As vitórias vazias da oposição, o alarmismo
fútil dos analistas de rede social, e os verdadeiros erros do governo
Enquanto fazia minha
caminhada na direção do supermercado, ontem à noite, eu mandava áudios
insistentes ao meu chatgpt 4.0, para que ele procurasse uma citação de
Maquiavel, de preferência em minha obra preferida, Décadas de Tito Lívio, sobre
exemplos de uma vitória vazia, que não significasse nenhuma conquista objetiva,
embora fosse comemorada com grande estardalhaço.
Não se tratava de
vitória de Pirro, que corresponde a uma vitória tão cara, em termos de custos e
vidas, que mais enfraquece do que fortalece o vencedor. Estava mais para uma
vitória fútil, puramente simbólica. Por fim, acabei arrancando de meu amigo artificial
a seguinte citação:
“Vittorie ottenute solo per apparenza, senza cambiare realmente le sorti di
chi le ha conseguite, sono nient’altro che illusioni vuote”.
“Vitórias obtidas
apenas por aparência, sem realmente mudar a sorte de quem as conseguiu, não são
nada além de ilusões vazias.”
Ele me disse que a
citação seria “inspirada” em Maquiavel, que teria dito algo parecido na Década.
Eu perguntei onde exatamente ele teria dito isso. Ele me indicou alguns
capítulos, que fui reler. Mas não encontrei. Por fim, entendi que o ChatGPT
tinha inventado uma citação de Maquiavel, em italiano (eu havia pedido uma
citação no original).
Tudo bem, eu o perdôo,
amigo, e até respondo com outra frase em italiano: “Se non è vero, è ben
trovato”.
Se não é verdade, foi
bem inventado.
As vitórias da
oposição ontem foram assim. Barulhentas, festejadas. Analistas políticos
encheram as redes com frases pomposas sobre a “surra” que o governo levou. Um
deles chegou ao exagero de afirmar que “nunca um governo sofreu tantas
derrotas, qualquer governo”.
Mas vazias. Vitórias
vazias. O que foram elas? A oposição manteve o veto de Bolsonaro sobre um
dispositivo legal que criminalizaria, com alguns anos de cadeia, o uso de fake
news em período eleitoral. Os bolsonaristas estavam apavorados com isso e
gastaram uma enorme quantidade de energia para manter esse veto. O que muda no
Brasil? Nada. O veto estava valendo, e continua valendo. Isso significa
impunidade ou autorização para uso de fake news em época de eleição? Não. O TSE
trabalhou muito bem em 2022 mesmo com esse veto, e continuará trabalhando nas
eleições municipais deste ano e na de 2026.
É perfeitamente
compreensível que os bolsonaristas, ou a extrema-direita, como preferirem,
tenham abraçado essa batalha como algo existencial. E guerras existenciais,
como vemos na Ucrânia, onde a Rússia também trava uma luta que vê como
existencial, são muito difíceis de serem perdidas. O TSE já goza de grande
poder no Brasil. Provavelmente é a instituição eleitoral mais poderosa no mundo
democrático. Não são apenas os bolsonaristas que se preocupam, porém, com os
excessos do TSE. Ocorre que, nos últimos tempos, o radicalismo mentiroso da
extrema-direita brasileira, especialmente sua vertente bolsonarista, se tornou
tão despudoradamente golpista e violento, que a força do nosso judiciário
eleitoral se tornou uma benção dos céus para a nossa democracia.
Mas o TSE continua
hoje, no dia seguinte à “vitória” dos bolsonaristas, exatamente tão poderoso
quanto ontem. Aqui entre nós, talvez fosse exagero mesmo autorizar-lhe a
encarcerar gente por até cinco anos por conta de uma notícia.
É uma vitória da
oposição de fato. Mas para isso existe oposição. Para mediar o debate no
congresso.
As circunstâncias
políticas, e a polarização, transformaram a esquerda numa grande defensora do
judiciário. Mas nem sempre foi assim. Há poucos anos, as bolhas progressistas
fervilhavam de críticas ao ativismo judicial, aos superpoderes do STF, à
interferência excessiva do TSE no processo eleitoral. A extrema-direita parece
esquecer, aliás, que o judiciário nacional é, em sua maioria, conservador, até
por razões de classe, já que os juízes vêm sobretudo de famílias de classe
média alta, sempre vulneráveis a esse ultraliberalismo tão caro às direitas
latinas. A suposta “perseguição judicial” que eles estariam sofrendo – o que é
uma fantasia deles, pois não há perseguição nenhuma – vem de setores
conservadores. O seu delírio mais ridículo tem sido, portanto, vender a ideia
de uma ditadura judicial da esquerda, quando o que vemos, em verdade, é uma
briga da direita judicial contra a extrema-direita política.
As outras vitórias da
oposição foram igualmente vazias. Derrubaram um veto de Lula, por exemplo, que
garantia a “saidinha” para presos sem periculosidade. Importante esclarecer
isso. Lula tinha adotado uma posição conservadora neste sentido, até por respeito
à decisão do congresso. O presidente não tinha vetado a decisão, reacionária,
populista, pouco inteligente, do congresso, de matar o direito dos brasileiros
sob custódia no sistema prisional, de obterem saída temporária para visitar
suas famílias, durante alguns feriados importantes, como o Natal. Apenas presos
no semiaberto tinham o direito, aliás. Lula tinha vetado apenas que essa
decisão fosse imposta até mesmo aos presos de pouca periculosidade, sem conexão
com o crime organizado. Os especialistas em segurança pública concordaram com
Lula, e até acharam que ele teria sido tímido, porque o correto, defendiam,
seria um veto que restituísse integralmente o direito à saidinha. Mas todo
mundo sabe que esse é um debate extremamente difícil de vencer, porque a
extrema-direita apela ao populismo vulgar. Apenas os parlamentares da esquerda
mais ideológica têm coragem de enfrentar o binarismo fácil de bandido versus
homens de bem, e defender direitos também para as pessoas presas, inclusive por
entender que esse tipo de populismo apenas fortalece as organizações
criminosas, que operam dentro dos presídios, por se tratar de um rigor que
deixa o preso individual mais vulnerável e, portanto, mais dependente dos
chefes do crime.
Algumas das “vitórias”
foram positivamente ridículas e, a bem da verdade, puramente simbólicas, ou
semânticas, como proibir o governo de usar dinheiro público em projetos que
incentivassem invasões de terra ou “sexualização” de crianças em escolas. Como o
governo Lula nunca faria nada disso, não muda nada. Talvez até ajude o governo
a controlar algum setor distraído da própria administração que tivesse intenção
de promover ações bem-intencionadas mas ingênuas (e desastradas) do ponto de
vista dos costumes. Ah, mas isso prejudica o MST! Bem, o MST sobreviveu a
Collor, FHC, Temer, Bolsonaro, e certamente vai sobreviver a um veto
insignificante da extrema-direita, até mesmo porque o MST hoje se tornou muito
mais sofisticado. A organização hoje negocia títulos na bolsa, faz acordos na
China para importação de maquinários, e investe na produção de alimentos
orgânicos. A esquerda precisa proteger o MST, que é o movimento social mais
importante do Brasil, mas o que houve ontem não faz sequer cócegas.
Que mais? Ah, tem o
mais engraçado. A oposição aprovou, aparentemente sob a liderança decidida do
presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, a taxação de produtos
importados de até 50 dólares, que tinham sido isentos de impostos pelo governo
Lula no ano passado. A situação dos importados ficou assim:
(…) Após
negociações nas últimas semanas, Átila Lira propôs no lugar uma taxação de 20%
do Imposto de Importação sobre as mercadorias de até 50 dólares. Acima deste
valor e até 3 mil dólares (cerca de R$ 16.500,00), o imposto será de 60%, com
desconto de 20 dólares do tributo a pagar (cerca de R$ 110,00).
Para o
deputado Gervásio Maia (PSB-PB), o texto traz uma alternativa para proteger
empregos no Brasil. “A alíquota de 20% minimiza danos à indústria nacional, que
não tem condições de competir com os preços da China”, afirmou.
Ora, isso cheira mais
a uma vitória do governo, que assim conseguirá mais dinheiro em caixa, sem
carregar o ônus de ter prejudicado os pequenos lojistas e distribuidores, que
vivem de revender esses produtos. O próprio ministro da Fazenda, Fernando Haddad,
que sempre quis taxar essas pequenas importações, deve ter recebido essa
“derrota do governo” com um sorriso. Essa isenção fiscal era defendida pelo
governo por razões justas, fundamentadas pela preocupação com a microeconomia
do pequeno varejo nacional, mas também por motivos políticos, por ser
impopular. Bem, sabemos que parte da culpa vai estourar nas costas do governo,
mas ao menos agora ele e seus militantes poderão alegar que Lula tentou evitar
essa taxação das pequenas compras, mas que foi derrotado por Arthur Lira e pelo
congresso “reacionário”.
Os economistas ligados
à pauta do desenvolvimento e reindustrialização nunca foram simpáticos, a
propósito, à isenção tributária total para produtos importados chineses, mesmo
aqueles baratos, por razões óbvias: eles concorrem com produtos nacionais. Nossa
indústria de transformação ainda depende muito da manufatura desses pequenos
artigos, cuja baixa densidade tecnológica os tornam mais fáceis para nós
produzirmos.
De forma geral,
nenhuma das “derrotas” do governo produzem qualquer impacto expressivo na
administração. Alguns analistas mais nervosos de rede social usaram as
“derrotas” de ontem para alimentar a fantasia de um governo acuado, com
aprovação em declínio, e que está com os dias contados. Nada mais falso. A
aprovação de Lula permanece exatamente a mesma do início de seu governo. É um
país polarizado, mas é assim em quase toda democracia moderna. Lula tem apoio
firme de seus próprios eleitores. O que mais importa, porém, é a economia.
Ontem foi divulgada a taxa de inflação, que voltou a cair no acumulado de 12
meses, para menos de 3,7%. É uma taxa de país desenvolvido. As estimativas para
o PIB seguem sendo ajustadas para cima. Desemprego em queda e renda em alta.
Ah, o governo não
erra? Não há perigos à frente?
Sim, o governo Lula
comete, a meu ver, alguns erros estratégicos, que podem ter consequências
funestas no futuro, inclusive no futuro próximo. Falta, por exemplo, um plano
muito ambicioso, barulhento, completo, no campo da segurança pública. Flavio
Dino teve iniciativas boas neste campo, mas incompletas e burocráticas. É
preciso engajar a sociedade civil. Se não criar um programa que mobilize a
população, no dia a dia, não vai funcionar. Não se trata de melhorar a
“comunicação”. Sempre que se fala, aliás, que o problema do governo é a
comunicação, comete-se dois erros crassos: ignora-se o problema central, que
está no campo da política e da administração, e se atribui à comunicação uma
semântica vulgar. Comunicação não é propaganda. Comunicação é ouvir a sociedade,
inclusive suas vanguardas científicas. Comunicação é mobilizar e engajar a
sociedade.
Um outro erro do
governo é ignorar a pauta da mobilidade urbana, ou tratá-la de forma
fragmentada, ou ainda deixá-la para governadores e prefeitos. O governo federal
precisa se debruçar sobre o tema, porque ele é sobretudo nacional. O governo
precisa debater o futuro da mobilidade urbana do país, com urgência, sob o
risco de debatê-lo somente após alguma grande crise política. O Brasil precisa
ingressar, com ousadia, na era das ferrovias de alta velocidade, para o
transporte interestadual e intermunicipal. Construir vastas redes de metrô,
subterrâneos ou de superfície, nas cidades. Investir em ciclovias e caminhos
pedonais. Isso não é mais nenhum “luxo” ou fantasia militante, mas uma
necessidade existencial e econômica da sociedade moderna. O mundo inteiro está
caminhando para isso, e se o Brasil não acompanhar, apenas irá trazer
sofrimento e frustração para seu povo.
Por fim, tem a questão
das universidades federais. O governo precisa fazer um esforço maior para
atender as reinvidicações de professores e servidores e pôr fim à greve. Mas
não só isso. As universidades federais precisam ser convocadas, mobilizadas,
organizadas, para se engajarem na reconstrução do país. Mas isso fica para
outro artigo.
Fonte: Por Miguel do
Rosário, em O Cafezinho
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