sexta-feira, 31 de maio de 2024

Gilberto Maringoni e Davi Deccache: ‘O arcabouço ou a vida’

A tragédia do Rio Grande do Sul não é tragédia localizada. É tragédia sistêmica de um país submetido por mais de três décadas a políticas de desmonte do Estado, de privatizações de empresas estratégicas, de disseminação da falácia de que o desenvolvimento pode ser conduzido pelo mercado, de que regras ambientais restringem o agronegócio, de que códigos reguladores são travas à modernização, de que a infraestrutura e decisões de investimento podem ficar nas mãos de oligopólios cujas sedes estão fora do país e de que a política atrapalha decisões que deveriam ser tomadas com base em critérios puramente técnicos.

Com mais de 90% de seus 497 municípios impactados pela fúria natural impulsionada pela ação humana, o Rio Grande viveu caos semelhante há poucos meses e viverá novos, pois as condições objetivas de devastação ambiental e alucinação privatista não mudaram. Qual a segurança para a indústria, para o comércio e para a realização de investimentos numa região que, a qualquer momento, pode enfrentar novamente uma hecatombe como a atual? Quanto custará, em termos materiais e humanos, reconstruir um estado com 11 milhões de habitantes, quarto maior PIB da Federação, larga história e definidor da vida nacional nos últimos dois séculos? Até aqui não existe a menor ideia do que deverá ser feito para reorganizar política, econômica e socialmente a região.

Os arautos do “mercado acima de tudo, iniciativa privada acima de todos” estão subitamente mudos, talvez à espera que as águas e as atenções baixem. Uma reconstrução com a liderança do mercado resultará em exacerbação de desequilíbrios regionais e sociais e visará inflar as arcas de especuladores.

Não nos esqueçamos que a assim chamada reconstrução do Iraque, após a invasão estadunidense de 2003, resultou em gordos ganhos por parte de empreiteiras e petroleiras que privatizaram quase tudo no país.

Mais uma vez, nas horas de crise, é o poder público o agente essencial da retomada. Durante a pandemia, vimos em todo o mundo que foram os Estados que socorreram empresas, bancos e famílias, destruindo o mito da inexistência de dinheiro e mobilizando plenamente os recursos disponíveis. Naquele momento, foram aplicadas as velhas lições de Keynes, mostrando que, em tempos de crise, a intervenção estatal é indispensável para se evitar o colapso econômico.

Em um Estado monetariamente soberano, os verdadeiros limites para os gastos são dados pela plena utilização da capacidade produtiva doméstica. Restrições fiscais que deixam ociosos recursos que deveriam ser mobilizados para a reconstrução, para a prevenção de novos desastres e para a mitigação de mazelas sociais e ambientais são, além de autoimpostas, humanamente e ambientalmente inaceitáveis.

Planos ousados de investimentos por parte do poder público são incompatíveis com medidas do arcabouço fiscal, tão ao gosto da Faria Lima. Não é à toa que, ao mesmo tempo em que se anunciam verbas extraordinárias para o Sul, vozes do financismo multiplicam-se em editoriais, entrevistas e lobbies, alardeando o pior dos mundos caso a “gastança” não seja contida.

O pior dos mundos é o aqui e o agora, caso se bloqueiem grandiosos e contínuos investimentos públicos para socorrer a região e buscar uma transformação no modelo de desenvolvimento que traga melhores horizontes ao Brasil. Precisamos de um novo pacto nacional, um New Deal à brasileira. Ao contrário do que proclamava Margaret Thatcher, há duas alternativas aqui: o arcabouço ou a vida.

•        Impacto de tragédia do RS sobre o PIB deve se concentrar no 2º trimestre, dizem economistas

O impacto negativo das enchentes no Rio Grande do Sul sobre a atividade econômica deve aparecer principalmente nos dados do segundo trimestre. Os esforços para a recuperação, porém, podem gerar um “rebote parcial” no Produto Interno Bruto (PIB) do trimestre seguinte, avaliam economistas consultados pelo Projeções Broadcast.

Diante dessa premissa, o Santander Brasil reduziu recentemente a projeção para o PIB brasileiro do segundo trimestre, de crescimento de 0,3% para 0,1%, e aumentou a estimativa para o terceiro trimestre, de 0,5% para 0,6%. O economista Gabriel Couto ressalta que, se o impacto negativo for maior, a recuperação tende também a aumentar.

Couto pondera que a duração do efeito tende a variar entre os setores. “Há aqueles em que tende a ser mais rápido, como alguns segmentos dentro de serviços”, exemplifica. “O impacto mais duradouro que vemos é sobre a indústria. A perda de capacidade produtiva e a destruição do capital fixo podem comprometer o setor por um pouco mais de tempo no Estado.”

O banco recentemente elevou a projeção para o PIB de 2024, de crescimento de 1,8% para 2,0%. O aumento foi motivado pelas consequências do cenário mais aquecido do mercado de trabalho, mas foi parcialmente compensado pelo efeito baixista estimado para as consequências da situação no Rio Grande do Sul.

A XP também reduziu recentemente a estimativa para o PIB do segundo trimestre, de alta de 0,5% para 0,1%. “Vemos a indústria e os serviços do Estado como os setores mais impactados, mas é claro que o agro tende a sofrer também”, pontua o economista Rodolfo Margato.

Ele salienta que o efeito de baixa sobre a atividade econômica deve ser concentrado no segundo trimestre, com compensação parcial esperada para a segunda metade do ano, principalmente no terceiro trimestre.

A XP mantém, por enquanto, projeção de crescimento de 2,2% para o PIB de 2024, mas adicionou viés de baixa à estimativa. Margato calcula que o impacto líquido negativo da situação no Rio Grande do Sul pode ficar entre 0,2 ponto porcentual e 0,3 ponto do PIB.

O Banco MUFG Brasil, por sua vez, ainda não revisou a projeção para o PIB do segundo trimestre, mas o economista-chefe Carlos Pedroso considera que a tendência é diminuir a estimativa de crescimento de 0,6%. Ele corrobora a expectativa de que parte desse impacto negativo deve ser compensado no trimestre seguinte, com investimentos e esforços para reconstrução do Estado.

Por ora, o banco também mantém a projeção de crescimento de 2,1% para o PIB de 2024. “Vamos avaliar realmente a profundidade do impacto do Rio Grande do Sul e o impacto de recuperação à frente, para vermos se faremos uma revisão para baixo ou não”, diz Pedroso.

 

•        As tragédias climáticas e os direitos das vítimas. Por Celeste Leite dos Santos

O Rio Grande do Sul sofre, desde 5 de maio deste ano, as consequências de condições climáticas adversas e uma tragédia sem precedentes, com vítimas diretas, indiretas e coletivas, que, embora, hoje, tenham a atenção da mídia, da sociedade e do estado, logo, infelizmente, serão esquecidas.

Num passado não tão distante tivemos as vítimas das enchentes da Bahia e do litoral de São Paulo, e das tragédias com as barragens em Brumadinho e Mariana, cidades do estado de Minas Gerais – apenas para mencionar alguns exemplos. O que aconteceu depois com elas?

Pouco se sabe a respeito de políticas públicas que tenham sido implementadas a partir desses eventos traumáticos. Muitas foram as doações recebidas. Contudo, há pouca transparência a respeito da destinação dada. O município de São Sebastião (SP), mesmo, teve de acionar a Justiça para dar uma resposta ao povo sobre as arrecadações de entidades não-governamentais. Apesar dos valores vultuosos das doações, elas não chegaram, em tese, a quem mais precisava.

Ademais, em nome da urgência, certames licitatórios são dispensados; e verbas públicas são alocadas para o atendimento às vítimas – embora não se tenha um plano, de fato, de contingenciamento e de gerenciamento de situações de crise.

Com a crescente ocorrência de desastres no território brasileiro, torna-se cada vez mais necessário revisitar os erros passados, e realizar um diagnóstico de riscos no presente, a fim de prevenir tragédias futuras, ou a reincidência das mesmas. Sobretudo, é preciso promover reparação efetiva às vítimas quanto aos danos sofridos, tangíveis e intangíveis.

É necessário, ainda, lembrar que, desde maio de 2022, portanto, há dois anos, na Câmara dos Deputados, em Brasília, um requerimento com pedido de urgência aguarda aprovação para que o Estatuto da Vítima (Projeto de Lei 3.890/2020) receba chancela da Presidência da Casa e possa ser votado pelos parlamentares.

O documento prevê direitos humanos básicos para vítimas de crimes, como infrações penais e atos infracionais, e, também, para as vítimas de calamidades públicas e de desastres naturais — como é o caso, mais recente, da tragédia sobre a população gaúcha.

Importante destacar, também, que, o Estado tem o dever de precaução em matéria ambiental, o que implica na formulação de políticas públicas preventivas. Em Taiwan, para se ter uma ideia, uma unidade especial atende vítimas de desastres naturais em apenas duas horas, além de emitir comunicados à população sobre situações de perigo.

Atualmente, é improvável, com o avanço tecnológico, que não se possa prever riscos potenciais à população, e, desta maneira, adotar medidas para a redução dos danos. Não há mais justificativa para a omissão do Estado brasileiro.

Num país com dimensões geográficas continentais, como é o Brasil, é urgente a aprovação de legislação que garanta direitos mínimos à população vulnerabilizada, além de implantação de políticas públicas adequadas quanto ao que deve ser feito após desastres, focadas no bem-estar coletivo, impessoal e eficiente.

Aguardamos, outrossim, que a tragédia no Sul do país possa sensibilizar nossos parlamentares de que já é tempo e hora de o Brasil adequar sua legislação aos reclamos daqueles que sofrem e cujas dores não podem cair no esquecimento.

 

Fonte: Blog da Boitempo/Agencia Estado/Congresso em Foco

 

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