Colégios militares: de centro de tortura na
ditadura a quartel na democracia
A poucos minutos de
carro da Praça dos Três Poderes, onde os palácios não têm grades, um complexo
público foge do padrão do célebre arquiteto Oscar Niemeyer em Brasília. Quem
passa em volta da área equivalente a 29 campos de futebol logo se depara com arames
farpados, um portão construído antes mesmo da entrada principal, dezenas de
cones e homens com uniforme camuflado abaixo de letras garrafais: “Colégio
Militar de Brasília”. A aparência de quartel se confirma dentro da maior escola
do tipo no país, onde três mil crianças e adolescentes são alertados sobre a
“vocação para a carreira militar” antes de se tornarem alunos.
Os 15 Colégios
Militares do Exército no
país ensinam valores conservadores, alinhados à Força, e que exaltam a ditadura
militar. Foi na redemocratização, contudo, que essas escolas explodiram pelo
Brasil. A ditadura foi além da captação de mão de obra militar e usou um
colégio militar como local de interrogatório, prisão e tortura de pessoas
acusadas de “subversão”.
Esta é a segunda
reportagem da série “A ditadura na sala de aula”, sobre os efeitos dos governos
autoritários para a educação brasileira. Na primeira reportagem, publicada em
31 de março, no aniversário de 60 anos do Golpe de 1964, a coluna mostrou
que no ano
passado os colégios militares passaram a adotar uma apostila da própria Força
que exalta a ditadura e ensina conceitos errados, repetindo
teses encampadas por militares golpistas.
O primeiro colégio
militar do Brasil foi inaugurado nos últimos meses do Império, em 1889, no Rio
de Janeiro, a capital federal da época. O objetivo era acolher filhos e órfãos
dos combatentes brasileiros na Guerra do Paraguai. Se cometessem indisciplina,
os jovens alunos poderiam ser presos. Se completassem o curso, seriam enviados
diretamente ao serviço militar. As aulas incluíam tiro ao alvo, história das
Forças Armadas e deveres do soldado. Uma formação militar, ainda que infantil.
Quando o Golpe de 1964
se concretizou, o Brasil tinha quatro colégios militares. Além do Rio, havia
unidades também em Fortaleza, Belo Horizonte e Porto Alegre, onde os cinco
presidentes da ditadura estudaram na juventude. Com a recente mudança da capital
para Brasília, o Exército criou o Colégio Militar de Brasília, em 1978. Também
abriu uma escola do tipo em Manaus. O de Belo Horizonte teve uma função central
para a repressão e funcionou como um centro de tortura, como mostram documentos
oficiais do Serviço Nacional de Informações (SNI), no Arquivo Nacional, e da
Comissão Nacional da Verdade (CNV).
O colégio foi
classificado como “local de torturas em 1969 e 1970” no relatório final da CNV,
concluído em 2014. Um dos documentos que baseou a conclusão traz o relato do
professor José Antônio Gonçalves, que tinha 24 anos em 1970, quando prestou
depoimento aos militares na escola. “Foi levado para o Colégio Militar, onde
foi submetido a torturas no ‘pau-de-arara’, local em que presenciou, também,
ser torturada da mesma forma a acusada Neuza”. Neuza era a socióloga Neuza
Maria Marcondes Viana de Assis, que tinha 33 anos à época. Disse Neuza em
interrogatório: “Ao ser levada para dentro do mato, dentro da área do Colégio
Militar, para ser colocada no pau-de-arara, viu quando José Antônio ali estava
amarrado apanhando com vareta nas costas”.
A coluna localizou 24
depoimentos de pessoas presas pela ditadura colhidos dentro do Colégio Militar
de Belo Horizonte, entre outubro de 1968 e abril de 1969. Nesse período foi
decretado o Ato Institucional 5 (AI-5), o mais duro ato jurídico da ditadura. A
norma deu ao então presidente, general Artur Costa e Silva, o poder para fechar
o Congresso; prender qualquer pessoa, sem a possibilidade de habeas corpus;
revogar a liberdade de expressão e reunião, entre outras arbitrariedades.
Os documentos do SNI
mostram sempre a presença de militares do Exército interpelando jovens acusados
de subversão. Eles estavam entre os mil jovens detidos, sem resistência, no 30º
Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) em Ibiúna (SP). Um dos interrogados
no Colégio Militar da capital mineira foi César Maia, à época com 23 anos. Dois
anos depois, exilado no Chile, seria pai de Daniela Maia e Rodrigo Maia,
presidente da Câmara nos governos Temer e Jair Bolsonaro. Depois da ditadura,
César Maia foi deputado federal e prefeito do Rio de Janeiro por dois mandatos
e deputado federal. Hoje, é vereador na cidade. Outro interrogado no colégio
foi Edson Gonçalves Santos, também aos 23. Nos anos 1990, foi deputado federal
e prefeito de Teófilo Otoni (MG).
Além da oposição, a
ditadura colocou o SNI para monitorar protestos pela decisão de fechar quatro
colégios militares, no fim do regime, a partir do início dos anos 1980: o de
Belo Horizonte, Salvador, Curitiba e Recife. As escolas foram fechadas em 1988,
durante o governo Sarney, na redemocratização. Em 1985, o desfile militar em
Salvador teve faixas contra o fechamento do colégio militar da cidade. O jornal
baiano A Tarde publicou uma carta aberta apelando ao então presidente, general
João Figueiredo, para manter a escola funcionando. Na capital mineira, pais de
alunos do colégio militar faziam reuniões e planejavam colher cem mil
assinaturas contra a medida. Mesmo no Colégio Militar de Manaus, a ditadura
colhia sinais de que estava em baixa nos órgãos de educação do Exército: “Sai
da frente, Figueiredo! O povo quer votar!”, diziam pichações em frente à
escola, em 1980.
Em 1989, os
brasileiros voltaram a votar para presidente depois de quase três décadas. Com
os ventos da mudança, o Exército também flexibilizou suas regras nos colégios
militares. Pela primeira vez em um século, passou a permitir alunas. A novidade
fez com que o comando do Colégio Militar de Brasília fizesse uma insólita
visita a colégios particulares em Brasília para ver banheiros femininos, com
vista a replicá-los na unidade militar. A pena de detenção, quando o aluno
ficava detido em uma sala com um militar, também foi abolida. Como não havia
mulheres no Exército, uma aluna poderia ficar a sós com um militar, o que foi
repelido pela Força. A primeira turma tinha 50 alunas, em meio a dois mil
estudantes. As vagas para civis — minoria nos colégios militares, focados em
acolher filhos de militares — só se tornaram igualitárias entre meninos e
meninas em 2000.
O Colégio Militar de
Brasília trancava com cadeados os corredores das salas nos anos 1990. Todo dia
cedo, as turmas de crianças e jovens se alinhavam em pelotão para saudar o
comandante. Em seguida, eram inspecionadas individualmente. Para a aluna com esmalte
vermelho ou em tom escuro, a acetona e o algodão estavam a postos. Nas
formaturas, era comum a escola ser visitada por generais. Era proibido andar de
mãos dadas ou abraçar outro aluno. A pena para colar nas provas era a mais dura
possível: expulsão. Para quem cometia faltas menores, era possível se redimir
participando da troca da bandeira na Praça dos Três Poderes, de grêmios
esportivos e até velório de militares.
A partir dos anos
2000, as regras foram se abrandando, mas o clima ainda era de quartel. Antes de
cada aula, cabe ao “chefe de sala”, função exercida por um aluno, dar “voz de
comando” à turma, com todos de pé, e apresentar a turma ao professor. Se fosse
um militar, como é comum, o estudante precisa dizer a patente do docente e
bater continência. Para professores civis, a continência dos alunos ainda é
obrigatória. Depois da aula, os alunos precisam arrumar a sala, em uma limpeza
superficial. Os bons alunos usam insígnias na farda, ostentando títulos e
patentes, como “cabo-aluno” ou “sargento-aluno”. O edital do ano passado para
civis trazia apenas 25 vagas. O colégio tem três mil alunos.
O projeto pedagógico
atual dos 15 colégios militares do Brasil, que vigorará até o ano que vem,
afirma que essas escolas têm “pontos de partida diferentes, para o mesmo ponto
de chegada: conduzir os alunos à aprovação para as escolas militares” ou universidades.
Entre os “valores e tradições do Exército” está o “princípio da autoridade”, e
o aluno deve ter um perfil que permita “ter despertada a sua vocação para a
carreira militar”. O material é elaborado exclusivamente no Exército, sob
responsabilidade do Departamento de Educação e Cultura. Em vez do nome do
Ministério da Educação, a capa traz a marca do Ministério da Defesa, na mesma
página em que jovens aparecem perfilados, portando espadas, como em qualquer
quartel, em qualquer época.
Procurado, o Exército
disse que não há projetos para a criação de mais colégios militares no país. A
Força afirmou que os colégios militares têm orçamento anual de R$ 27,7 milhões,
e não detalhou o valor gasto com as escolas durante a ditadura militar. A
coluna solicitou uma conversa com os diretores de Educação Preparatória e
Assistencial e do Departamento de Educação e Cultura do Exército. Não houve
resposta.
¨
Qual o papel da escola
na formação cidadã? Por Vinícius De
Andrade
É incrível como
situações de catástrofes
extremas como a que está acometendo o Rio Grande do
Sul são capazes de mostrar o pior e o melhor do ser humano.
Houve roubos, furtos,
violência e situações seríssimas de assédio dentro dos abrigos, mas creio que
não faz sentido eu focar a coluna neste recorte.
A razão é que a
quantidade de pessoas cujo lado positivo
foi aflorado é a maioria esmagadora. Tenho 29 anos e confesso
nunca antes ter visto uma situação mobilizar tantas pessoas como o caso das
enchentes no RS. Até minha mãe, que nunca foi socialmente engajada, estava
recebendo doações de roupas para enviar ao estado.
Tivemos agências de
Correios, mesmo as menores, lotadas de doações. Tivemos artistas mobilizando
suas redes para arrecadar fundos e doações. Tivemos artistas se engajando em
publicidade gratuita para ajudar empresas do Rio Grande do Sul. Tivemos milhões
de anônimos doando dinheiro, roupas e alimentos. Tivemos a imprensa cobrindo
fortemente. Tivemos empresas doando boas quantias. Tivemos pessoas, anônimas e
famosas, se deslocando para o estado e doando seu tempo e energia.
A lista é grande.
Poderia, sem muito esforço, gastar todos os caracteres da coluna elencando
mobilizações, das mais diversas formas e viabilizadas pelos mais diversos
agentes.
Tivemos. Temos. Será
que continuaremos tendo? Qual o papel da escola e da formação cidadã para não
permitirmos que a mobilização atual seja apenas um caso pontual?
Não quero vir aqui e
problematizar as motivações de quem doou, ajudou e se mobilizou. Não duvido que
boa parte tenha sido motivada pelo engajamento das redes sociais, mas pelo
menos o fez. Uma vez aprendi com um professor sobre tentar não problematizar
muito sobre as motivações, mas, sim, focar nas ações. Concordo com ele, e a
lógica se estende para o caso do RS. O importante é que as pessoas ajudaram e
estão ajudando. Não cabe e não trará bem algum inferir hipóteses sobre as
motivações.
·
E depois que a comoção
inicial passar?
No entanto, cabe a
preocupação: como será depois que toda a energia e comoção do momento acabarem
ou diminuírem? Indo além: seremos capazes de nos mobilizarmos também em
outras pautas, agendas e problemáticas? Como a escola pode trabalhar isso?
Meu ponto de partida
é: o povo brasileiro mostrou o quanto é poderoso e exitoso quando foca em algo.
Mostrou o quanto é capaz de, dentro do possível, esquecer religião, política,
diferenças e simplesmente focar na benevolência, na empatia, na solidariedade e
na responsabilidade social.
Me chamem de
pessimista, mas temo que, depois que a poeira baixar, voltemos para o mesmo
modo de agir anterior, em que o egoísmo maquiado de correria impera e não deixa
qualquer espaço para que a solidariedade e a empatia aflorem.
Não podemos permitir
isso. É uma pena que tenha sido necessária uma catástrofe para mostrar
que somos capazes de agir diferente. Entendo que as pessoas, no dia a dia,
não sejam necessariamente do mal ou propositalmente egoístas.
Para sobreviver com
certa dose de saúde mental, nos moldamos a não nos preocupar mais com os
mendigos quando nos pedem algo na rua, a não pensar muito sobre aqueles
que passam fome e sofrem violência. E, sejamos honestos, ao receber um pedido
de ajuda nós instintivamente buscamos razões para não ajudar. Para não nos
sentirmos mal com isso, temos como hipóteses que outros irão ajudar ou
simplesmente nos convencemos de que não há nada que possamos fazer.
Não é verdade.
E o caso atual mostra isso de forma muito clara. Somos capazes de
muito mais do que imaginamos. Não podemos nos permitir nos engajarmos apenas
quando algo explode e chega no nível da situação atual no RS ou quando
alguma pauta ou caso viraliza nas redes sociais.
E as pautas que não
viralizam? E as problemáticas que, embora importantes, ainda não chegaram ao
nível da do estado sulista? Quem pensará nelas? Não merecem mobilização?
·
O papel fundamental da
escola
Para isso,
na minha visão, o caminho é via educação e através das escolas. A educação
não pode se restringir apenas a ensinar conteúdos e decorar fórmulas. Que tipo
de formação cidadã está ocorrendo nas escolas? Como estamos preparando nossos
jovens para atuarem como cidadãos na sociedade? Indo além: há algum tipo de
formação cidadã nos currículos escolares?
Essas provocações não
são triviais. Os jovens precisam ser ensinados e provocados sobre a
responsabilidade que têm na construção de uma sociedade mais justa e menos
desigual. Isso pode ser benéfico tanto para a prevenção de situações como a que
está ocorrendo, quanto para a diminuição de desigualdades.
Em relação à
primeira: como ocorre o ensino do meio ambiente? Os estudantes gaúchos
conheciam as questões de estrutura, arquitetura e hidrografia do estado?
Paralelamente a isso, deveria haver uma formação sobre os três
Poderes e a função de cada um. Eu confesso: fui aprender isso durante a
graduação. É uma pena. Sabem quem devem cobrar? Qual órgão tem qual
responsabilidade?
Não é exagero: se
houvesse a preocupação acima dentro do currículo das escolas, a catástrofe
poderia ter sido evitada. Os gaúchos, munidos de mais informação e educação
cidadã, poderiam ter sido agentes ativos na prevenção. Não estou os culpando,
mas dizendo que há margem para que as escolas trabalhem esse tipo de conteúdo e
informação com seus alunos.
Além disso, a formação
cidadã também pode ajudar a fazer com que as pessoas não se engajem apenas com
pautas virais, mas que tenham culturalmente a formação de mais empatia e
responsabilidade social. É instintivo buscar razões para não ajudar, mas vimos como
podemos ser diferentes.Todos dizemos querer um mundo mais justo e menos
desigual, mas precisamos entender nossa responsabilidade para que ele um dia
seja uma realidade e não apenas um sonho.
Esperar que essa
virada de chave ocorra naturalmente é, no mínimo, bem ingênuo. Ela precisa
fazer parte de um projeto e através de uma política pública. A educação pode
ser um agente importantíssimo nesse processo e deve ser utilizada.
Fonte: Metrópoles/Deutsche
Welle
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