Por que a Baixada Fluminense é a região que
mais reúne casas de religiões afro no Rio?
Um terreiro de
candomblé em Nova Iguaçu despertou a curiosidade de milhares de pessoas Brasil
afora na última semana: a casa do pai de santo Sérgio Pina virou assunto na
internet depois de Anitta mostrar para milhões de espectadores o clipe
“Aceita”, com imagens de rituais da religião que escolheu. Apesar de o lugar
onde foi feita a gravação não ser o que ela frequenta, curiosos foram às redes
do líder religioso mostrar interesse em conhecer o local.
O terreiro frequentado
por Anitta existe há mais de 35 anos no bairro Cobrex, perto de uma comunidade
iguaçuana, e é visitado pela cantora há dez. Mas, assim como a artista, outros
milhares de anônimos — moradores da região e até de fora do país— e alguns
famosos têm templos da Baixada Fluminense como seu porto seguro. A região do
estado já era, dez anos atrás, a que concentrava a maior parte dos terreiros do
Rio, segundo o livro “Presença do axé: mapeando terreiros no Rio de Janeiro”,
de Sonia Maria Giacomini e Denise Pini Rosalem da Fonseca.
— Há uns 15 anos, foi
feito um levantamento. Existiam naquela região mais de duas mil casas. Hoje,
não há dados confiáveis de quantificação. Mas, de fato, é um lugar onde existem
muitos terreiros de umbanda, candomblé, encantaria e denominações de outros
segmentos — diz o pós-doutor Babalawô Ivanir dos Santos, professor do programa
de pós-graduação em História Comparada da UFRJ. — Com o Bota-Abaixo (conjunto
de medidas de reformulação, que incluiu destruição de cortiços e construção de
avenidas) do Pereira Passos, no início do século XX, houve uma retirada de
várias casas de santo do Centro do Rio. Muitas foram para a periferia e,
consequentemente, para a Baixada.
• Violência e intolerância
Segundo o Censo 2022
do IBGE, quatro das dez cidades do Brasil com mais templos religiosos (de
qualquer denominação) estão na Baixada: Magé, Nova Iguaçu, Belford Roxo e Duque
de Caxias. Embora especialistas creiam que tenha havido um boom de igrejas evangélicas
ao longo dos anos, entidades defendem que elas dividem território na Baixada
com muitas casas de axé.
— Se levarmos em conta
que uma casa de 60 anos tem, no mínimo, 30 filhos de santo, e que ao passar dos
anos esses filhos vão ganhar o direito de abrir suas casas também, cada
terreiro de candomblé pode formar muitas casas. A Baixada tem 13 cidades. Em Seropédica,
participei de um grupo para contabilizar as casas de candomblé e encontramos
182. Imagino que na Baixada inteira o número possa chegar a dez mil (incluindo
outras centros de religiões de matriz africana) — afirma Glauber Senra de
Oxossi, um dos coordenadores estaduais do Igbá, aplicativo criado em 2021 por
Mãe Marcia D’Oxum para mapear terreiros no Rio.
Ao longo das décadas,
a violência e a intolerância religiosa têm provocado fechamento, mudança de
endereço e muita discrição. Em 2019, por exemplo, mais de 170 casas de axé
foram fechadas só em Duque de Caxias após ameaças de traficantes. O
desrespeito, no entanto, vem de todos os lados.
— Na nossa pesquisa, a
gente reparou que muitas vezes os vizinhos chamavam a polícia e faziam
denúncias por sequestro. Eles falavam em clausura, cárcere privado, quando na
verdade a pessoa estava lá por adesão religiosa — diz Sonia Maria Giacomini,
uma das antropólogas responsáveis pelo mapeamento de terreiros no Rio.
• Valor histórico
Nesse cenário, a
resistência de terreiros de candomblé como o Ilê Axé Opô Afonjá, o primeiro do
Rio, ganha ainda mais valor. As primeiras cerimônias foram feitas na Pedra do
Sal, na Saúde, mais de 138 anos atrás, pela baiana Eugênia Ana dos Santos, a
Mãe Aninha. Depois, passaram para bairros como São Cristóvão e Marechal Hermes.
Até que, em 1944, o terreiro fixou-se em Coelho da Rocha, em São João de
Meriti. Sandra Brandão, filha de santo de Mãe Regina de Yemanjá, ialorixá da
casa atualmente, explica que as transformações político-sociais empurraram as
atividades para a Baixada. Até o fim do século XIX, as religiões de matriz
africana eram proibidas no país. A situação mudou em 1891, mas elas seguiram
marginalizadas.
— Uma das razões do
afastamento do axé da Pedra do Sal foi o racismo estrutural — explica ela, que
é presidente da sociedade civil do Opô Afonjá, hoje tombado pelo Instituto
Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac).
A Baixada concentra
ainda casas que ganharam também visibilidade cultural, como o Ilê Omolu Oxum,
que abriga o Museu Memorial Iyá Davina — que tem até exposição virtual no
GoogIe Arts & Culture —, em São João de Meriti; e o Ilê Axé Obaluaye Jagun,
em Duque de Caxias. O segundo, que tem Pai Celio de Omolu como babalorixá,
recebe dezenas de famosos, como Alcione, Preta Gil e Grazi Massafera, para
rituais e festividades. Aliás, hoje é dia de festa na casa, fundada em 1978.
— A gente vai fazer
uma das festas de candomblé mais conhecidas da região, a de Exu Barabô. A
primeira foi em 1981, o boom foi em 1986, e é um sucesso até hoje — conta Pai
Celio. — Apesar de o terreiro receber muitas pessoas famosas, não podemos nos
perder nisso. Mas a palavra do artista ajuda a diminuir o preconceito.
Em São Mateus, São
João de Meriti, é onde fica o terreiro de Mãe Meninazinha de Oxum, o Ilê Omolu
Oxum. Lá, além das cerimônias religiosas, são desenvolvidas ações em busca de
políticas públicas. Mãe Nilce de Iansã, coordenadora nacional da Renafro (Rede
Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde), é uma das engajadas na
proposta.
— Uma das questões que
abordamos no ilê é o racismo religioso. Ele faz o povo de terreiro adoecer,
morrer. Fizemos uma pesquisa a nível nacional para saber onde ele mais ocorre.
Consegui levar palestras para outras instituições, entre elas a Academia Estadual
de Polícia Sylvio Terra. Pedimos a todo povo de axé que cadastre suas casas,
que ocupe espaços de instância política e lute por igualdade de direitos.
Fonte: Extra OnLine
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