Tragédias no RS, desmonte nacional e saídas
efetivas para a emergência climática
Os desastres
socioambientais no Rio Grande do Sul, deflagrados pelas chuvas torrenciais em
volume recorde, deflagraram nova rodada de reflexões sobre a emergência
climática. Salta aos olhos mas não surpreende que, nos últimos anos, muitas
capitais brasileiras seguiram a linha do afrouxamento de marcos legais ligados
à proteção do meio ambiente. No Rio Grande do Sul, foram flexibilizadas 480
normas do código ambiental. Entre elas, destaque para a liberação de
construções em áreas de preservação, passíveis de alagamento, e a eliminação de
vegetação com função de drenagem. Mas o estado seguiu a tendência conhecida
como “deixar passar a boiada”. Em 2021 o Congresso Nacional aprovou a Lei
14.285, cuja letra além de flexibilizar construções e impermeabilização às
margens de cursos d’água, beneficiou obras irregulares em andamento e
transferiu a municípios a competência de determinar faixa de Área de
Preservação Permanente. Já o projeto de
Lei 3.729, aprovado na Câmara mas em tramitação no Senado, libera
diversos setores do licenciamento ambiental, bem como reduz penas aos
delitos. À época especialistas da
Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência já alertavam para uma
“fragilização da atuação das entidades/órgãos intervenientes”, “anistia” a quem
desenvolveu atividade ilegalmente”.
Como se não fosse
suficiente, o desmonte não foi apenas legal. Houve também desmanche de
estruturas institucionais de prevenção e monitoramento de riscos. Para ficar em
poucos exemplos: em 2021 foi aprovado o encerramento das atividades METROPLAN,
Fundação Estadual de Planejamento Metropolitano e Regional do Rio Grande do
Sul. Em nível municipal, foi dissolvido o DEP, departamento responsável pelo
esgotamento pluvial. Pouco tempo antes,
em São Paulo, havia sido extinta a EMPLASA, empresa pública responsável
pelo planejamento da região metropolitana da capital. Pouco tempo depois em Florianópolis, foi
dissolvido o IPUF, autarquia responsável pelo planejamento da capital
catarinense.
A flexibilização e
simplificação gerou resultados rápidos. Em 2022, o desmatamento de biomas
cresceu 22,3%. Segundo o MapBiomas, entre 2019 e 2022 foram 6,6 milhões de
hectares desmatados, equivalente a uma vez e meia o estado do Rio de Janeiro.
Tais processos são interligados, evidentemente, à conversão destes solos em
áreas agrícolas, de pecuária e, ainda, de urbanização.
Estudo recente do
escritório de redução de riscos da ONU calcula que um dólar investido em
prevenção pode economizar até quinze dólares em recuperação. Preparar as
cidades com infraestruturas e capacidade institucional é quatro vezes mais
barato do que os gastos com reconstrução.
De saída, é preciso
envolver universidades, laboratórios, observatórios, movimentos sociais e ONGs
que tenham conhecimento profundo da realidade local, no mapeamento das perdas
humanas e materiais, bem como na cogestão de saídas para a reconstrução de bairros
e cidades. A Prefeitura de Porto Alegre contratou uma empresa que ficou
conhecida internacionalmente por priorizar interesses comerciais em detrimento
de habitantes, pouca transparência e escuta.
Com uma análise
adaptada aos riscos emergentes, identificar-se-ão os bairros que podem ser
reconstruídos e os que precisam de realocação definitiva. Em ambos os casos, é
imprescindível que erros do passado não sejam cometidos novamente e que a
resiliência urbana socioambiental seja priorizada com planos comunitários
emergentes de redução de riscos e desastres – como está sendo proposto, por
exemplo, no Programa Periferia Sem Risco. Núcleos Comunitários de Proteção e
Defesa Civil devem ser criados para fortalecer os sistemas de prevenção,
adaptação e mitigação.
Para tanto, esses
bairros devem ser pensados com a participação da comunidade e apoiados por uma
rede de infraestrutura verde multifuncional, conectada com áreas verdes
peri-urbanas, integrada às outras infraestruturas urbanas (mobilidade,
saneamento, etc.) e com um planejamento de longo prazo. Ademais, soluções
baseadas na natureza e sistemas de drenagem urbana sustentáveis devem embasar
as propostas para que estas protejam e restaurem ecossistemas, e consigam
sustentar o regime hidrológico do local utilizando técnicas que infiltrem,
filtrem, armazenem e evaporem o escoamento da água perto de sua fonte (como
biovaletas, jardins de chuva, telhados verdes, pavimentação permeável, etc.).
Assim, pensar em mais áreas permeáveis, áreas verdes e unidades de conservação
é indispensável, bem como recuperar as Áreas de Preservação Permanente, seja
nas margens dos cursos d’água ou nos topos de morros.
Em qualquer contexto
de prestação dos serviços de água e esgotamento sanitário em situações de crise
climática, o direito à vida deve estar presente. Isso significa entender a água
e o esgotamento sanitário como direitos humanos e forma de assegurar a saúde
pública com uma abordagem ecológica, integrando a melhoria da qualidade de vida
e a preservação dos ecossistemas.
Além disso, tais
bairros têm de seguir parâmetros já consolidados de sustentabilidade urbana.
Necessitam de ser mais justos na distribuição dos usos do solo, promovendo uma
variedade de tipos de habitação para assegurar mistura social, acessibilidade
financeira e segurança física e emocional a todas as classes sociais. Precisam
também favorecer áreas com usos mistos e variabilidade de funções – moradias
populares, comércios e serviços públicos e privados –, de modo a criar
centralidades locais, gerar empregos e reduzir deslocamentos pendulares de
longa distância. A proximidade aos serviços básicos, a caminhabilidade e a
acessibilidade devem também ser priorizadas, juntamente com um sistema viário
eficiente e uma rede de transportes públicos eficaz e acessível, estando esta
conectada a uma gama de diferentes modais de transporte. Por fim, ruas
completas, seguras e ativas precisam ser pensadas como parte de um sistema
maior de espaços livres públicos para a diversidade e uma especial atenção
precisa ser dada ao reforço da identidade local.
A realocação das
famílias desalojadas não precisa se dar apenas com a construção de novas unidades habitacionais, mas também
dando uso a imóveis ociosos em áreas centrais. A Universidade Federal do Rio
Grande do Sul já mapeou número expressivo destes (diga-se de passagem, isto
vale para outras cidades, como mostrou o censo de 2022, há 11,4 milhões de
imóveis ociosos no país – 600 mil apenas na cidade de São Paulo).
Este é também o
momento de superar o curto prazismo e voltar a pensar em políticas de
reestruturação do território sob os marcos da função social da terra urbanizada
e de um paradigma da justiça ambiental.
Já temos contribuições consistentes de técnicos, cientistas e juristas a
respeito.
Como prioridade, a
identificação dos territórios que sofrem com o racismo ambiental, segregação e
outras desigualdades que impactam as populações já vulnerabilizadas. Vale
lembrar, os riscos são socialmente produzidos e os desastres não são naturais,
os ônus de ambos são distribuídos de maneira bastante desigual. Os investimentos públicos precisam ser
regionalizados, distribuídos de acordo com critérios técnicos coerentes com as
necessidades sociais.
É urgente
recuperar a capacidade institucional dos
municípios na prevenção de desastres e planejamento para redução dos impactos,
com recriação de estruturas administrativas. De novo, será mais eficiente se se
der por cogestão com universidades públicas e privadas no formato de
Residências Acadêmicas Multiprofissionais com programas de ação local, que além
de conhecimento situado em nossa realidade, têm presença mais perene,
compromisso e capilaridade entre os povos envolvidos.
A reconstrução e
planejamento também precisam acontecer na escala regional. Isto passa por
incorporar nas medidas os comitês de bacias hidrográficas, órgãos colegiados
capazes de mediar conflitos entre os usos e usuários das águas estaduais e
interestaduais fortalecendo comunidades resilientes e sensíveis à água. Há ainda marcos legais como o Zoneamento
Ecológico-Econômico (ZEE), instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente
regulamentado pelo decreto nº 4.297/2002, que podem ampliar a conexão entre o fortalecimento
de cadeias produtivas, a proteção e
recuperação ambiental. No entanto, as bases dos sistemas de informação devem
estar mais acessíveis à população.
Não se deve desprezar
ainda a capacidade de cooperação e cogestão de comunidades e sociedade civil
organizadas, enquanto participantes desses ecossistemas físicos e sociais para
promover territórios resilientes. Não raro organizações populares, camponesas,
quilombolas e povos indígenas – cuja relação com a terra é respeitosa – têm
mostrado grande inteligência social, desempenhando papel fundamental tanto do
ponto de vista da preservação e recuperação de infraestrutura ambiental quanto
nas respostas comunitárias a eventos
extremos.
Envolver todos os
entes federativos e setores-chave na transição energética, com investimentos
sólidos em tecnologias de baixo carbono. É preciso consolidar uma nova relação cidade-natureza, que passa
pela proteção de ecossistemas urbanos e conectividade entre eles por redes de
infraestrutura verde e azul. Cinturões
verde podem ser desenhados junto de sítios de agroecologia urbana, que operem
em circuitos curtos de entrega de alimentos. O verde qualifica a vida urbana.
É importante pensar na
bacia hidrográfica como unidade de planejamento, integrar a reforma urbana à
reforma agrária no continuum rural-urbano. Como as fontes de energia e água
potável tendem a diminuir, faz sentido que os movimentos de emigração das grandes
cidades para cidades menores e para o campo sejam considerados como respostas a
esta nova realidade.
É difícil não perceber
que muitas das perdas humanas e materiais do Rio Grande do Sul poderiam ter
sido previstas, outras tantas evitadas. Mais difícil ainda é negar os efeitos
devastadores da flexibilização de marcos legais e do desmonte de capacidade institucional
que se deram em nível federal e geraram alinhamentos nos estados e principais
capitais. Há possibilidades de saída efetiva a emergência climática, mas uma
transformação efetiva exige revisão brusca de rota, exige reconstrução
institucional e, mais do que isto, exige refundação de outro paradigma
civilizatório.
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Subscrevem esta carta
Ermínia Maricato
(arquiteta urbanista, professora emérita da Universidade de São Paulo,
ex-secretária de Habitação e Desenvolvimento Urbano de São Paulo, coordenadora
da rede BrCidades)
Paolo Colosso
(filósofo e arquiteto urbanista, professor da Universidade Federal de Santa
Catarina, vice-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e
Urbanismo da UFSC, coordenador da rede BrCidades)
Liza Maria Souza de
Andrade Andrade (arquiteta urbanista, professora da Universidade de Brasília,
compõe o núcleo DF da rede BrCidades)
Olivia Orquiza de C.
Zara (arquiteta urbanista, professora da Universidade Estadual de Londrina,
compõe o núcleo Londrina da rede BrCidades)
Ricardo Moretti
(engenheiro civil, professor da Universidade de Brasília e da Universidade
Federal do ABC)
Celso Carvalho
(engenheiro civil, Professor da Universidade de São Paulo)
Douglas Tadashi Magami
( Defensor Público do Estado de São Paulo)
Francisco Comaru
(engenheiro civil, Professor da Universidade Federal do ABC)
Cláudio Di Mauro
(geógrafo, ex-prefeito de Rio Claro, professor da Universidade Federal de
Uberlândia)
Márcio Pochmann (
economista, professor da Unicamp, presidente do IBGE)
Ladislau Dowbor (
economista, professor titular da PUC-SP)
Lino Fernando Bragança
Peres (arquiteto urbanista, professor
aposentado e da Universidade Federal de Santa Catarina, presidente do Instituto
Cidade e Território/SC e do Fórum da Cidade de Florianópolis)
Betânia Alfonsin (
Pesquisadora do Observatório das Metrópoles e do Mestrado em Direito da FMP do
RS e Diretora de Relações Internacionais
do IBDU -Instituto Brasileiro de Direito
Urbanístico.
André Coutinho
Augustin ( Pesquisador do Observatório
das Metrópoles)
Joana Winckler
(Pesquisadora do Observatório das Metrópoles )
Ana Cláudia Duarte
Cardoso (arquiteta urbanista, professora da Universidade Federal do Pará)
Heliana Faria Mettig
Rocha (arquiteta urbanista, professora da Universidade Federal da Bahia)
Luis Octavio de Faria
e Silva (arquiteto urbanista, educador, professor do Programa de Pós Graduação
da Universidade São Judas Tadeu e da Escola da Cidade)
Gustavo Pires de
Andrade Neto (arquiteto urbanista, professor da Universidade Estadual de Santa
Catarina e presidente do IAB-SC)
Vanessa Marx (
professora de sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS e
pesquisadora do Observatório das Metrópoles).
Rualdo Menegat (
Geólogo, Professor Titular do Instituto de Geociências da UFRGS, Coordenador
Geral do Atlas Ambiental de Porto Alegre.
Soraya Nor ( arquiteta
e urbanista, professora da Universidade Federal de Santa Catarina)
Maria Inês Sugai (
arquiteta urbanista, professora da Universidade Federal de Santa Catarina)
Guilherme Barbosa
(Engenheiro Civil, Ex-Diretor Geral do DMAE, Ex-secretário de Obras e
Ex-vereador de Porto Alegre)
Beatriz Fleury e Silva
( arquiteta urbanista, Professora da Universidade Estadual de Maringá.
Coordenadora Brcidades- núcleo Maringá)
João Aparecido Bazzoli
(advogado, Professor Associado na
Universidade Federal do Tocantins
Antônio Alberto
Machado (Professor livre-docente de Direito da UNESP, Promotor de Justiça
aposentado)
Bruno Miragaia
(Defensor Público do Estado de São Paulo)
Paulo Alvarenga
(Defensor Público do Estado de São Paulo)
Silvia Lenzi (
arquiteta urbanista, ex-presidente do IPUF –
Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis)
Guilherme Wisnik
(arquiteto urbanista, professor e vice diretor da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo FAU-USP)
Adriana Fagundes
Burger ( Defensora Pública do Rio Grande do Sul)
Julia Azevedo Moretti
( Pesquisadora da USP- Universidade de
São Paulo)
Angela Gordilho (
arquiteta urbanista, professora da Universidade Federal da Bahia)
Regina Pozzobon (
engenheira civil, doutora em planejamento urbano pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul)
Ruth Maria da Costa
Ataíde ( arquiteta urbanista, professora da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte-UFRN, coordenadora do Fórum Direito à Cidade).
João Sette Whitaker (
arquiteto urbanista, ex-Secretário de Habitação de São Paulo, professor da
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo FAU- USP)
José Ricardo Vargas de
Faria ( Engenheiro Civil, Doutor em Planejamento Urbano e Regional, professor e
coordenador do Centro de Estudos em Planejamento e Políticas Urbanas da
UFPR – CEPPUR-UFPR)
Nadia Somekh (
arquiteta urbanista, professora emérita da Universidade Presbiteriana
Mackenzie, ex-presidente do CAU-BR)
Cláudia Teresa Pereira
Pires ( arquiteta urbanista – Movimento Arquitetos pela Moradia, ex-presidente
do IAB-MG)
Giselle Tanaka (
arquiteta urbanista, professora do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano
e Regional da UFRJ)
Thiago Trindade (
professor e atual vice-diretor do Instituto de Ciência Política da UnB,
coordenador do Núcleo Brasília do Observatório das Metrópoles e ativista da
rede BrCidades )
Luciana Royer ( arquiteta urbanista, professora da Faculdade
de Arquitetura e Urbanismo, coordenadora do Laboratório de Habitação e
Assentamentos Humanos -LabHab).
Leda Paulani (
economista, professora titular da Faculdade de Economia e ADministração FEA-USP
)
Alexandre Delijaicov (
professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, coordenador do
Laboratório de Projeto – LABPROJ)
Anderson Kazuo Nakano
( arquiteto urbanista, professor da Universidade Federal de São Paulo)
Carlos Vainer (
economista e sociólogo, Professor Emérito do Instituto de Pesquisa e
Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro –
Coordenador do Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza.)
Fernando Túlio,
professor (lecturer) na ETH Zurique (Suíça) e diretor do instituto Zerocem
Marcelo Karloni (
arquiteto urbanista, professor da Universidade Federal de Alagoas Curso de
arquitetura e urbanismo, Núcleo BR
cidades Arapiraca Alagoas.
Gilson Jacob Bergoc
(arquiteto e urbanista, docente da Universidade Estadual de Londrina,
coordenador do núcleo do BR Cidades de Londrina)
Rubens Luis Ribeiro
Machado Jr ( professor titular da Escola de Comunicações e Artes ECA-USP)
Renato PEqueno ( arquiteto urbanista, Professor da
Universidade Federal do Ceará e pesquisador do Observatório das Metrópoles)
Luiz César de Queiroz
Ribeiro( professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro
IPPUR-UFRJ)
Fonte: Carta BRCidades
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