Renato Souza: Negacionismo climático não é
sobre ciência, é sobre ideologia
Muito se tem dito que
a tragédia que se abateu sobre o Rio Grande do Sul neste mês é fruto, dentre outras coisas, do negacionismo
climático e ambiental. Inclusive por governantes, talvez com pretensão de
minimizar suas responsabilidades pela calamidade que tomou conta do estado. Mas
nem sempre se entende bem o que é o negacionismo climático. É provável que
muitos pensem até que os negacionistas sejam negadores da ciência, que tenham
críticas epistemológicas à ideia de “verdade científica”. Só que não!
Não há nada de errado
em refutar as certezas científicas, afinal, a própria ciência se transforma e
evolui exatamente porque é capaz de criticar a si mesma. É só observar como as
ciências médicas e da nutrição estão revendo constantemente as recomendações
sobre o que devemos comer para termos boa saúde. Além disso, a crítica à ideia
de “verdade científica” ou de “certeza científica” esteve presente no
pensamento de praticamente todos os filósofos da ciência nos últimos 150 anos,
das mais diversas correntes teóricas. Por isso, somente cientistas ingênuos ou
dogmáticos realmente acreditam em verdades ou certezas científicas definitivas.
Ocorre que a pretensão
dos negacionistas não é fazer uma refutação filosófica ou teórica das certezas
científicas. Eles não têm nenhuma crítica legítima e fundamentada à ciência,
nem nutrem qualquer querela com o conhecimento científico em geral, quanto mais
com a tecnologia. Ao contrário, geralmente são pessoas e grupos que se servem
fartamente de conhecimentos científicos e das tecnologias modernas geradas por
eles. A questão deles, portanto, não tem a ver com a ciência em si, tem a ver
com ideologia, política, economia, e com dinheiro e poder.
O negacionista das
vacinas, por exemplo, não deixa de fazer quimioterapia se tiver câncer, mesmo
que o método científico que produza a vacina seja o mesmo que produz o
quimioterápico. Também não deixa de olhar a previsão meteorológica quando vai
plantar na lavoura, nem quando vai colocar o barco no mar, mesmo que as
ciências da previsão do tempo e do clima usem os mesmos métodos.
Então, os
negacionistas não negam qualquer ciência: eles negam aquela que tenha alguma
implicação coletiva ou em políticas públicas, mas não aquela que eles podem
usar livremente e individualmente. O que eles rejeitam é que a ciência dite
estratégias coletivas de enfrentamento de problemas coletivos, e que, em nome
dessas estratégias, ela ameace seu modo de vida, seu conforto financeiro ou sua
liberdade econômica. O negacionismo climático é uma forma de reação contra a
intervenção do Estado e dos organismos multilaterais na economia e nas formas
de produção e de vida das pessoas para fazer frente ao aquecimento global e às
mudanças climáticas.
É certo que
catástrofes climáticas, como as que têm ocorrido no Rio Grande do Sul, têm
feito o negacionismo declinar a ponto de se tornar impopular, e por isso muitos
negacionistas têm revisto suas posições. Porém, mesmo “ex-negacionistas” só
chegam até o limite de reconhecer as causas antrópicas e as consequências
dramáticas das mudanças climáticas, mas, em geral, não abandonam o combate e a
obstrução às políticas internacionais e locais contra o aquecimento global e a
destruição ambiental.
E por que isso
acontece? Exatamente porque o negacionismo não é sobre ciência ou fatos, é
sobre ideologia e política, e sobre interesses econômicos e financeiros
ameaçados pelas medidas de redução de CO2 e de proteção ambiental.
No fundo, a ciência é
só a vítima que estava no caminho.
A origem do
negacionismo climático e ambiental é remota, mas está invariavelmente ligada a
movimentos conservadores e de extrema direita, de luta por direito à
propriedade privada da terra e à desregulamentação da economia. E, nos Estados
Unidos, está ligada à descentralização para os estados da jurisdição sobre meio
ambiente e acesso às terras, para favorecer leis mais brandas em estados
controlados por Republicanos, geralmente do Sul. Mais recentemente o
negacionismo climático tem sido patrocinado por indústrias petrolíferas,
diretamente interessadas em preservar a irrestrita exploração de combustíveis
fósseis.
No Brasil, o negacionismo está associado, sobretudo, aos interesses do agronegócio e
atividades extrativistas, com vistas a deslegitimar políticas ambientais,
expandir a fronteira agrícola por meio do desmatamento e desregulamentar o uso
de áreas de preservação, tudo pela manutenção e expansão do modelo de produção
primária agroexportadora.
O real alvo do
negacionismo, por vezes, aparece já no nome de algumas de suas obras e agentes,
como o livro Planeta azul, não verde: o que está em perigo, o clima ou
a liberdade?, do ex-presidente tcheco Václav Klaus; ou o portal de
notícias Liberdad Digital; e o movimento Americans for
Prosperity, todos de linha conservadora neoliberal, que veem nas políticas anticarbono e antiemissões graves
ameaças à liberdade econômica, à livre iniciativa e ao direito de propriedade.
A tese dos
negacionistas é de que a ciência do clima é uma grande fraude “urdida por
ambientalistas anti-industriais, baseadas em teorias assustadoras de cientistas
em busca de financiamento, e difundida com a cumplicidade de políticos e meios
de comunicação”, como afirma o britânico Martin Durkin no seu
documentário A grande farsa do aquecimento global. Uma parte do
argumento negacionista é dirigida contra o que eles chamam de “globalismo”, que
seria, resumidamente, uma agenda internacional de esquerda capitaneada por
organizações multilaterais como a Organização das Nações Unidas (ONU), que visa
impor uma padronização mundial da cultura, da organização social, dos modos de
vida e das formas econômicas, com evidente ameaça à liberdade econômica e à
sobrevivência das culturas e dos modos de vida nacionais.
Por esta razão é
que o antiglobalismo é uma pauta constante nos nacionalismos de
extrema-direita.
No Brasil, também, as
vozes negacionistas já foram muito eloquentes, como o autointitulado príncipe,
Dom Bertrand de Oliveira e Bragança, autor do livro “Psicose Ambientalista”; o
ideólogo Olavo de Carvalho, para quem o negacionismo climático é uma arma na
luta contra o comunismo internacional e seu projeto de dominação ambiental
contra a civilização cristã; e mesmo alguns membros da comunidade científica,
como Ricardo Felício e Luiz Molion.
Mas foi no governo do
ex-presidente Jair Bolsonaro que ele ganhou o primeiro escalão do poder, com o
ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, que disse sobre o aquecimento
global e o desmatamento no Brasil, dentre outras coisas, que havia muito alarmismo
sobre o assunto, e que “não acreditava na ciência brasileira porque a ciência
brasileira estava toda aparelhada pela esquerda contra os americanos”. Já para
o ex-chanceler Ernesto Araújo, o “climatismo” é uma conspiração global que vem servindo para
justificar o aumento do poder regulador dos Estados sobre a economia e o poder
das instituições internacionais sobre os Estados nacionais e suas
populações.
Nas palavras de um
integrante do Itamaraty à época do ministro Araújo, referindo-se ao teor de um
encontro em que havia participado nos Estados Unidos, no The Heartland
Institute: “O debate não é sobre mudança do clima, nem sobre dióxido de
carbono. Não é sobre clima, nem ciência. É sobre socialismo contra
capitalismo".
Então, basicamente o
negacionismo climático é uma ideologia de extrema-direita que enxerga nas
políticas globais anticarbono uma conspiração de esquerda para promover um
governo global, com retorno ao planejamento central por outras vias, com
restrições à autonomia das nações, à liberdade econômica, à livre iniciativa e
ao direito de propriedade, e com comprometimento do modo de vida da civilização
ocidental judaico cristã. Por isso, ele tem várias facetas ideológicas: é
economicamente neoliberal, é ideologicamente nacionalista e “antiglobalista”, é
culturalmente reacionário e é politicamente de extrema-direita, com forte
presença do pensamento anticomunista entranhado em seu discurso.
Não sendo um movimento
científico ou anticiência, não se espera combater o negacionismo com mais
conhecimento científico ou mais informação científica. Mesmo os fatos e a
sucessão de tragédias que tem ocorrido só tem potencial de dobrar a percepção
negacionista das mudanças climáticas até certo ponto, mas não afetará a sua
disposição em obstruir políticas globais e locais de defesa do meio ambiente e
de combate ao aquecimento global. Por isso, ele precisa ser vencido é
politicamente, e se faz isso desafiando este combo ideológico que sustenta o
negacionismo: o neoliberalismo, o nacionalismo, o reacionarismo e o ethos político
anticomunista anacrônico e descabido herdado da Guerra Fria.
¨ Porto Alegre poderia ouvir holandeses sobre gestão de águas, e
não se limitar a consultoria. Por Eugênio Bortolon
A “sábia” prefeitura
de Porto Alegre colocou a carreta na frente dos bois e já está com parceria
alinhavada com a empresa Alvarez & Marsal para a gestão de recursos financeiros, regularização das
operações, estruturação do plano e gestão do comitê de crise por causa das
enchentes que devastaram a cidade nos últimos 30 dias. Por que a pressa? A
notícia é meio velha, de 13 de maio, mas foi bombardeada e, até onde se sabe,
continua de pé. A prefeitura é um mistério na gestão de recursos. Foi
negligente, liberou a cidade para os espigões, para o desmatamento irregular,
não investiu em bombas, diques e toda sorte de equipamentos para evitar a tragédia
na cidade.
Por que não
consultaram outras empresas? Por que não foram atrás dos holandeses, talvez os
maiores especialistas do mundo no controle de águas? Desde o século 18, eles
são craques na matéria. Foram evoluindo e hoje, aparentemente, são quase
imbatíveis no assunto. Os desígnios da natureza são misteriosos, mas que eles
“manjam” da questão é indiscutível.
A Holanda, claro, é
mais domável do que o Rio Grande do Sul. Tem apenas 41.850 km² e se localiza na
planície norte da Europa. É sete vezes menor que o nosso estado, que tem
281.748 km². O país tem 26% do território abaixo do nível do mar, enquanto 60%
teriam grandes riscos de enchentes frequentes se não houvesse algum tipo de
intervenção humana. Por isso, é chamado de Países Baixos. O ponto mais alto,
Vaalserberg, na fronteira sudeste, localiza-se a uma altitude de 321 m.
Os terrenos baixos são
chamados de pôlderes, planícies que são protegidas continuamente de alagamentos
por meio de diques e dessecamento, visando a sua utilização na agricultura ou
como moradia. O sistema de pôlderes é composto por diques (muros), reservatórios,
dutos e bombas. Quando ocorrem chuvas de grande intensidade, os diques fazem o
trabalho de isolamento da água, e o volume é coletado numa espécie de piscina,
que fica numa área próxima da estrutura.
Para provar que só
Porto Alegre é obtusa em ampliar seus horizontes de pesquisas nesta área, basta
dizer que Recife, com seus rios Capibaribe e Beberibe, que desembocam no mar na
cidade, foi atrás dos especialistas holandeses em desenvolvimento de gestão da
água para discutir soluções para melhorar a drenagem e reduzir os efeitos de
desastres provocados por temporais e pelo aumento do nível do oceano. Já estão
lá trabalhando e, quem sabe, conseguirão resolver os eternos problemas da
capital pernambucana.
Recife agiu com
sensatez. Não foi difícil. Por que o prefeito Sebastião Melo também não amplia os seus horizontes e consulta gente que
sabe das coisas, e não meros especuladores ou consultores? Não se sabe o que se
passa na cabeça do alcaide.
Conforme Willem van
Dijk, guardião dos diques de Flevoland, província holandesa que fica a mais de
3 metros abaixo do nível do mar, são enviados dezenas de homens todos os dias
para combater possíveis ameaças à mais avançada rede de proteção contra tempestades
do planeta. Ali não há perdão para negligência, omissão ou faz de conta. Todos
os dias eles pensam na segurança do país contra as águas. Não temem investir na
vida das pessoas. E aqui? Nada. DMAE (Departamento
Municipal de Água e Esgotos) deixou no banco mais de R$ 400 milhões e não
investiu, nesta área, nenhum centavo em 2023.
A missão da equipe de
van Dijk é matar ratos-almiscarados, utilizando gaiolas de metal e armadilhas
com cenouras. Os caçadores dos roedores de Flevoland realizam um serviço
simples, mas vital para o eficiente sistema de defesa holandês, composto por
técnicas de controle de enchente desenvolvidas desde a Idade Média e por
futurísticas estruturas de aço operadas por computadores, que se movem para
controlar as enchentes causadas pelo aumento no nível da água após as
tempestades.
Conforme o Trust
Project, um consórcio internacional envolvendo aproximadamente 120
organizações de notícias que trabalham para maior transparência e
responsabilidade na indústria global de informações, as autoridades holandesas
e especialistas em hidrologia consideram fundamental trabalhar para evitar
cheias, enchentes, alagamentos, do que agir depois que as desgraças ocorrem.
Após centenas de anos
na beira do abismo, os holandeses passaram a ter uma clara consciência das
consequências das enchentes e da necessidade de preveni-las em um país onde
dois terços da população, incluindo a maior parte dos habitantes de Amsterdã,
Roterdã e Haia, as maiores cidades do país, vivem muito abaixo do nível do
mar.
“Sabemos que se as
coisas derem errado, pagaremos durante décadas”, afirmou Wim Kuijken, o
comissário delta. Por essa razão, a Holanda foi capaz de mobilizar enormes
recursos para antecipar e minimizar o risco de enchentes, afirmou.
Aqui no Rio Grande do
Sul, durante décadas, só se pôs o dinheiro debaixo do tapete para evitar obras
enterradas, mas que têm grande utilidade para saneamento e cheias.
O Trust
Project diz que, após as grandes enchentes de 1916 e 1953 na Holanda –
nesta última até a rainha Juliana, a rainha da época, colocou o pé na lama para
ajudar as pessoas –, o país resolveu agir com mais força, reafirmando sua
história e tradição de conquistar e aumentar seu território avançando sobre
grandes pântanos, criando elaborados mosaicos de diques que, se fossem
colocados lado a lado, teriam 80 km de extensão. Começou com o reforço de
diques e a construção de uma série de barragens que protegeriam estuários
alagadiços e braços de mar, diminuindo o litoral e reduzindo drasticamente as
áreas expostas a enchentes causadas por tempestades. Além disso, barragens
móveis foram construídas em locais que não poderiam ser fechados por conta do
intenso tráfego de navios, como o estuário que leva ao porto de Roterdã.
Em resposta à enchente
de 1953, que matou mais de 1,8 mil pessoas, o Estado criou regras duras,
exigindo que as barragens contra enchentes fossem fortes o bastante para
resistir a tempestades tão fortes que, segundo as projeções de computador, só
ocorreriam a cada 10 mil anos.
“Ou matamos os ratos,
ou deixamos que a água nos mate”, afirma Peter Glas, presidente da Associação
Holandesa das Autoridades Hídricas Regionais – também conhecidas como
"Waterschappen", ou "conselhos hídricos" em holandês,
grupos eleitos pelas comunidades locais desde o século 13, com autonomia para
cobrar impostos. “É preciso ter consciência. Não adianta dificultar a
mobilização de verbas. Ser prevenido evita desastres com muita antecedência”.
Porto Alegre fez exatamente o contrário. Quer privatizar o DMAE e deixar
recursos enjaulados em bancos.
Ainda que o país tenha
investido pesado no controle de enchentes, Kuijken, o comissário delta, afirma
que isso não é desperdício de verbas, pois envolve cuidadosos cálculos de
custo-benefício. O governo holandês gasta atualmente cerca de 1,3 bilhão de dólares
por ano com o controle das águas; além disso, os conselhos hídricos gastam
outros milhões com a manutenção de diques e canais, com a caça aos
ratos-almiscarados e com o bombeamento de água das "polderland" -
antigos pântanos, lagos e áreas de mar que se tornaram habitáveis com a ajuda
de barragens, diz o The Trust Project.
Investimentos de
capital em grandes projetos de construção acrescentam mais alguns bilhões à
conta. O Plano Delta, um programa de construção iniciado após a enchente de
1953, custou cerca de 13 bilhões de dólares e demorou quatro décadas para ficar
pronto. Construída em Roterdã para combater enchentes causadas por tempestades,
a Maeslantkering é uma barragem móvel cuja extensão equivale a duas torres
Eiffel. O projeto ficou pronto em 1997 e, tirando os testes, só precisou ser
utilizado uma vez, em novembro de 2007.
A Holanda pesquisa
permanentemente e faz tudo que pode nesta área. Há poucos anos inaugurou também
o Centro de Gestão Hídrica. A nova unidade central de controle foi equipada com
uma série de computadores que exibem dados atualizados sobre os níveis da água,
a força dos ventos e outras ameaças potenciais às barragens construídas para
afastar o Mar do Norte, o Reno e três outros importantes cursos d’água que
cruzam a Holanda. Desde 1953, as barragens holandesas aguentaram praticamente
tudo, apesar da tragédia que foi evitada por pouco, no início dos anos 1990,
levando à evacuação de 250 mil pessoas e de quase o mesmo número de vacas e
porcos.
Kuijken afirmou que o
pensamento holandês evoluiu e existem novas prioridades e métodos para
"aumentar as barreiras de uma forma natural". O Estado está
investindo em um plano chamado "Espaço para os Rios", que visa
diminuir as enchentes, dando vazão para as águas. No ano passado, o país gastou
cerca de 100 milhões de dólares para assorear 20 milhões de metros cúbicos na
costa ao norte de Roterdã, promovendo a formação de uma barreira protetora.
Isso é ampliar a proteção, e não o que se faz por aqui, onde até o Muro da Mauá
é visado para demolição.
Todas estas obras são
financiadas por impostos independentes, destinados exclusivamente ao setor de
contenção de águas. Para conter esse avanço, o governo holandês aprovou em 2019
um programa que deve investir 18 bilhões de dólares na melhoria de diques até
2033 –sem contar 1,3 bilhão de dólares anuais para manutenção do sistema já
existente.
É óbvio que a nossa
realidade é diferente da holandesa. Eles têm dinheiro de sobra, nós não. Eles
têm um pouco mais de lucidez do que nós nesta questão das águas. A luta deles é
histórica. A nossa é bem recente, incluindo a enchente atual e a de 1941. Mas
ainda é possível abrir o leque e consultar os holandeses, e não ficar restrito
apenas à questionável Alvarez & Marsal. Consultar variadas alternativas é
tentar resolver o problema com bom senso, astúcia e inteligência.
Fonte: Brasil de Fato
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