sexta-feira, 31 de maio de 2024

As vitórias vazias da oposição, o alarmismo fútil dos analistas de rede social, e os verdadeiros erros do governo

Enquanto fazia minha caminhada na direção do supermercado, ontem à noite, eu mandava áudios insistentes ao meu chatgpt 4.0, para que ele procurasse uma citação de Maquiavel, de preferência em minha obra preferida, Décadas de Tito Lívio, sobre exemplos de uma vitória vazia, que não significasse nenhuma conquista objetiva, embora fosse comemorada com grande estardalhaço.

Não se tratava de vitória de Pirro, que corresponde a uma vitória tão cara, em termos de custos e vidas, que mais enfraquece do que fortalece o vencedor. Estava mais para uma vitória fútil, puramente simbólica. Por fim, acabei arrancando de meu amigo artificial a seguinte citação:

“Vittorie ottenute solo per apparenza, senza cambiare realmente le sorti di chi le ha conseguite, sono nient’altro che illusioni vuote”.

“Vitórias obtidas apenas por aparência, sem realmente mudar a sorte de quem as conseguiu, não são nada além de ilusões vazias.”

Ele me disse que a citação seria “inspirada” em Maquiavel, que teria dito algo parecido na Década. Eu perguntei onde exatamente ele teria dito isso. Ele me indicou alguns capítulos, que fui reler. Mas não encontrei. Por fim, entendi que o ChatGPT tinha inventado uma citação de Maquiavel, em italiano (eu havia pedido uma citação no original).

Tudo bem, eu o perdôo, amigo, e até respondo com outra frase em italiano: “Se non è vero, è ben trovato”.

Se não é verdade, foi bem inventado.

As vitórias da oposição ontem foram assim. Barulhentas, festejadas. Analistas políticos encheram as redes com frases pomposas sobre a “surra” que o governo levou. Um deles chegou ao exagero de afirmar que “nunca um governo sofreu tantas derrotas, qualquer governo”.

Mas vazias. Vitórias vazias. O que foram elas? A oposição manteve o veto de Bolsonaro sobre um dispositivo legal que criminalizaria, com alguns anos de cadeia, o uso de fake news em período eleitoral. Os bolsonaristas estavam apavorados com isso e gastaram uma enorme quantidade de energia para manter esse veto. O que muda no Brasil? Nada. O veto estava valendo, e continua valendo. Isso significa impunidade ou autorização para uso de fake news em época de eleição? Não. O TSE trabalhou muito bem em 2022 mesmo com esse veto, e continuará trabalhando nas eleições municipais deste ano e na de 2026.

É perfeitamente compreensível que os bolsonaristas, ou a extrema-direita, como preferirem, tenham abraçado essa batalha como algo existencial. E guerras existenciais, como vemos na Ucrânia, onde a Rússia também trava uma luta que vê como existencial, são muito difíceis de serem perdidas. O TSE já goza de grande poder no Brasil. Provavelmente é a instituição eleitoral mais poderosa no mundo democrático. Não são apenas os bolsonaristas que se preocupam, porém, com os excessos do TSE. Ocorre que, nos últimos tempos, o radicalismo mentiroso da extrema-direita brasileira, especialmente sua vertente bolsonarista, se tornou tão despudoradamente golpista e violento, que a força do nosso judiciário eleitoral se tornou uma benção dos céus para a nossa democracia.

Mas o TSE continua hoje, no dia seguinte à “vitória” dos bolsonaristas, exatamente tão poderoso quanto ontem. Aqui entre nós, talvez fosse exagero mesmo autorizar-lhe a encarcerar gente por até cinco anos por conta de uma notícia.

É uma vitória da oposição de fato. Mas para isso existe oposição. Para mediar o debate no congresso.

As circunstâncias políticas, e a polarização, transformaram a esquerda numa grande defensora do judiciário. Mas nem sempre foi assim. Há poucos anos, as bolhas progressistas fervilhavam de críticas ao ativismo judicial, aos superpoderes do STF, à interferência excessiva do TSE no processo eleitoral. A extrema-direita parece esquecer, aliás, que o judiciário nacional é, em sua maioria, conservador, até por razões de classe, já que os juízes vêm sobretudo de famílias de classe média alta, sempre vulneráveis a esse ultraliberalismo tão caro às direitas latinas. A suposta “perseguição judicial” que eles estariam sofrendo – o que é uma fantasia deles, pois não há perseguição nenhuma – vem de setores conservadores. O seu delírio mais ridículo tem sido, portanto, vender a ideia de uma ditadura judicial da esquerda, quando o que vemos, em verdade, é uma briga da direita judicial contra a extrema-direita política.

As outras vitórias da oposição foram igualmente vazias. Derrubaram um veto de Lula, por exemplo, que garantia a “saidinha” para presos sem periculosidade. Importante esclarecer isso. Lula tinha adotado uma posição conservadora neste sentido, até por respeito à decisão do congresso. O presidente não tinha vetado a decisão, reacionária, populista, pouco inteligente, do congresso, de matar o direito dos brasileiros sob custódia no sistema prisional, de obterem saída temporária para visitar suas famílias, durante alguns feriados importantes, como o Natal. Apenas presos no semiaberto tinham o direito, aliás. Lula tinha vetado apenas que essa decisão fosse imposta até mesmo aos presos de pouca periculosidade, sem conexão com o crime organizado. Os especialistas em segurança pública concordaram com Lula, e até acharam que ele teria sido tímido, porque o correto, defendiam, seria um veto que restituísse integralmente o direito à saidinha. Mas todo mundo sabe que esse é um debate extremamente difícil de vencer, porque a extrema-direita apela ao populismo vulgar. Apenas os parlamentares da esquerda mais ideológica têm coragem de enfrentar o binarismo fácil de bandido versus homens de bem, e defender direitos também para as pessoas presas, inclusive por entender que esse tipo de populismo apenas fortalece as organizações criminosas, que operam dentro dos presídios, por se tratar de um rigor que deixa o preso individual mais vulnerável e, portanto, mais dependente dos chefes do crime.

Algumas das “vitórias” foram positivamente ridículas e, a bem da verdade, puramente simbólicas, ou semânticas, como proibir o governo de usar dinheiro público em projetos que incentivassem invasões de terra ou “sexualização” de crianças em escolas. Como o governo Lula nunca faria nada disso, não muda nada. Talvez até ajude o governo a controlar algum setor distraído da própria administração que tivesse intenção de promover ações bem-intencionadas mas ingênuas (e desastradas) do ponto de vista dos costumes. Ah, mas isso prejudica o MST! Bem, o MST sobreviveu a Collor, FHC, Temer, Bolsonaro, e certamente vai sobreviver a um veto insignificante da extrema-direita, até mesmo porque o MST hoje se tornou muito mais sofisticado. A organização hoje negocia títulos na bolsa, faz acordos na China para importação de maquinários, e investe na produção de alimentos orgânicos. A esquerda precisa proteger o MST, que é o movimento social mais importante do Brasil, mas o que houve ontem não faz sequer cócegas.

Que mais? Ah, tem o mais engraçado. A oposição aprovou, aparentemente sob a liderança decidida do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, a taxação de produtos importados de até 50 dólares, que tinham sido isentos de impostos pelo governo Lula no ano passado. A situação dos importados ficou assim:

(…) Após negociações nas últimas semanas, Átila Lira propôs no lugar uma taxação de 20% do Imposto de Importação sobre as mercadorias de até 50 dólares. Acima deste valor e até 3 mil dólares (cerca de R$ 16.500,00), o imposto será de 60%, com desconto de 20 dólares do tributo a pagar (cerca de R$ 110,00).

Para o deputado Gervásio Maia (PSB-PB), o texto traz uma alternativa para proteger empregos no Brasil. “A alíquota de 20% minimiza danos à indústria nacional, que não tem condições de competir com os preços da China”, afirmou.

Ora, isso cheira mais a uma vitória do governo, que assim conseguirá mais dinheiro em caixa, sem carregar o ônus de ter prejudicado os pequenos lojistas e distribuidores, que vivem de revender esses produtos. O próprio ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que sempre quis taxar essas pequenas importações, deve ter recebido essa “derrota do governo” com um sorriso. Essa isenção fiscal era defendida pelo governo por razões justas, fundamentadas pela preocupação com a microeconomia do pequeno varejo nacional, mas também por motivos políticos, por ser impopular. Bem, sabemos que parte da culpa vai estourar nas costas do governo, mas ao menos agora ele e seus militantes poderão alegar que Lula tentou evitar essa taxação das pequenas compras, mas que foi derrotado por Arthur Lira e pelo congresso “reacionário”.

Os economistas ligados à pauta do desenvolvimento e reindustrialização nunca foram simpáticos, a propósito, à isenção tributária total para produtos importados chineses, mesmo aqueles baratos, por razões óbvias: eles concorrem com produtos nacionais. Nossa indústria de transformação ainda depende muito da manufatura desses pequenos artigos, cuja baixa densidade tecnológica os tornam mais fáceis para nós produzirmos.

De forma geral, nenhuma das “derrotas” do governo produzem qualquer impacto expressivo na administração. Alguns analistas mais nervosos de rede social usaram as “derrotas” de ontem para alimentar a fantasia de um governo acuado, com aprovação em declínio, e que está com os dias contados. Nada mais falso. A aprovação de Lula permanece exatamente a mesma do início de seu governo. É um país polarizado, mas é assim em quase toda democracia moderna. Lula tem apoio firme de seus próprios eleitores. O que mais importa, porém, é a economia. Ontem foi divulgada a taxa de inflação, que voltou a cair no acumulado de 12 meses, para menos de 3,7%. É uma taxa de país desenvolvido. As estimativas para o PIB seguem sendo ajustadas para cima. Desemprego em queda e renda em alta.

Ah, o governo não erra? Não há perigos à frente?

Sim, o governo Lula comete, a meu ver, alguns erros estratégicos, que podem ter consequências funestas no futuro, inclusive no futuro próximo. Falta, por exemplo, um plano muito ambicioso, barulhento, completo, no campo da segurança pública. Flavio Dino teve iniciativas boas neste campo, mas incompletas e burocráticas. É preciso engajar a sociedade civil. Se não criar um programa que mobilize a população, no dia a dia, não vai funcionar. Não se trata de melhorar a “comunicação”. Sempre que se fala, aliás, que o problema do governo é a comunicação, comete-se dois erros crassos: ignora-se o problema central, que está no campo da política e da administração, e se atribui à comunicação uma semântica vulgar. Comunicação não é propaganda. Comunicação é ouvir a sociedade, inclusive suas vanguardas científicas. Comunicação é mobilizar e engajar a sociedade.

Um outro erro do governo é ignorar a pauta da mobilidade urbana, ou tratá-la de forma fragmentada, ou ainda deixá-la para governadores e prefeitos. O governo federal precisa se debruçar sobre o tema, porque ele é sobretudo nacional. O governo precisa debater o futuro da mobilidade urbana do país, com urgência, sob o risco de debatê-lo somente após alguma grande crise política. O Brasil precisa ingressar, com ousadia, na era das ferrovias de alta velocidade, para o transporte interestadual e intermunicipal. Construir vastas redes de metrô, subterrâneos ou de superfície, nas cidades. Investir em ciclovias e caminhos pedonais. Isso não é mais nenhum “luxo” ou fantasia militante, mas uma necessidade existencial e econômica da sociedade moderna. O mundo inteiro está caminhando para isso, e se o Brasil não acompanhar, apenas irá trazer sofrimento e frustração para seu povo.

Por fim, tem a questão das universidades federais. O governo precisa fazer um esforço maior para atender as reinvidicações de professores e servidores e pôr fim à greve. Mas não só isso. As universidades federais precisam ser convocadas, mobilizadas, organizadas, para se engajarem na reconstrução do país. Mas isso fica para outro artigo.

 

Fonte: Por Miguel do Rosário, em O Cafezinho

 

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