, ou 3% do
valor diário.
A rotulagem das
bebidas alcoólicas – de todas elas: cervejas, vinhos, cachaças, uísques – é
motivo de grande debate internacional. Um debate que caminha muitos passos
atrás da rotulagem de alimentos.
São duas as principais
preocupações. Uma é a tabela nutricional, e o centro do debate nesse caso é a
possível ligação entre bebidas alcoólicas e obesidade e doenças crônicas, além
do direito do consumidor à informação. A outra é a necessidade de advertências
nos rótulos sobre os riscos à saúde relacionados ao consumo.
“São dois tipos de
rotulagem diferentes e com objetivos diferentes”, diz Zila Sanchez. “A primeira
é a questão das informações nutricionais, como no caso dos ultraprocessados. A
outra é a questão dos warning labels, que é o que se estuda em
termos de política de álcool.”
Desde 1988, a OMS, por
meio de sua agência de pesquisa sobre o câncer, a Iarc, já concluiu que o
álcool é cancerígeno. Diversas pesquisas vêm reforçando essa conclusão. Em
2023, a organização declarou na revista científica Lancet que não há dose segura de álcool, e que os
benefícios do consumo de álcool (como, por exemplo, a ligação entre vinho e a
proteção contra doenças cardíacas) são menores que os riscos.
“A nossa ideia nunca é
proibir o consumo do álcool. É regulamentar e fazer com que as pessoas tenham,
no mínimo, consciência do que elas estão consumindo”, diz Laura. “O consumo de
álcool está associado a pelo menos sete tipos diferentes de câncer. No caso das
mulheres, especialmente, está bastante associado ao câncer de mama.”
Em 2021, a OMS
publicou um relatório sobre rotulagem
de bebidas alcoólicas. O documento diz que as práticas de rotulagem dessas
bebidas não são padronizadas pelo mundo, como são no caso de medicamentos,
produtos alimentares e bebidas não alcoólicas.
São poucos os países
que exigem informação nutricional, como calorias, aditivos, alergênicos,
ingredientes e vitaminas. Também são poucos os que exigem no rótulo a
informação de quantas doses de bebida estão contidas em uma embalagem. É maior,
mas ainda baixo, o número de países que requerem que os rótulos alertem sobre
riscos à saúde nas embalagens ou propagandas. Quando isso acontece, as
advertências costumam ser sobre beber antes da maioridade ou sobre o perigo de
dirigir sob efeito do álcool.
“Passa muito pela
percepção de risco dos produtos e pelo lobby das indústrias”, diz Laura. “Com o
tabaco, o rótulo de advertência já está mais estabelecido, o segundo passo foi
a rotulagem da alimentação e o álcool está entrando aí na esteira.”
Em 2011, o Parlamento
Europeu aprovou uma lei de rotulagem nutricional para alimentos e bebidas, mas
as bebidas alcóolicas ficaram de fora. Não
precisavam nem listar seus ingredientes. Seis anos mais tarde, em 2017, o
Comitê de Política e Ação Nacional sobre Álcool (CNAPA), que reúne delegados
dos países da União Europeia para discutir melhores práticas e políticas para o
álcool, fez um relatório sobre o
assunto.
O documento conclui
que a lista de ingredientes e a tabela nutricional são informações essenciais
para que os consumidores possam fazer escolhas melhores, e que não há base para
justificar a falta dessa informação nas bebidas alcoólicas. Menciona países que
já listam os ingredientes das bebidas – o Brasil é um deles. Os outros são
Estados Unidos, Canadá, China, Índia, México, Nova Zelândia, Rússia e
Suíça.
O comitê encomendou um
estudo com 2.031 participantes de oito países europeus. Quase metade (49%)
respondeu que queria informação sobre as calorias das bebidas alcoólicas, e 16%
declararam a intenção de reduzir o consumo de álcool com base nessa informação.
O relatório cita ainda
a organização europeia de defesa do consumidor, a BEUC, que defende
textualmente que a lista completa de ingredientes, incluindo informação
nutricional, deve estar presente nos
rótulos das bebidas alcóolicas. Como resultado, a indústria foi convidada a
enviar medidas autorregulatórias. Os produtores de destilados propuseram fornecer a
quantidade de calorias das bebidas nos rótulos e a lista de ingredientes
online. Os produtores de cerveja passaram a informar calorias
e ingredientes. Nutrientes ficaram de fora.
O debate dos rótulos
de advertência causou polêmica no Canadá, em 2017, quando foi realizado um
experimento científico financiado pelo governo daquele país. Na cidade de
Whitehorse, capital do estado de Yukon, bebidas alcóolicas receberam rótulos
coloridos que alertavam para as ligações entre álcool e doenças como câncer. O
resultado do experimento e da
cobertura da imprensa sobre o estudo foi a diminuição de 6,31% nas vendas de
bebidas alcoólicas em apenas um mês, e aumento da conscientização sobre os
riscos de saúde associados à bebida. A indústria do álcool ameaçou processar o
governo e o experimento, que duraria oito meses, foi interrompido.
“Os primeiros estudos
sobre rótulos de álcool começaram na década de 80. Há poucos estudos e a quase
totalidade foca nos rótulos de advertência. Alguns mostram que os rótulos
aumentam a conscientização, mas não diminuem o consumo. Outros mostram que diminui
o consumo.”, diz Zila Sanchez. “A falta de estudos prejudica a implementação de
novos rótulos de advertência.”
Apesar da grande
resistência da indústria, a partir de 2026, na Irlanda, as bebidas alcoólicas
terão no rótulo o aviso com duas advertências: “Há ligação direta entre o
álcool e cânceres fatais” e “Beber álcool causa doença hepática”. É o primeiro
país da União Europeia a adotar a medida.
A determinação está
sofrendo grande pressão da indústria europeia e norte-americana do álcool, que
argumentam que os rótulos impedem o livre comércio e não são apropriados para o
objetivo de redução de danos. Antonio Tajani, ministro das Relações Exteriores
da Itália, disse no X (ex-Twitter) que a proposta
irlandesa de rotular todas as bebidas, “incluindo o vinho italiano”,
é “absurda” e que conversaria com a Comissão Europeia para intervir. Conversando com jornalistas,
disse que a decisão é “um ataque à dieta mediterrânea” já que “não leva em
consideração a diferença entre o consumo moderado e o abuso de álcool”. A
Tailândia, o Canadá e a Noruega estão analisando propostas sobre as
advertências sobre câncer nas embalagens.
No Brasil, um decreto
de 2009 obriga as empresas a informarem a lista de ingredientes de todas as
bebidas – e, no caso das alcoólicas, também a graduação alcoólica, expressa em
volume, além de frases de advertência alergênicas conforme legislação específica.
Por causa disso, está entre os países com maior número de informações exigidas
nos rótulos. Em um levantamento de 2013, só a
Rússia exigia que o rótulo informasse a adição de açúcar, e os Estados Unidos,
a quantidade de carboidratos. Nenhum país exige declaração compulsória de
informações nutricionais ou valor energético.
No entanto, a lei que dispõe sobre a propaganda de
bebidas alcoólicas no país, de 1996, só é aplicada às bebidas com teor
alcoólico superior a 13 graus Gay Lussac (GL). A lei impede, por exemplo, que
fabricantes de bebidas alcoólicas façam propaganda que associe esses produtos
com bem-estar, saúde, prática de atividades esportivas, dentre outros. Cervejas
e drinks prontos, com teor alcoólico menor, ficam de fora. Essas bebidas têm de
levar em conta apenas o Código Brasileiro de Autorregulamentação.
“E aí, quando a gente
tem uma advertência, a gente tem coisas como o ‘beba com moderação’, que
ainda é no imperativo, incentivando a pessoa a beber” diz Laura. “E não como no
cigarro, em que o maço expressa o ‘Ministério da Saúde adverte’, ou como a lupa
dos ultraprocessados.”
Ao longo do tempo,
foram apresentados dezenas de projetos de
lei na Câmara dos Deputados e alguns no Senado sobre propaganda e rotulagem de
bebidas alcóolicas. A esmagadora maioria se preocupa com as advertências de
saúde, tanto nas propagandas como nos rótulos. Em menor quantidade, há projetos
que pedem a inclusão da quantidade de calorias nas bebidas. Todos, até hoje,
arquivados.
Um dos que chegou mais
longe foi um projeto de lei de
2014, do então senador Ruben Figueiró (PSDB/MS), que pedia que as bebidas
alcoólicas tivessem de informar o valor energético. O projeto defendia a lei
baseando-se no alto teor calórico das bebidas (um grama de álcool tem sete
calorias), ressaltando que essa informação poderia ser importante por conta do
aumento nos índices de sobrepeso e obesidade. O projeto foi aprovado pela Comissão de
Transparência, Governança, Fiscalização e Controle e Defesa do Consumidor
(CTFC) e seguiu para votação na Comissão de Assuntos Sociais (CAS). Foi à
consulta pública, mas terminou arquivado no final da legislatura.
Existem diversos
estudos que analisam a relação entre obesidade e ingestão de álcool, com
resultados variados. Estuda-se a porcentagem de calorias diárias que pode ser
ingerida com o consumo diário, como o organismo processa as calorias do álcool
ou até a probabilidade de a bebida alcoólica aumentar a fome, provocando mais
ingestão de outras calorias.
Em 2014, na
Inglaterra, os médicos membros da Sociedade Real para Saúde Pública concluíram
que as bebidas alcoólicas deveriam informar as calorias nos rótulos como
estratégia para lidar com o aumento dos índices de obesidade na Grã-Bretanha.
Alertavam que um copo grande de vinho pode ter cerca de 200 calorias. Em uma
matéria da BBC, a presidente da organização, Shirley Cramer, disse
que 80% dos adultos não sabem ou subestimam as calorias ingeridas nas bebidas.
Em 2015, uma revisão de
literatura feita por Gregory Traversy e
Jean-Philippe Chaput, do Instituto de Pesquisas do Hospital de Ontário,
concluiu que a ingestão leve a moderada de álcool (quase duas doses para
homens, uma para mulheres) não parecia estar associada à obesidade. Mas o consumo
excessivo de álcool por dia, ou o hábito de tomar várias doses de uma vez, o
chamado “binge drinking” (cinco ou mais doses em uma ocasião para homens
ou quatro para mulheres), sim.
Em 2020, a Associação
Europeia para o Estudo da Obesidade divulgou um estudo em que concluía que
consumir mais de sete gramas de álcool por dia (o que é menos que uma taça de
vinho ou uma lata de cerveja) aumentava o risco de obesidade ou da chamada síndrome
metabólica. No Brasil, um estudo acompanhou por nove anos
participantes da coorte ELSA-Brasil, e observou maior risco de obesidade
abdominal em homens que aumentaram o consumo de álcool, mas não em mulheres.
E, se por um lado,
essa discussão é extremamente relevante, especialmente com o surgimento de
opções de bebidas alcoólicas que são produtos ultraprocessados, ela poderia nem
ser necessária para embasar o acesso à informação.
Segundo o Código de
Defesa do Consumidor, temos o direito à informação adequada e clara sobre as
características dos produtos. E alguns processos judiciais se baseiam
exatamente nisso. Um deles foi movido pela Promotoria do Consumidor do
Ministério Público de São Paulo, em 2010, exigindo que as cervejas informassem
seu valor energético no rótulo. O MP ganhou em primeira instância, mas as
empresas de cerveja se uniram e levaram a melhor na segunda instância. Em 2012,
o Tribunal de Justiça de São Paulo revogou a decisão.
Durante as
considerações sobre a nova norma de rotulagem de alimentos da Anvisa, foi
levantada a questão da rotulagem das bebidas alcoólicas. No relatório
preliminar, concluiu-se “que as bebidas alcoólicas permaneçam excetuadas da
declaração da tabela nutricional para não estimular o seu consumo, considerando
os riscos associados ao consumo de álcool”.
Em declaração, a
agência apoia essa decisão mencionando alguns pontos. Um deles é a posição do
Uruguai na LXXII Reunião Ordinária do Subgrupo de Trabalho nº 3 (SGT-3) do
Mercosul. O país foi contrário à obrigatoriedade da tabela nutricional ou do
valor energético nas bebidas alcoólicas, argumentando que tal abordagem pode
estimular o consumo excessivo dessas bebidas por consumidores que superestimem
o aporte energético das bebidas ou que se baseiem no baixo teor de açúcares ou
gorduras presentes.
Essa perspectiva é
defendida por um estudo-piloto,
mencionado pela Anvisa, feito em 2008 com 58 estudantes de Administração de 20
a 30 anos, por pesquisadores de marketing e logística da Universidade de
Arkansas e da Universidade de Villanova, na Filadélfia. Eles concluíram que
descobrir o baixo nível de carboidratos de bebidas como vinhos poderia levar
jovens consumidores a aumentarem o consumo.
Como conclusão, os
autores recomendaram que o valor energético – as calorias – seja inserido nos
rótulos de todas as bebidas, mas que a declaração de outros ingredientes seja
exigida apenas quando eles estiverem presentes. Os autores reforçam a necessidade
de mais pesquisa.
O relatório da Anvisa
cita também uma pesquisa experimental realizada pelo
Centro de Estudos de Tabaco e Álcool, da Universidade de Bristol, em 2018.
Também feito com estudantes de graduação, o estudo concluiu que o acesso às
informações sobre calorias poderia facilitar o consumo de bebidas com teor
alcoólico mais alto, e que jovens poderiam tentar compensar a ingestão de
calorias da bebida comendo menos antes de beber.
Esses dados, para a
área técnica da Anvisa, trazem incertezas sobre os efeitos da declaração da
tabela nutricional ou do valor enérgico nos rótulos demonstrando a necessidade
de mais estudos, em especial realizados com a população brasileira.
“Existe de fato
polêmica se o rótulo nutricional faz sentido em termos de bebida alcoólica”,
diz Zila. “Como a questão da informação nutricional no álcool ainda é muito
pouco estudada, e existem algumas evidências de que pode trazer efeitos
negativos, a questão não é tão simples quanto nos ultraprocessados.”
O contrassenso é que,
enquanto esses estudos não acontecem, dar ou não a informação nutricional fica
a cargo das empresas. Para piorar, o Centro de Informações sobre Saúde e
Álcool, o Cisa, referência no desenvolvimento de pesquisas sobre o assunto no
país, considera uma dose padrão de consumo de bebida alcoólica no Brasil 40%
maior que a sugerida pela OMS.
O Cisa recebe
financiamento da Ambev e da Heineken. O conflito de interesses foi exposto por
um grupo de pesquisadores brasileiros em um artigo internacional. “Nós
não temos, pelo Ministério da Saúde, a definição da dose padrão para as
diferentes bebidas alcoólicas no Brasil. Isso deixa uma lacuna para que outros
órgãos determinem a dose padrão. Mas temos um grupo de trabalho no Ministério
da Saúde discutindo essa questão”, diz Zila.
A parte curiosa das
regras de rotulagem é que as bebidas sem álcool, como as cervejas – obviamente
– deixam de ser bebidas alcóolicas. Com isso, passam a ter as mesmas obrigações
dos alimentos. Então, se você virar uma lata de 350 ml da Budweiser, em sua
versão alcoólica, você saberá apenas que ela contém água, malte de cevada,
arroz e lúpulo. Voluntariamente, ela diz que tem 81 calorias.
Se você virar a
Budweiser 0.0%, que é a versão sem álcool da cerveja, você vai descobrir que
ela tem malte de cevada, arroz, lúpulo, aromatizante. Além disso, você vai
saber que ela tem 69 calorias, 16 gramas de carboidratos, 2,3 gramas de
açúcares totais/ adicionados, 0,5 grama de proteína e 7,3 gramas de
sódio.
Para mim, que comecei
essa investigação por causa de informações nutricionais, ter tido acesso às
listas de ingredientes fez diferença. Além das calorias, de que me adianta
cortar o refrigerante se no final eu tomar bebidas alcoólicas cheias de
aromatizantes, conservantes e corantes? Na minha experiência, beber e melhor
passa pelos rótulos. E talvez eu escolhesse nem beber se fosse alertada sobre o
risco de câncer de mama em vez de ser avisada para “apreciar com
moderação”.
Fonte: Por Kelly Spinelli, em O Joio e o Trigo
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