Débora F. Lerrer: O paradoxo de Porto Alegre
Desde adolescente
sabia que Porto Alegre poderia ser inundada. Criança, já havia visto a rua na
frente da minha casa, no Jardim do Salso, virar um rio com chuvaradas. O
estranho é os administradores recentes da cidade não saberem disso e não
tomarem qualquer medida para impedir ou minimizar este impacto.
Em janeiro deste ano,
40 minutos de chuva em Porto Alegre foram suficientes para encher ruas, acabar
com a luz e água da cidade em vários pontos por quase três dias. Minha mãe, que
mora num bairro central, o Rio Branco, ficou sem luz por dois dias e meio. A
chuva foi na terça à noite e só na madrugada de sexta a luz voltou. Uma amiga
que estava conosco no bar, onde vivenciamos a chuva e a falta de luz, quase se
afogou dentro de seu carro. Íamos para outro lado, mas conseguimos voltar para
resgatá-la. O porteiro do prédio em que ela se abrigou hesitou em abrir o
portão para ela, que estava ensopada, mas o síndico permitiu. Seu carro ficou
boiando na avenida Érico Veríssimo e ela trocou de roupa na casa da mãe sem luz
e passou a madrugada num posto de gasolina, esperando a água baixar para
resgatar o carro, que poderia ser saqueado. Se ela e se seu irmão não
estivessem lá, ele efetivamente teria sido.
Há pouco mais de 20
anos, Porto Alegre era a meca da esquerda. Sua inovação política chamada
“orçamento participativo”, articulou partidos, movimentos sociais e
organizações não-governamentais da esquerda mundial para se reunir e afirmar
que “Um outro mundo é possível”. Em suma, o mundo não era uma mercadoria. O
Fórum Social Mundial (FSM) foi realizado durante três anos em Porto Alegre como
uma frente de resistência ao Fórum de Davos, encontro que reúne anualmente
ricos, empresários e governante nesta cidade suíça que foi palco do célebre
romances de Thomas Mann, “A Montanha Mágica”. O livro refletia o debate
político que antecedeu a 1º Guerra Mundial. Thomas apoiou a entrada da Alemanha
na guerra. Brigou com o irmão Heinrich, também romancista, que era contra. E
talvez muito do que aparece nas páginas deste livro seja este debate entre os
irmãos, filhos da brasileira Julia Mann, nascida em Paraty, mas carregada para
ser criada na Alemanha, quando sua mãe brasileira morreu no parto do quinto
filho.
O último FSM ocorreu
quando Porto Alegre estava em sua 4º gestão municipal do Partido dos
Trabalhadores. Foram, ao todo, 16 anos no poder. Desde então, o PT não voltou
mais a governar a cidade. Uma amiga me contou que a direita combinou entre si
de nunca mais deixar a esquerda dirigir a cidade. Não sei bem. Mas certamente,
naquela época, as comportas e bombas de água do Guaíba recebiam manutenção. Era
uma administração muito ciosa. Na primeira gestão do Olívio Dutra, a única que
acompanhei vivendo lá, toda obra de esgoto que faziam recebia uma placa “Obra
da Administração Popular”. Era um pessoal jovem e sério. Mas manejar o poder e
fazer política são artes difíceis.
Depois estes Fóruns
Sociais Mundiais foram para outros lugares, como Mumbai, na Índia, Belém, mas o
fato é que o mundo se endireitou bastante desde aquela época, quando as coisas
já não eram nada fáceis. Mas o último Fórum em Porto Alegre, se não me falha a
memória, foi em 2003, logo que Lula assumiu o poder. Ele deu um discurso no
anfiteatro ao ar livre, emoldurado pelo pôr do sol do Guaíba e se foi para
Davos.
Desde então, Porto
Alegre só tem sido governada pela centro-direita que flerta constantemente com
o bolsonarismo. Não sei se a direita é tão articulada ou a esquerda é
incompetente na briga. Por que é sempre uma luta. A esquerda quer gastar mais
dinheiro com o público. A direita quer pagar menos impostos e quer menos
Estado. Considera este um ente ineficiente, mal administrado, caro. O que vemos
agora é que são as instituições públicas, associadas a instituições da
sociedade civil , como os Correis, as igrejas e as escolas, e a pessoas com
espírito de serviço, voluntárias, que salvam a população de situações de
calamidade como a que vemos hoje no Rio Grande do Sul. Mas quem tem condições
de coordenar, fazer o trabalho de articulação é o Estado. E quem tem tropa e
mão de obra especializada para mobilizar rápido é o exército, a defesa civil, a
polícia. É um conjunto de atores complementares.
O que me parece é que
as experiências do FSM depois de Porto Alegre ficaram restritas à bolha da
esquerda. Mas o jogo seguiu sendo jogado no Fórum de Davos. E hoje temos Porto
Alegre submersa, assim como todas as suas grandes inovações políticas.
¨ Rio Grande do Sul: dialética do lugar e do espaço. Por Luiz
Marques
Italo Calvino,
em As cidades invisíveis, a partir de uma personagem real percorre
os meandros do autoconhecimento. Aquilo que fomos ou não no passado é
encontrado em cidades que estivemos in situ ou soubemos por
estórias contadas ou, inclusive, deixaram de existir. O imperador mongol, que
pede a Marco Polo para descrever por onde andou em seu reino, recupera as urbes
conquistadas por intermédio da memória e da palavra do viajante veneziano.
“Quem comanda a narração não é a voz: é o ouvido”. As poleis e
as pessoas revivem nas narrativas que forjam a sua existência no mundo.
Nesse contexto fluído,
“Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das
pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de
percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizado: tentar saber quem
e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo”. A extrema direita
adota a alternativa camaleônica com a promoção do lucro acima das necessidades
da comunidade. Os progressistas resguardam os ideais de convivência, na
dialética do lugar e do espaço que abrange o local, o regional e o global. As
análises totalizantes do que atinge a cidade potencializam a eficácia
prático-crítica das eventuais correções de rumo, além de permitir o
planejamento das lidas de reconstrução abertas à participação e a inteligência
social.
O lugar carrega um
elemento de identidade para os trabalhadores, mais do que para os detentores do
capital. A internacionalização da economia e o processo de desindustrialização
revelam o óbvio, a burguesia não carece de um habitat para
chamar de seu. O pertencimento tem conotação no afeto do trabalho. De repente,
porém, o que era sólido desmancha na estiagem ou na enchente e, à demanda pela
diversidade social e humana, a democracia soma uma demanda pela diversidade
ecológica. Se a temperatura de Gaia prosseguir aumentando, o Antropoceno será a
despedida melancólica de vasta quantidade de biomas com seres da fauna e da
flora; e ainda do iludido Homo demens, ex-sapiens.
O momento exige um
exame amplo de caráter anticapitalista e antineoliberal, para elevar o nível de
conscientização sobre o mentor da hecatombe ambiental. O menoscabo tradicional
das “elites” com a natureza cobra, agora, o preço da insanidade com uma desterritorialização
forçada. As cruzes nos cemitérios reportam os vulneráveis empurrados para a
encosta de morros, a beira de lagos, rios e riachos; para não evocar os
inúmeros empreendimentos de luxo em aterros, com vista panorâmica.
·
Negacionismo &
mimetismo
Nos anos setenta e
oitenta, uma rejeição ao industrialismo autonomizou o pensamento verde. Os
noventa ecoam a reflexão do “jovem Marx” sobre o meio ambiente. Em um terceiro
estágio, o materialismo histórico é entendido como a base teórica da crítica
ecológica. Em 2001, na esfera política, o Manifesto Ecossocialista
Internacional, de Michael Löwy e Joel Kovel, exprime o aceite do tema pelo
“Marx maduro”. A propósito, lê-se no livro II de O capital: “O
desenvolvimento da civilização e da indústria em geral mostrou-se sempre tão
enérgico na destruição de florestas que tudo o que esse mesmo desenvolvimento
tem feito para a conservação e a produção de árvores é absolutamente
insignificante”. Karl Marx, pois, é um precursor do ambientalismo. A luta
contra a mudança climática no lugar está entrelaçada com a luta a favor de
prementes mudanças, no espaço.
Entre nós, a
destruição foi ao paroxismo na ascensão do fascista à presidência. No Rio
Grande do Sul, sem escutar entidades ambientalistas e universidades, o
governador Eduardo Leite altera 480 normas ambientais da legislação estadual e
fragiliza a fiscalização para adequar-se aos ditames do bolsonarismo. Em
entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, alega a premência de
outra agenda à época do sinistro, a questão fiscal. Entre tomar as providências
cabíveis e acatar os ajustes que impedem investimentos para garantia do futuro
das gerações, jacta-se da opção que infernizou conterrâneos.
O prefeito de Porto
Alegre Sebastião Melo ignora o cataclismo há seis meses no Vale do Taquari e
negligencia a manutenção dos portões do Muro da Mauá, diques e casas de bombas.
Após negar as falhas preventivas na evolução do desastre, o alcaide cai em contradição,
e suspira: “Vou ter que trocar todos os portões de contenção”. A autocrítica é
insuficiente para apreender o fenômeno climático. A Prefeitura não pôs na peça
orçamentária do município nenhum centavo para “melhoria no sistema contra
cheias”, conquanto o DMAE (Departamento Municipal de Águas e Esgotos) apontasse
R$ 428,9 milhões em caixa; decerto o dote para a privatização. Para o geólogo
Rualdo Menegat (UFRGS), “Uma cidade inundada a vida inteira não pode ser pega
de surpresa em uma inundação. Mesmo que haja uma catástrofe, algumas coisas têm
de funcionar, como os hospitais”.
O governador (PSDB) e
o prefeito (MDB) atuam em jogral, quando contratam aquela consultoria
financeira da Alvarez & Marsal para reerguer o lugar, de olho na
monetização e gentrificação de territórios para atender a cobiça imobiliária e
especulativa. O resultado é o flagelo: o negacionismo de conveniência para
evitar o conflito de lealdade com o campo político privatista, associado ao
mimetismo dos colonizados. Em ambas as circunstâncias, o espaço determina as
regras como se a sociabilidade urbana fosse uma mera fração contábil, sujeita
ao princípio das desregulamentações. O “crime de responsabilidade”, que não
havia no impeachment da presidenta honesta, sobra nas
incompetências do atraso que rezam pela cartilha do livre mercado às expensas
do bem-estar geral.
·
A sociedade
ecossocialista
Os cacoetes
negacionista e mimético dos centros de poder transnacional se convertem na
defesa dos predadores, as finanças e o agronegócio. O lugar é preso na teia dos
interesses que o colonizam. A intelligentsia da sociedade com
pesquisas e sugestões é retirada das decisões políticas. Não espanta. Países
com calamidades na Europa, Ásia e África também preferem promessas de
sustentabilidade, em vez de entregar o mandante dos crimes socioambientais: o
capitalismo na fase neoliberal, feito um novo Titanic. A covardia intelectual e
moral dos dirigentes submissos à empiria do imediatismo, sem estratégia,
perpetua as torturas. Espalhar a notícia não é terrorismo, senão um realismo
com o choque iminente no iceberg que inunda nossa esperança.
Valha-nos o reformismo revolucionário.
A administração
federal, cuja composição policlassista expressa a união de correntes
sociopolíticas pela democracia e contra o fascismo, tem conseguido evitar o
brete em que tenta metê-la o rentismo alavancado pelo Banco Central e o
conservadorismo majoritário do Congresso. Embora a mídia corporativa pressione
pela continuidade dos juros altos e para bloquear ações solidárias do Estado
participativo, o governo Lula implanta políticas comprometidas com a nação.
Sua presença forte na
tragédia sulista sinaliza uma liderança engajada na passagem das demonstrações
nacionalistas, de viés carnavalesco, para um nacionalismo com um conteúdo
humanitário que enaltece a ciência e cura o sofrimento da gente humilde. Sem isso,
o questionamento do paradigma sistêmico do modo de produção e consumo
hegemônicos, sobre pilares da concorrência e acumulação extrativistas, vira um
discurso doutrinário e maximalista que corrói a credibilidade
político-ideológica da esquerda.
A luta cidadã não é
travada numa arena ideal, mas sob o peso das décadas de monetarismo sobre a
subjetivação e a cosmovisão do povo. No Brasil, no dia de descanso, o programa
inviável numa TV civilizada “Domingão com Hulk” ocupa o imaginário periférico aos
moldes neopentecostais, com soluções mágicas e individualistas. Com uma mão
pega milhões dos pobres durante quatro semanas e, por sorteio, devolve com a
outra mão hum milhão no início de cada mês, de forma demagógica e hipócrita.
Enquanto a “Dança dos Famosos” estampa lições caricatas de meritocracia para
justificar as desigualdades, consolar os derrotados e premiar os vencedores.
Uma premeditada pedagogia da alienação e subordinação propaga os valores
do status quo para alimentar a apatia dos subalternos.
Michael Löwy, no
número dedicado à “Crise ecológica”, da revista Margem Esquerda (1°
semestre 2024), destaca: “A sociedade ecossocialista não ocorrerá naturalmente,
ela deve ser desenvolvida a partir das raízes profundas na realidade concreta e
também das asas da utopia, condutora do desejo de outra sociedade. A construção
envolve participação de seus militantes nas lutas por melhores condições de
vida. As vitórias parciais são aqui fundamentais, mas é importante que estejam
em sintonia com um projeto de outra sociedade, uma que seja socialmente justa,
ambientalmente responsável e solidária”.
Em resumo, somente
assim – da dialética do lugar e do espaço – surgirá a síntese superior de
liberdade e igualdade. Cabe à juventude e aos trabalhadores levarem a cabo a
tarefa de romper com os grilhões da dominação. A organização da solidariedade
ativa pelos partidos transformadores e movimentos populares é crucial para o
que podemos denominar “grande recusa”.
Fonte: Outras Palavras/
Terra é Redonda
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