Gilberto Lopes: ‘A teoria da vitória’
As ofertas são as mais
variadas, todas com o objetivo de derrotar a Rússia, incluindo a desintegração
de seu Estado. A Federação Russa é composta por muitas nações, que poderiam
formar Estados separados após a derrota da Rússia, disse a primeira-ministra da
Estônia, Kaja Kallas, num debate na capital do país, Talin, em 18 de maio. É
uma das vozes mais agressivas no palco deste conflito, junto com seus colegas
dos demais países bálticos, Letônia e Lituânia. Deram o mote para um debate em
que se sente confortável, entre outros, o primeiro-ministro polonês Donald
Tusk.
Precisamos deter-nos
um minuto para revisar o cenário da guerra e refletir sobre o significado desta
proposta. Estamos num momento em que a Rússia mantém a iniciativa e avança em
todas as frentes, enquanto o Ocidente redobra seu apoio militar à Ucrânia, discute
cenários que podem envolver sua participação direta no conflito e prepara-se
para se apropriar dos recursos russos congelados na Europa e nos Estados Unidos
para financiar a Ucrânia.
Não perdem a esperança
de derrotar a Rússia. É a “Teoria da vitória”, que defendem, num artigo
publicado em maio na revista Foreign Affairs, Andriy P.
Zagorodnyuk, ministro da defesa da Ucrânia (2019-2020), e Eliot A. Cohen,
conselheiro do Departamento de Estado de 2007 a 2009, e professor de estratégia
no Center for Strategic and International Studies (CSIS), uma
instituição sediada em Washington “que procura ideias práticas para enfrentar
os grandes desafios globais”.
“O Ocidente precisa
explicitar que seu objetivo é uma vitória decisiva da Ucrânia e a derrota da
Rússia”, defendem os autores, argumentando que o compromisso de apoiar a
Ucrânia “enquanto for necessário” é uma proposta que carece de um sentido mais
preciso.
“Com o apoio e o
enfoque adequados, Kiev ainda pode vencer”, afirmam. “Ameaçar a Rússia na
Crimeia e infligir sérios danos à sua economia e sociedade será certamente
difícil”. “Mas é uma estratégia mais realista do que a alternativa de negociar
um acordo com Vladimir Putin”. “A Ucrânia e o Ocidente devem ganhar ou
enfrentar consequências devastadoras”, defendem.
Seus colegas do CSIS,
Benjamin Jensen e Elizabeth Hofmann, sugerem cinco problemas estratégicos que
devem ser resolvidos para que a Ucrânia obtenha a vitória, incluindo sua maior
incorporação na ordem econômica e de segurança ocidental.
Andriy Zagorodnyuk e
Eliot Cohen apoiam os mesmos objetivos contidos na proposta de paz ucraniana
que será novamente discutida no próximo mês na Suíça. Moscou, que não
participará desta discussão (tal como outros países, como a China e o Brasil),
considera-a desvinculada da realidade e rejeita-a de imediato.
A ideia de ambos (e
dos dirigentes políticos que tentam convencer os cidadãos europeus destas
consequências) é que, se Moscou vencer, não se deterá em sua ambição. Algo que
Moscou também rejeita de imediato. É difícil imaginar um objetivo para tais
conquistas, que não têm qualquer sentido político, econômico ou militar e que
só poderiam ser levadas adiante com o risco de provocar uma guerra nuclear.
Mas é esse o tom do
artigo de Andriy Zagorodnyuk e Eliot Cohen. De acordo com eles, a solução para
o conflito deve ser a derrota militar da Rússia. Para eles, os recursos, os
fundos e a tecnologia favorecem esmagadoramente o Ocidente. Se forem canalizados
em quantidade suficiente, a Ucrânia pode vencer.
Excluem a
possibilidade de uma resposta nuclear russa no caso de uma vitória ocidental.
Mas essa resposta nuclear pode ser completamente descartada se o conflito se
agravar, com o envolvimento direto da OTAN, como sugerem cada vez com mais
insistência, tanto o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky como outros
líderes europeus, do presidente da França aos governantes da Polônia e dos
Estados bálticos?
Parece-me evidente que
não se pode responder afirmativamente a esta pergunta sem correr um risco
enorme de levar o mundo a uma guerra nuclear. Os avisos russos sobre seus
desafios de segurança, incluindo os primeiros exercícios nucleares táticos de
21 de maio, continuarão sendo ignorados?
Embora, como veremos
mais adiante, não falte quem considere que, tanto no conflito da Ucrânia como
no de Taiwan com a China, os Estados Unidos deveriam inspirar-se nas políticas
dos anos da Guerra Fria, especialmente quando rejeitaram a pressão soviética em
Berlim, então ocupada pelas quatro potências vencedoras da Segunda Guerra
Mundial.
·
Ganhar a guerra contra
uma potência nuclear?
Para o ministro da
defesa britânico, Grant Shapps, a única forma de pôr fim ao conflito é infligir
uma derrota militar à Rússia. Grant Shapps usa o mesmo argumento de que, se
Vladimir Putin for bem-sucedido, não vai parar na Ucrânia. A vitória da Rússia é
“inimaginável e inaceitável”. Simplesmente “não permitiremos que isso
aconteça”. “É absolutamente impensável que Vladimir Putin possa ganhar esta
guerra”, afirmou numa conferência da Royal Navy, em 13 de maio.
Para o
primeiro-ministro, o conservador Rishi Sunak, “defender a Ucrânia é vital para
nossa segurança e de toda a Europa”.
Se é isso o que está
em jogo, estamos diante de uma escalada que não vai parar até essa eventual
vitória. A Inglaterra é provavelmente o país mais diretamente envolvido nas
operações militares na Ucrânia, com apoio logístico e de inteligência.
Multiplicou sua ajuda a três bilhões de libras por ano, o maior pacote de ajuda
militar alguma vez concedido pelo país. Mesmo assim, é muito menos do que os 60
bilhões de dólares recentemente aprovados pelos Estados Unidos.
No verão do ano
passado, quando todas as expectativas do Ocidente estavam depositadas numa
grande ofensiva ucraniana, o presidente francês, Emmanuel Macron, disse que
garantiriam que a Rússia não sairia vitoriosa desta guerra. Reunido em Paris
com seus colegas alemão e polonês, Olaf Scholz e Andrzej Duda, em junho de
2023, Emmanuel Macron disse que esperavam o maior sucesso possível dessa
ofensiva “para poder iniciar uma fase de negociação em boas condições”.
Como sabemos, nada
disso aconteceu e a ofensiva ucraniana foi um grande fracasso. Quase um ano
depois, em maio deste ano, com a Rússia tomando a iniciativa no campo de
batalha, o presidente francês ameaçou enviar tropas para a Ucrânia. “Se a
Rússia vencer na Ucrânia, não haverá segurança na Europa”, afirmou.
Não haverá segurança
na Europa? Por que a segurança na Europa não foi negociada com a Rússia quando
Vladimir Putin a propôs há vários anos, incluindo em seu discurso na
Conferência de Segurança de Munique, em 2007?
“Se a Rússia atingir
seus objetivos políticos na Ucrânia por meios militares, a Europa já não será a
mesma que era antes da guerra”, dizem Liana Fix, membro residente do German
Marshall Fund em Washington, e Michael Kimmage, membro visitante desse mesmo Fundo.
Não são apenas os Estados Unidos que terão perdido sua primazia na Europa, mas
também a ideia de que a OTAN (o “braço armado” que assegurou essa supremacia)
terá perdido sua credibilidade.
Em janeiro passado,
Anders Fogh Rasmussen, ex-secretário-geral da OTAN e ex-primeiro-ministro
dinamarquês, e Andriy Yermak, chefe do gabinete presidencial da Ucrânia,
afirmaram num artigo publicado na Foreign Affairs que a vitória da Ucrânia era
“o único caminho verdadeiro para a paz”. Para eles, “a Ucrânia pertence ao
coração da Europa”. Enquanto Vladimir Putin estiver ao leme do Estado russo, “a
Rússia será uma ameaça não só para a Ucrânia, mas para a segurança de toda a
Europa”. Para evitar isto, a Rússia tem que ser derrotada no campo de batalha.
A ideia é repetida uma
e outra vez nos grupos de reflexão conservadores norte-americanos e europeus.
“Esta guerra”, diz, por exemplo, um relatório preparado pela Rand
Corporation e publicado em janeiro do ano passado, “é o maior conflito
entre Estados em décadas e sua evolução terá as maiores consequências para os
Estados Unidos”.
O Relatório de
Segurança da Conferência de Munique deste ano destacou a insatisfação de parte
da comunidade internacional (das “autocracias poderosas” e do “Sul global”) com
a distribuição desigual dos benefícios da atual ordem internacional.
O relatório deste ano
afirma que a guerra da Rússia contra a Ucrânia é apenas o “ataque mais ousado”
a essa “ordem baseada em regras” que o Ocidente e seu líder, os Estados Unidos,
impuseram ao mundo no final da Guerra Fria. A preservação desta ordem é do
interesse fundamental de Washington e de seus aliados europeus.
A Rússia não foi
convidada a Munique desta vez. A guerra na Ucrânia é o centro do relatório de
100 páginas. Isso explica os bilhões de dólares investidos na Ucrânia, que não
têm relação alguma com qualquer outro investimento na solução dos grandes
problemas da humanidade.
Rasmussen e Yermak têm
razão? Eles acreditam que todos os países civilizados apoiam suas propostas.
Mas eu gostaria de sugerir outra coisa: que eles fazem parte apenas dessa
Europa que já nos deve duas guerras mundiais e que, se não lhes atarmos as
mãos, nos conduzirá a uma terceira…
·
As aspirações do
“mundo civilizado”
As opiniões citadas
refletem o que está em jogo para o “mundo civilizado”, o de Rasmussen e Yermak,
ou o de Zagorodnyuk e Cohen, o mesmo mundo que nos conduziu às duas guerras
mundiais anteriores.
Fica claro o que está
em jogo, as razões para uma escalada até agora imparável do Ocidente nesta
guerra e os riscos que isso representa para o mundo verdadeiramente
“civilizado”, que procura uma solução negociada para evitar uma possível
Terceira Guerra Mundial.
Emmanuel Macron causou
perplexidade e debate na Europa quando sugeriu, em fevereiro passado, a
possibilidade de envio de tropas da OTAN para a Ucrânia. Foi sua política de
“ambiguidade estratégica”, que deixou a porta aberta para uma confrontação
direta entre Moscou e a OTAN. Nem os Estados Unidos, nem a Inglaterra, apoiaram
a ideia… ainda. Resta saber o que acontecerá se a situação no terreno continuar
deteriorando-se para a Ucrânia.
Mas na Europa – tanto
em seus governos como na sua imprensa – só se fala de guerra. A ministra das
relações exteriores alemã, Annalena Baerbock, uma antiga “pacifista”, membro do
Partido Verde, uma das vozes mais agressivas do governo alemão, apelou ao Ocidente
para que fornecesse urgentemente mais armas à Ucrânia, numa visita a Kiev, em
21 de maio.
Os preparativos para
uma guerra com Moscou multiplicam-se. O primeiro-ministro polonês, Donald Tusk,
anunciou a construção de uma linha de defesa em suas fronteiras com a
Bielorrússia e a Rússia. Durante uma comemoração militar em Cracóvia, em 19 de
maio, anunciou que a Polônia investiria 2,3 bilhões de euros na criação de
fortificações e barreiras, bem como na adaptação do terreno e da vegetação para
esses objetivos, ao longo de 400 km de fronteira. Estas obras, afirmou,
tornariam as fronteiras da Polônia “impenetráveis” em caso de guerra.
Em que guerra Tusk
estará pensando? No mês passado, o presidente Andrzej Duda sugeriu que o país
estaria feliz em receber armas nucleares da OTAN (ou seja, norte-americanas).
Em janeiro passado, a
vizinha Estônia anunciou sua intenção de construir cerca de 600 bunkers ao
longo de sua fronteira com a Rússia, um projeto a que se juntariam a Letônia e
a Lituânia para formar a “linha de defesa báltica”.
O presidente da
Finlândia – que, juntamente com a Suécia, são os dois mais recentes membros da
OTAN – Alexander Stubb, manifestou entusiasmo pela dissuasão nuclear, afirmando
que as armas de destruição em massa são “uma garantia de paz”.
Como disse Volodymyr
Zelensky ao The New York Times, o Ocidente deveria participar na
guerra derrubando mísseis russos, dando mais armas à Ucrânia e autorizando sua
utilização para atacar diretamente o território russo.
Em sua opinião, não há
problema em envolver os países da OTAN na guerra. Esta ideia é semelhante à da
ex-subsecretária de Estado para assuntos políticos dos Estados Unidos, Victoria
Nuland, para quem chegou a hora de ajudar a Ucrânia a atacar alvos militares em
território russo. “Penso que é hora de dar mais ajuda aos ucranianos para
atacarem estas bases dentro da Rússia”, disse.
A única possibilidade
para que a Rússia retorne eventualmente à “sociedade das nações civilizadas” é
através de uma derrota que ponha fim às ambições imperiais de Putin, argumentam
Zagorodnyuk e Cohen no artigo já citado.
·
Como na Guerra Fria?
“Taiwan é a nova
Berlim”, diz Dmitri Alperovitch, presidente do Silverado Policy
Accelerator, uma organização dedicada a promover a prosperidade e a
liderança norte-americanas no século XXI. Definido como um “visionário”,
empresário de sucesso e ex-conselheiro do Departamento de Defesa e Segurança
Interna, Dmitri Alperovitch acredita que os Estados Unidos devem inspirar-se
nas políticas adotadas na década de 1960 para enfrentar os desafios
apresentados pela União Soviética na Berlim ocupada pelas potências vencedoras
da Segunda Guerra Mundial.
Que políticas foram
essas? As de defender “os interesses estratégicos norte-americanos, mesmo a um
custo inimaginável”. Em outras palavras, uma guerra nuclear. Para Dmitri
Alperovitch, trata-se de convencer a Rússia – e sobretudo a China – dessa mesma
disposição atualmente.
Parece-me, no entanto,
que a proposta de Dmitri Alperovitch carece de um elemento fundamental. A
posição estratégica das potências envolvidas neste conflito, o cenário
político, é hoje muito diferente do dos anos 1960, quando os Estados Unidos não
tinham rival. A China denunciou a pretensão de abordar estes problemas com
critérios da Guerra Fria, o que poderia conduzir a erros com consequências
dramáticas, tendo em conta o papel de cada ator no mundo de hoje, incluindo os
Estados Unidos, mas também a China e a Rússia. Taiwan não é de modo algum uma
“nova Berlim”.
·
O mundo civilizado
“Chegou o momento dos
aliados considerarem se devem levantar algumas das restrições que impuseram à
utilização das armas que doaram à Ucrânia”, disse o secretário-geral da OTAN,
Jens Stoltenberg, ao The Economist.
É mais um passo na
escalada da OTAN para enfrentar os avanços do exército russo. Mas Stoltenberg
insiste que “não farão parte do conflito” na Ucrânia. A realidade é que é a
OTAN que suporta o peso do conflito. Sem seus recursos, suas armas, seus
serviços de inteligência, sem seu treinamento das tropas ucranianas, esta
guerra não poderia continuar.
Trata-se de um novo
passo, mas com a iminente vitória russa, não se pode excluir nenhum outro, dado
o que está em jogo para o Ocidente nesta guerra. Não se trata apenas de armas.
Apesar de muitos avisos em contrário, a utilização do dinheiro russo congelado
em Bruxelas e Washington para financiar a Ucrânia parece já estar acordada.
O Ocidente aposta numa
solução militar e o mundo vê-se novamente confrontado com o risco de que a
Europa nos conduza a uma Terceira Guerra Mundial. Farão isso, caso não lhes
atemos as mãos.
Como conseguir fazer
isso? Tentando. É preciso formar uma aliança do mundo civilizado para fechar o
espaço político àqueles que impuseram ao mundo as guerras mais devastadoras do
século passado. Ambas com o objetivo de derrotar a Rússia.
Neste esforço do mundo
civilizado, o encontro entre Wang Yi, principal representante diplomático
chinês, e Celso Amorin, assessor especial do presidente brasileiro Lula, é a
iniciativa mais recente. Reunidos em Pequim na quinta-feira, 23 de maio,
emitiram uma declaração de “Entendimento Comum China-Brasil para uma Solução
Política para a Crise da Ucrânia”.
O documento de seis
pontos reafirma que o diálogo e a negociação entre as duas partes são a “única
solução viável” para a crise. Como alternativa ao encontro do Ocidente no
próximo mês na Suíça, sem a presença da Rússia, para aprovar a proposta
ucraniana, convidam o mundo civilizado – a “comunidade internacional”, nos
termos do documento – a apoiar essa proposta, uma tentativa de atar as mãos
daqueles que ameaçam conduzir-nos a uma nova guerra mundial.
Fonte: A Terra é
Redonda
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