Qual é para cada religião o momento do
início da vida — e como cada uma lida com aborto e contraceptivos
Essa é uma questão
filosófica e científica que acompanha a humanidade desde o surgimento da
consciência: quando começa a vida? Na hora da concepção, quando o óvulo é
fertilizado pelo espermatozoide? No nascimento? Ou em algum momento
intermediário?
Quando a religião
entra na discussão, um ingrediente de fé costuma interferir no entendimento e
suas implicações acabam buscando impôr regras comportamentais e morais a seus
seguidores.
Em comum, a questão
que geralmente baliza o debate é o momento em que a "alma" é
concedida ao novo ser.
Mas as interpretações
variam dentro do cristianismo e, claro, quando comparamos também com outras
religiões importantes mas menos difundidas no Brasil contemporâneo.
A reportagem ouviu
especialistas e traz, a seguir, os entendimentos da Igreja Católica Apóstólica
Romana, de igrejas cristãs protestantes e evangélicas, das religiosidades
indígenas e das de matriz africana, do espiritismo kardecista, do judaísmo e do
islã.
A partir desse
entendimento, cada credo costuma traçar sua régua moral para assuntos como sexo
para fins não reprodutivos, métodos contraceptivos, aborto e relações homoafetivas.
·
Igreja Católica
Ex-coordenador do
Núcleo Fé e Cultura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e
editor do jornal O São Paulo, da Arquidiocese de São Paulo, o sociólogo e
biólogo Francisco Borba Ribeiro Neto argumenta à BBC News Brasil que "no
caso do catolicismo, o conceito de origem da vida evoluiu com o desenvolvimento
dos conhecimento sobre biologia fetal".
"O cristianismo
sempre condenou o aborto, mas na Idade Média se supunha que a alma
não se incorporaria plenamente ao feto já na concepção. Com a evolução do
conhecimento científico, a Igreja Católica passou a assumir que a alma é
infundida no corpo já no momento da concepção”, defende ele.
Para o sociólogo, a
questão parte do conhecimento científico. E, segundo ele, é por isso que a
Igreja condena o aborto.
"Em primeiro
lugar, acho importante fazer um a distinção para entendermos o que realmente
está em debate. Ninguém pode, hoje em dia, duvidar do fato de que uma nova vida
se origina na concepção. Quando o óvulo e o espermatozoide se encontram, surge um
novo código genético, que corresponde a um novo ser vivo. Este é um dado
científico universalmente aceito. O debate real é se esse novo ser vivo, ainda
desprovido das características próprias da condição humana, pode ser
considerado uma pessoa humana portadora de direitos equivalentes aos de uma
pessoa já nascida", pontua.
"Esse caráter,
pertencente constitutivamente à filosofia do direito, não interessa aos
envolvidos no debate, por isso permanece camuflado", diz Ribeiro Neto.
"Aos que defendem
o direito de escolha [ou seja, o direito ao aborto], não interessa a
constatação de que o feto já é um ser humano diferente, mesmo que seja apenas
do ponto de vista biológico. Aos que defendem o direito à vida, não interessa
destacar que pode existir uma diferença entre um novo ser vivo, no sentido
biológico estrito) e uma pessoa dotada de direitos, que é uma questão
filosófica e social."
Como a Igreja entende
que a alma é concedida por Deus já no momento da
concepção, qualquer método abortivo é visto, nas palavras do sociólogo, como
"um atentado contra o direito à vida de uma pessoa".
Mas há um senão.
"Os métodos contraceptivos não são totalmente condenados pelo catolicismo.
Ele [a Igreja] concorda com os chamados métodos naturais, que monitoram o ciclo
reprodutivo da mulher e indicam que se mantenha relações
sexuais nos dias em que ela está infértil, para evitar a concepção, ou nos dias
férteis, no caso dos casais que desejam ter filhos”, explica ele. É a chamada
tabelinha.
Por outro lado,
Ribeiro Neto ressalta que preservativos, dispositivo intrauterino (DIU) e a
pílula são contraindicados. Assim como procedimentos definitivos, como a
laqueadura e a vasectomia. "Porque não dariam espaço à livre ação de
Deus", afirma. "Todo ato sexual deve estar aberto à possibilidade da
geração de uma nova vida."
"O sexo não
reprodutivo é plenamente aprovado pela Igreja, que reconhece que a sexualidade
tem um valor unitivo, isso é, reforça a união entre homem e mulher. Contudo,
justamente por representar essa unidade entre ambos, deve estar aberto à
reprodução, que é o auge do amor entre dois seres humanos: a criação de um
terceiro ser que é a fusão de ambos", salienta ele.
Isso implica numa
questão correlata: a maneira como o catolicismo vê as uniões homoafetivas. A
não aceitação desses casamentos, conforme explica Ribeiro Neto, é porque, em
última instância, eles "não podem, naturalmente, gerar um filho".
·
Igrejas protestantes e
evangélicas
Professor na
Universidade Presbiteriana Mackenzie, o teólogo, filósofo e historiador Gerson
Leite de Moraes lembra que, "de maneira geral, o cristianismo, seja o
católico, seja o protestante ou evangélico, trabalha com a ideia de que existe
uma ordem controlada pelo criador, que comanda tudo".
"É preciso, de
alguma forma, respeitar esse doador da vida. Isso está na tradição cristã que
foi inicialmente pensada pela confissão católica e também na que teve sequência
com os protestantes e evangélicos", afirma.
Ele lembra que as
raízes desse entendimento estão na filosofia do teólogo Tomás de Aquino
(1224-1274), que definia como "pessoa" a "substância capaz de
pensar".
"Assim, a pessoa
é um ser racional, mas não que tenha recebido essa racionalidade de maneira
natural, no sentido de herdar uma carga genética dos pais. O dom da vida, a
racionalidade, ela é algo espiritual que foi infundida, associada a cada um por
meio de um ato criador. Por isso que a vida acaba sendo um presente de
Deus", contextualiza Moraes.
"A definição se
torna bastante sofisticada porque coloca Deus na parada."
"Na tradição
protestante é muito comum você escutar que os seres humanos criados são a joia
da criação de Deus, por isso temos o direito de administrar o cosmos, porque
somos sujeitos racionais", completa.
Assim, para os
cristãos não católicos a ideia é a mesma: a vida começa na concepção.
"Porque, em algum momento, Deus infunde a alma" diz o teólogo.
Mas se os católicos
costumam se apoiar em catataus filosóficos e teológicos construídos em quase 2
mil anos, protestantes se fiam mais no que está na Bíblia por si só. E aí o principal fator a condenar o aborto é um
trecho do Antigo Testamento que aparece no Salmo 139.
Ali diz que "os
teus olhos [de Deus] viram o meu corpo ainda informe; e no teu livro todas
estas coisas foram escritas; as quais em continuação foram formadas, quando nem
ainda uma delas havia".
"Segundo esse
texto, Deus conhecia a pessoa antes mesmo de ela existir", interpreta.
"E Deus conhecida o plano eterno. Já via, com seus olhos, a substância
ainda informe. Nesse sentido, a partir daquele bolo de células, da fecundação,
já há uma vida, uma pessoa conhecida por Deus."
Por outro lado, as
igrejas protestantes costumam ser mais abertas ao uso de métodos
contraceptivos.
"Há uma liberdade
maior. Não há problema quanto ao sexo não reprodutivo desde que dentro do casamento, porque se entende
que o homem foi dado à mulher e a mulher foi dada ao homem. O sexo deve
acontecer porque ambos foram abençoados por Deus numa relação legítima e essas
duas pessoas estão unidas para se reproduzirem, criarem filhos mas também para
se alegrarem, sentirem prazer e viverem uma vida de fidelidade sem nenhuma
imposição ou restrição sexual", comenta.
No caso do aborto,
Moraes explica que tradicionalmente os protestantes sempre condenaram a prática
de modo indiscriminado mas respeitavam o direito de escolha de seus fiéis,
sobretudo em casos de violência contra a mulher, estupro ou mesmo quando a
gestante corre risco de vida ou o feto tem alguma má-formação. "A tradição
sempre foi voltada ao pró-escolha", conta.
Isso mudou com a
ascensão de grupos evangélicos fundamentalistas aliados a grupos de
extrema-direita, segundo explica o professor.
"Em uma
mimetização do que vem ocorrendo nos Estados Unidos desde os anos 1960, vemos
no Brasil de hoje lideranças evangélicas promovendo manifestações até em frente
a clínicas que praticam aborto", comenta.
Há variações de
denominação para denominação.
"É preciso
lembrar que em outras igrejas as coisas podem funcionar de forma diferente. Há
igrejas pentecostais que são inclusivas, mas mesmo aí ainda prevalece algum
moralismo. A igreja Cidade de Refúgio, por exemplo, é uma igreja inclusiva, mas
proíbe o sexo antes ou fora do casamento. A Igreja Universal, no
início deste século, não se opunha ao aborto. Passou a proibir o aborto
posteriormente. Essa igreja defende o planejamento familiar com o uso de
métodos contraceptivos", exemplifica o sociólogo Edin Sued Abumanssur,
professor da PUC-SP, onde lidera o Grupo de Estudos do Protestantismo e
Pentecostalismo.
Sobre a origem da
vida, ele toma como exemplo duas igrejas evangélicas bastante disseminadas no
Brasil, a Deus é Amor e a Assembleia de Deus. "[Para ambas] a origem da
vida está no momento da concepção", esclarece.
"Para as duas
igrejas o casamento é mandamento divino e as relações sexuais devem acontecer
apenas no contexto do casamento. Sexo antes do casamento é proibido e implica
disciplina para os faltosos. Sexo com outro que não o marido ou a esposa é adultério
e implica em exclusão da igreja. O casamento é necessariamente monogâmico,
heterossexual."
Há regras claras para
o matrimônio. Na Deus é Amor, casamento só deve acontecer depois dos 16 anos
para mulheres e 18 anos para os homens.
As mulheres entre 16 e
18 anos só podem casar com homens de até, no máximo, 28 anos. Se tiver entre 18
e 21 anos pode se casar com homens de até 36 anos. A partir de 21 anos pode se
casar com homens de qualquer idade. Há preceitos para quando é o caso de o
homem ser mais novo que a mulher", diz Abumanssur.
"Ambas as igrejas
só reconhecem a família heterossexual.
Qualquer relação homoafetiva é vista como pecado e passível de exclusão da
igreja. Para a Deus é Amor, métodos contraceptivos são proibidos a não ser por
ordem médica ou quando o marido não for crente e exigir a operação para evitar filhos."
"Para ambas as
igrejas o aborto é proibido em qualquer circunstância, mesmo naqueles casos
previstos na lei. Para as igrejas pentecostais que conheço o aborto é sempre
proibido", esclarece.
·
Judaísmo
De acordo com o
historiador, hebraísta e rabino Theo Hotz, apresentador do podcast Torá com
Fritas, são diversas as opiniões no judaísmo sobre o momento do início da vida.
De acordo com a Lei Judaica, a vida humana se inicia no momento do nascimento.
"Feto e bebê são
diferenciados a partir do ato do nascimento. Enquanto ainda na fase uterina, o
feto é considerado como vida em potencial, mas ainda parte da mãe, como se
fosse um órgão dela. Tanto os antigos sábios do Talmud, quanto os legisladores
da Lei Judaica entendem que, após a cabeça do bebê ter saído, ele é considerado
um ser humano completo. Outras autoridades entendem que somente após a maior
parte do bebê ter saído ele deve ser considerado como um ser humano
completo", esclarece Hotz.
A base do entendimento
é bíblica e remonta ao livro do Gênesis, parte das escrituras tanto do judaísmo
quanto das denominações cristãs. Ali diz que "Deus então soprou em suas
narinas o fôlego da vida, e ele se tornou um ser vivente".
"Assim, a
respiração natural é vista como base para a determinação de quando a vida
começa e termina. Como dentro do útero, cercado pelo líquido amniótico, o feto é
incapaz de respirar, seu potencial de vida só é realizado a partir do momento
em que tem contato com o ar e pode respirar por si só e naturalmente",
explica o historiador.
Ele ressalta, contudo,
que não há um consenso. A cabalá, ou seja, a mística judaica, tem o
entendimento de que a vida se inicia a partir da entrada no quarto mês de
gestação. "Daqui, por exemplo, surge o costume de somente se anunciar uma
gravidez após a compleição de três meses de gestação", conta.
"Há quem diga,
porém, que tal costume se desenvolveu por puro empirismo, após a observação do
fato de que era muito comum se perder uma gravidez durante o primeiro
trimestre."
Segundo o historiador
e rabino, a visão judaica não condena o aborto. "Entendendo a respiração
natural como a realização total do potencial de vida humana, o judaísmo entende que a
gravidez pode ser interrompida a qualquer momento antes do nascimento. Desse
modo, o aborto não é visto como algo fundamentalmente proibido pela Lei
Judaica", contextualiza.
"Contudo, é
importante compreender que o judaísmo, embora não proíba o aborto, tampouco o
incentiva. Autoridades legais e mestres da filosofia judaica entendem que o
objetivo do feto é realizar o seu potencial de vida, assim, a gravidez não
deveria ser interrompida por qualquer motivo", ressalta ele.
Um dos motivos vistos
como razoáveis para a prática é quando a gestante corre riscos. "Neste
caso, entende-se a mãe como potencial já realizado versus o feto potencial
ainda não realizado. Deste modo, a vida da mãe estaria acima do potencial de
vida fetal", afirma.
Outros casos
aceitáveis são quando a viabilidade da vida do potencial é baixa, como no caso
de fetos com malformações e outras anomalias. “[Nestas situações], o aborto
pode ser recomendado, não incorrendo em qualquer culpa religiosa sobre os
progenitores", diz Hotz.
O rabino explica que
métodos contraceptivos são, "de maneira geral, não recomendados pelo
judaísmo". "Mas as autoridades rabínicas são incentivadas a analisar
caso a caso, podendo vir a autorizar seu uso ou recomendá-lo no caso, por
exemplo, de uma família pobre, que não tenha condições de criar um filho
naquele momento da vida".
Neste caso o
fundamento é o mesmo, ou seja, da precária viabilidade da vida cujo potencial
venha a ser realizado.
"De todo modo,
num caso assim, muitas vezes não se recomenda o método contraceptivo, mas sim,
que se entregue a criança nascida para adoção", comenta.
·
Islã
O islã tem o
entendimento de que a vida começa 120 dias depois da concepção. Isto está
presente no Corão, o livro sagrado da religião.
"Tem uma surata
que fala da formação [do feto]. Primeiro, o coágulo, depois o pedaço de carne,
os ossos", explica a antropóloga Francirosy Campos Barbosa, professora na
Universidade de São Paulo (USP).
No texto, há o chamado
período do esperma, de 40 dias, seguido pela sua transformação em coágulo,
outros 40 dias, e então ao pedaço de carne, mais 40 dias.
"Então Deus manda
um anjo até a criatura que está sendo gestada e assopra a vida. Esse anjo é
ordenado a registrar para essa criança o sustento, as ações, quando vai morrer,
se será uma pessoa bem-aventurada ou não… Esses pontos já se decidem ali, nesse
momento em que a criança recebe a vida", afirma Barbosa.
Essa crença implica em
duas consequências. A primeira é que o aborto, para o islã, é algo terminantemente proibido. Mas há o
tal prazo de 120 dias. "Se pensarmos claramente, não é ainda vida [para os
que professam essa fé], então não teria determinados impedimentos", diz a
antropóloga.
Contudo, mesmo assim,
evita-se, conforme ressalta a professora. Porque não há um consenso entre os
sábios da religião. "Há especialistas que dizem que se o aborto ocorre
antes [dos quatro meses], não há problemas. Mas há quem discorda. O mais comum é
aceitar nos casos em que a mãe está correndo risco de vida", explica.
Sobre métodos
contraceptivos, Barbosa conta que dentro do islã não há problemas desde que não
sejam permanentes. Ou seja: laqueadura e vasectomia não são aceitos, mas os
outros métodos não são vistos como problemáticos. "Na época do profeta
[Maomé ou Muhammad, como preferem seu seguidores], se fazia uma prática
conhecida como coito interrompido. Que ele e seus companheiros já
realizavam", diz Barbosa.
·
Espiritismo kardecista
Como se trata de
uma doutrina reencarnacionista, a
linha espírita kardecista parte da ideia "de que a alma é imortal e a
gente tem várias existências, várias vidas", como explica a historiadora e
socióloga Célia da Graça Arribas, professora na Universidade Federal de Juiz de
Fora (UFJF) e autora do livro 'Afinal, Espiritismo é Religião?'.
"O princípio da
vida, então, é pensado como uma espécie de evolução. Passamos por algumas
existências, das plantas aos animais, até chegarmos aos seres humanos. Mas a
ideia é que ninguém nunca regride", contextualiza. "O fundo da teoria
espírita é a ideia da evolução."
A pesquisadora
salienta que, embora o espiritismo seja praticado em geral por pessoas de
classes sociais mais elevadas do que a que compõe a massa de evangélicos
neopentecostais no Brasil, a intransigência à possibilidade do aborto é uma
pauta que une esses dois grupos.
"Embora haja
espíritas progressistas que pensam no aborto a partir das lentes da saúde
pública, o que predomina é uma visão muito forte contra qualquer tipo de
aborto. O pensamento hegemônico [dentro da doutrina] é conservador, então eles
são completamente contrários à descriminalização do aborto", diz.
No entendimento deles,
impedir o término de uma gestão é impedir a vinda de um espírito programado
para reencarnar. "Alguém que tem objetivos, provas a cumprir na Terra. Ou
seja, o aborto seria uma ação contrária às leis naturais e divinas. É um discurso
alinhado com a perspectiva católica e evangélica, nesse sentido",
argumenta a pesquisadora.
De modo geral, os
espíritas kardecistas não se opõem aos métodos contraceptivos, desde que
as relações sexuais sejam
feitas com consentimento e responsabilidade. "A partir da ideia de uma
parceria fixa e do amor", esclarece Arribas. A exceção é o DIU.
"Porque como ele não impede a fecundação, mas sim a absorção do zigoto no
colo do útero para o começo da gestação, para muitos espíritas ali já estava
implementado o espírito reencarnante", diz.
Uma informação
interessante a respeito é que um dos proponentes do estatuto do nascituro, de
2007, foi o então deputado federal Luiz Carlos Bassuma, que segue o
espiritismo. "[Trata-se de uma proposta que] prevê que o feto tem direito
à vida, à integridade física, a partir do momento em que é concebido. Na
prática, qualquer aborto seria proibido, inclusive em casos de estupro",
pontua a professora.
·
Povos originários
Dentre os tantos povos
indígenas brasileiros, são muito diversas as crenças sobre o momento em que a
vida se inicia. E, atualmente, esses entendimentos muitas vezes estão
contaminados com preceitos cristãos, seja oriundos de missionários católicos,
seja de evangélicos.
Professor na
Universidade Federal do Amapá (Unifap), o historiador e antropólogo Giovani
José da Silva explica que essas posturas costumam variar conforme "as
narrativas míticas de cada povo".
"Há os que
acreditam que a alma adentra o corpo no momento do nascimento e aqueles que
acreditam que o espírito já esteja presente no momento da fecundação. Os que
sofreram influência religiosa cristã costumam entender que um feto de algumas
semanas já é um ser vivo", argumenta.
"E isso, claro,
vai influenciá-los a aceitar ou não o aborto."
Ele cita, contudo,
pesquisas realizadas na etnografia dos kadiwéus mbayá-guaikurú e os classifica
como exemplos de uma população que via com naturalidade a prática do aborto.
"Seus ancestrais muitas vezes abortavam e, no lugar dessa criança abortada,
costumavam raptar uma criança de outro grupo", comenta.
Ao longo de quase 10
anos, nos anos 2000, Silva participou da organização de oficinas de educação
sexual em comunidades indígenas, principalmente
visando a conter a propagação de infecções sexualmente transmissíveis. Ele
constatou que diversos métodos contraceptivos e receitas abortivas, muitos
deles ligados ao uso de plantas específicas, eram utilizados pelas mulheres sem
nenhum problema ou tabu.
"Há, nos povos
[indígenas] a ideia e o sentimento de se fazer sexo para fins não reprodutivos,
de dar prazer aos parceiros", comenta. "Evidentemente que a entrada
em cena de religiões cristãs, sobretudo as evangélicas neopentecostais, com um
discurso bastante moralista, provocou mudanças de comportamento."
·
Candomblé
De acordo com o
sociólogo, antropólogo e babalorixá Rodney William Eugênio, autor de, entre
outros livros, A Bênção aos Mais Velhos: Poder e Senioridade nos
Terreiros de Candomblé, não existe na religião africana nada que impeça a
interrupção voluntária de uma gravidez ou a decisão de não engravidar.
"Não há juízo
moral no candomblé, sobretudo essa moral restritiva normalmente vinculada às
religiões cristãs. Cada um exerce o direito e a responsabilidade sobre seu
próprio corpo", salienta ele.
"Não há nenhum
fundamento que condene o aborto, muito menos os métodos contraceptivos. Aliás,
compreender o aborto dentro de um contexto histórico nos ajuda a incluir a
prática como uma condição diante do contexto de violência do processo de
escravidão e da vulnerabilidade social que seguiu no pós-abolição. Usar
qualquer história sagrada dos orixás para criticar o aborto, além de
leviano, seria uma grande hipocrisia. São as mulheres negras as maiores vítimas
de procedimentos mal-sucedidos. Portanto, deve ser uma preocupação dos
terreiros que abortos, quando necessários, possam ser feitos sem riscos e com a
devida assistência."
No entendimento do
candomblé a vida de cada um começa antes mesmo do nascimento na Terra.
"Resumidamente,
de acordo com as histórias sagradas dos orixás, cada um de nós escolhe no Orun,
o mundo das divindades e ancestrais, um Ori, ou seja, cabeça, mente,
consciência, para nascer no Aiyê, a Terra. Antes do nosso nascimento nosso Ori
escolherá um Odu, o caminho, destino, e deve testemunhá-lo diante de Exu
Onibodê Orun, o guardião da grande encruzilhada que separa o Orun do Aiyê, e
Orunmilá, o senhor dos oráculos", narra.
"Dizemos tudo que
vamos realizar: vitórias, desafios, conquistas, dificuldades, encontros,
guerras e até o tempo em que vamos ficar na Terra. Quando atravessamos o
portal, Exu nos faz esquecer de tudo para que tenhamos direito ao
arbítrio", prossegue.
"Sendo assim, o
Ori de cada pessoa já determinou como será sua vida, seu tempo no Aiyê e como
será sua morte, inclusive no caso de mortes prematuras. Nós escolhemos a quem
nosso destino vai se atrelar, em qual família nascermos, quem serão nossos pais
e de que forma morreremos."
Sobre os que têm esse
nascimento interrompido, também há uma explicação. "No Orun há uma
sociedade dos Abikus, que são os predestinados a não cumprir seu odu na Terra,
nascendo mortos ou nem chegando a nascer", esclarece Eugênio.
Fonte: BBC News Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário